Quem passa à porta de um antigo palácio restaurado na rua que liga o jardim do Príncipe Real ao Largo do Rato, em Lisboa, dificilmente sonha que um daqueles apartamentos está ligado ao “cérebro” dos vistos gold – ali fica a sede, em Portugal, da empresa que criou, nos anos 90, o conceito dos vistos dourados e passou a vender, de forma legal, autorizações de residência, passaportes e cidadanias. E muito menos fará ideia de que o presidente e chairman daquela empresa, chamada Henley & Partners, é um advogado suíço, com ligações a Alexander Nix, antigo presidente da Cambridge Analytica, e que esteve no centro de uma investigação de uma jornalista maltesa, assassinada em outubro do ano passado.

Chamam-lhe “o senhor cidadania” ou “o rei dos passaportes”. Christian Kälin, 47 anos, nascido em Zurique e formado em Direito, é descrito como um dos grandes especialistas mundiais em imigração e cidadania através do investimento. Nas entrevistas e palestras que dá pelo mundo fora, enquanto representante da Henley & Partners, não se cansa de contar como, ainda muito jovem, começou a colecionar leis de imigração dos diferentes pontos do globo e a visualizar uma ideia de negócio. Quase cem países oferecem residência em troca de investimento estrangeiro. Cerca de uma dúzia concede também a nacionalidade.
A Henley & Partners percebeu que havia um filão de negócio a explorar – ou melhor, dois. Trabalha com os milionários interessados em adquirir uma nova morada noutro país ou uma nova nacionalidade e, ao mesmo tempo, dá conselhos ao outro lado da barricada, recomendando políticas de residência a troco de investimento. Ao leme desta empresa, Christian Kälin já trabalhou com os governos da Tailândia, Grécia, Antígua e Barbuda, Áustria e Montenegro, mas nenhuma parceria lhe rendeu tantas páginas de jornais e tanta má fama como as que granjeou em duas ilhas: em São Cristóvão e Névis e, mais tarde, em Malta.
Terá sido em 2010, durante a campanha para as eleições no micro-Estado caribenho, que Kälin conhecera o presidente-executivo do Strategic Communications Laboratories. O grupo SCL era dono da Cambridge Analytica, a empresa acusada de usar ilegalmente informações de 50 milhões de utilizadores do Facebook, para favorecer a campanha de Donald Trump. Enquanto a Henley & Partners criou, em São Cristóvão e Névis, um programa de cidadania através de investimento, o grupo SCL terá ajudado alguns políticos, que defenderiam estes programas, a ganhar as eleições.
Uma investigação incómoda
O advogado suíço acabaria por assinar, depois, com o Governo de Malta, o seu contrato mais controverso. Em troca do desenho de um programa de vistos gold, a Henley & Partners ganhava uma comissão de cada investimento, algo que já lhe terá permitido lucrar mais de 20 milhões de euros só naquele país.
Daphne Caruana Galizia foi uma das maiores críticas do esquema que permitia que uma empresa vendesse passaportes a pessoas ricas, enquanto alegadamente tentava interferir nas eleições para benefício próprio e dos futuros investidores. No seu blogue, a jornalista que denunciava casos de corrupção, e que chegou a ser descrita como “um Wikileaks inteiro numa só mulher”, chegou a publicar emails ameaçadores que a obrigavam a retirar todas as referências à Henley & Partners. Em outubro de 2017, morreu vítima de uma bomba instalada debaixo do seu carro. Não há indícios de que o assassínio tenha alguma relação com o programa de vistos gold que ela investigara, mas, os média não perdoaram quando, uma semana depois, o primeiro-ministro maltês foi a uma conferência no Dubai, sobre “cidadania global”, organizada precisamente pela Henley & Partners.
Em Portugal, foi em 2012 que nasceram as autorizações de residência, destinadas a quem criasse dez empregos no nosso país ou fizesse um investimento imobiliário superior a 500 mil euros. A Henley & Partners tinha mais um Estado amigo do investimento estrangeiro para explorar. No andar da rua da Escola Politécnica, uma jovem abre-nos o enorme portão verde, que dá para um apartamento no rés do chão, mas nada explica sobre a empresa. Quaisquer esclarecimentos, diz, devem ser prestados pelo managing partner da companhia em Portugal, Luís Infante, que, num contacto posterior, nos referiu que não iria conseguir responder às nossas questões em tempo útil. Quem são os seus clientes é uma pergunta que ficará sem resposta. O fundador da empresa e o maior comerciante de moradas do mundo só costuma ficar em silêncio quando lhe perguntam, afinal, quantos passaportes tem em seu nome.

Paraíso da corrupção
Portugal está na mira da OCDE e da Comissão Europeia, por causa do regime dos vistos dourados. As duas instituições irão, em breve, apresentar relatórios. Enquanto isso, a Transparência Internacional já veio dizer que a falta de “critérios claros” deixa o nosso país permeável a “criminosos e a corruptos”
– Um relatório da Transparência Internacional, divulgado em Bruxelas, a 10 de outubro, concluiu que, por não ter critérios claros, o programa de vistos gold, em Portugal, “apresenta um maior risco de ser usado de forma abusiva por corruptos ou por indivíduos que possam estar a investir o produto de um crime ou a esconder–se da Justiça”.
– No mesmo dia, a organização Transparência e Integridade distribuiu, a ministros e deputados, um kit em formato de mala de viagem, com o intuito de alertar para os perigos dos programas dos vistos gold e para exigir maior escrutínio à origem dos capitais destes investidores.
– Até agosto deste ano, foram atribuídas, segundo o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, 6 498 autorizações de residência para investimento, 3 936 das quais a cidadãos chineses. O País já encaixou 3 967 mil milhões de euros – cerca de 90% através de investimentos imobiliários.
– Em Portugal, os vistos dourados tiveram logo consequências políticas e judiciais, com o então ministro da Administração Interna, Miguel Macedo, a demitir-se, após o seu nome ser envolvido num processo judicial que ficou conhecido como o caso Vistos Gold. A leitura da sentença do processo que investigou uma alegada rede de corrupção na Administração Pública, em torno da atribuição de vistos dourados, está marcada para 21 de dezembro.
– “Os vistos gold não podem ser certificados com a impunidade para criminosos estrangeiros. Já foram tornados públicos casos de beneficiários de vistos, apanhados em práticas de corrupção e de branqueamento de capitais nos seus países, mas que viviam protegidos pelo passaporte português. Não podemos correr o risco de estar a dar guarida a criminosos”, diz à VISÃO o presidente da Associação Transparência e Integridade. João Paulo Batalha acrescenta que, “em Portugal, pede-se a estes investidores pouco mais do que um registo criminal limpo nos seus países; não se vai investigar a origem do dinheiro nem os outros países onde eles viveram ou tiveram empresas”.