Quando saía de algum local e se dirigia ao seu carro, a começar logo de manhã antes do percurso casa-trabalho, o major Vasco Brazão, titular, na Polícia Judiciária Militar (PJM), das investigações ao roubo de armas nos paióis de Tancos, em 29 de junho de 2017, inspecionava o veículo “de alto a baixo”, relatam à VISÃO testemunhas oculares. Mesmo após essa certificação, contam aquelas fontes, guiava com espreitadelas frequentes ao espelho retrovisor e, de repente, acelerava e guinava numa curva à direita e, depois, à esquerda. “Lá vêm os tipos a perseguir-me”, dizia o militar, que trajava sempre à civil. Os “tipos”, ao que explicava, eram inspetores da Unidade Nacional de Contra-Terrorismo (UNCT), da PJ, que também investigavam o assalto em Tancos.
Vasco Brazão afirmava suspeitar de que elementos da UNCT colocavam à socapa localizadores nos automóveis descaracterizados da equipa que liderava na PJM. “Houve depois incidentes que o convenceram de que estava certo”, dizem as fontes citadas. Por exemplo, em diligências de vigilância relacionadas com as investigações ao roubo de Tancos, os militares, ao chegarem aos locais, “eram surpreendidos pela presença de equipas da UNCT”. Mas o primeiro conflito aconteceu logo a seguir ao assalto: a PJM queria fazer buscas a vários suspeitos, intenção que a UNCT, então chefiada por Luís Neves (que entretanto ascendeu a diretor nacional da PJ), considerou “extemporânea”.
Muito provavelmente, estes são alguns dos “equívocos” que, segundo o advogado Ricardo Sá Fernandes, defensor de Vasco Brazão, o major “pretende esclarecer” junto do juiz de instrução que acompanha o inquérito da “Operação Húbris”, centrada no aparecimento forjado pela Judiciária Militar, na madrugada de 18 de outubro do ano passado, na Chamusca, numa valeta rodeada de canaviais, de material bélico roubado em Tancos, e que já resultou na prisão preventiva do à época diretor-geral da PJM, coronel Luís Augusto Vieira, e de João Paulino, ex-fuzileiro de 32 anos, tido como o líder do grupo que assaltou os paióis. Vasco Brazão encontrava-se agora numa missão na República Centro-Africana. Chegou a Lisboa ao fim do dia desta segunda-feira, 1, e, já sob detenção, passou a noite na cadeia de Tomar. Ao princípio da tarde desta terça-feira, 2, começou a ser ouvido pelo juiz de instrução.
Asseguram as fontes consultadas pela VISÃO que outro dos “equívocos” que o major deverá referir ao magistrado relaciona-se com um informador confidencial da PJ, que a PJM considerava uma peça-chave na investigação ao roubo de Tancos. Numa escuta telefónica, no início de 2017, esse indivíduo, residente no Algarve e conhecido no mundo do crime pela capacidade de abrir todo o tipo de fechaduras, foi apanhado pela PJ a dizer, numa conversa, que estava a ser preparado um assalto a uma instalação militar na zona de Leiria. Por razões que ainda se encontram por esclarecer, a PJ não deu conta dessa informação à chefia das Forças Armadas e, cerca de seis meses depois, aconteceu o assalto em Tancos. Ao Presidente da República, chegou de forma veemente o protesto dos militares, que teriam subido o nível de alerta caso lhes fosse transmitida a existência das suspeitas de um assalto a um quartel.
Na interceção telefónica referida, o indivíduo em causa dizia que tinha sido convidado a participar no roubo, mas que iria declinar. A PJM, porém, sempre acreditou que este suspeito interveio mesmo no assalto. Sem consequências. Em privado, dirigentes da Judiciária Militar desabafavam que o “craque” das fechaduras era para a PJ uma “espécie de intocável”, um informador que a Judiciária civil “protegia desmedidamente” – insuflando as suspeitas de alegados “negócios escuros” para a resolução de crimes.
UNHA COM CARNE
Para a PJM, o DCIAP (Departamento Central de Investigação e Ação Penal), do Ministério Público, e a PJ tardavam em atuar. As reuniões de Vasco Brazão com os procuradores do DCIAP Vítor Magalhães e João Melo, titulares do processo, e elementos da UNCT, da PJ, eram “conversas de surdos”, queixava-se o major junto da sua equipa. “Não lhe davam informação nenhuma e bombardeavam-no com perguntas”, sustentam as fontes próximas do militar. E depois ocorriam humilhações, alegam essas fontes, como a de a PJ não facultar à PJM dados sobre os telefones usados na área na altura do roubo em Tancos.
Cabe aqui sublinhar que a admiração de Vasco Brazão pelo seu diretor-geral se consolidou muito por ocasião do “processo dos Comandos”. Oficial Comando, o coronel Luís Vieira deu carta branca ao major e à sua equipa na investigação das mortes, em setembro de 2016, dos recrutas Hugo Abreu e Dylan da Silva, na sequência de “golpes de calor” e desidratação extrema, na “Prova Zero” do curso nº 127 daquela força especial. Apenas um mês após as mortes dos dois instruendos, a procuradora Cândida Vilar, do DIAP (Departamento de Investigação e Ação Penal) de Lisboa, recebeu da PJM um relatório intercalar, já com propostas de constituição de arguidos.
A magistrada acolheu essas sugestões e, com o desenrolar das averiguações, exarou, em junho de 2017, um despacho de acusação em que atribui a 19 arguidos, oficiais, sargentos e praças, o crime de abuso de autoridade por ofensa à integridade física (em graus diferentes), que o Código de Justiça Militar pune com prisão de oito a 16 anos. Isabel Sesifredo, juíza de instrução criminal, aprovou na íntegra o libelo acusatório do MP e emitiu o respetivo despacho de pronúncia. O início do julgamento esteve marcado para o passado dia 27, mas o arranque foi adiado por 30 dias devido a questões processuais ainda por dirimir.
Por altura das investigações do “processo dos Comandos”, em novembro de 2016, a PJM já registara um assinalável êxito, em colaboração com a Unidade Nacional de Combate à Corrupção, da PJ (neste caso, a interação entre as duas polícias correu sobre rodas): a “Operação Zeus” desmantelou uma rede de corrupção e sobrefaturação que se estendia por 12 messes da Força Aérea, de Norte a Sul do País. As averiguações culminaram num mega despacho de acusação do MP com 86 arguidos (40 militares e 46 empresários).
A cumplicidade profissional e pessoal entre o diretor-geral da PJM, coronel Luís Vieira, e Vasco Brazão foi-se cimentando. Às tantas, o major já acumulava as funções de coordenador de investigação criminal com as de porta-voz da Judiciária Militar. Eram unha com carne e manobravam ambos nos bastidores políticos, judiciais e militares no sentido de reverter a decisão da procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal, que, introduzindo no assalto a Tancos a suspeita de terrorismo, atribuiu as investigações à UNCT da PJ, colocando a PJM como “coadjuvante”. Pela letra da lei, porém, o roubo era um “crime estritamente militar” e, por isso, de “investigação exclusiva” da PJM.
Para convencer os interlocutores, os dirigentes da Judiciária Militar apresentavam um parecer que informalmente tinham pedido ao jurista Rui Pereira, ex-ministro da Administração Interna, que aceitou analisar “a questão da conexão entre crimes previstos no Código Penal e na Lei de Combate ao Terrorismo ou outra qualquer legislação avulsa e os crimes previstos no Código de Justiça Militar”. Com data de 4 de agosto de 2017, o parecer de Rui Pereira, a que a VISÃO teve acesso, dava razão aos argumentos da direção da PJM. “O artigo 113º do Código de Justiça Militar é, inequivocamente, uma norma especial quanto às normas do Código Penal, visto que regula especificamente a questão do concurso entre crimes militares e não militares, estabelecendo que ‘a conexão não opera entre processos que sejam e processos que não sejam de natureza estritamente militar’. Assim, nestes casos, nunca é admitida a conexão de processos”, lê-se no documento assinado pelo jurista e ex-governante.
Mas das discretas pressões nada resultou. O processo atravessou estagnado todo o verão de 2017, até que o coronel Luís Vieira e o major Vasco Brazão resolveram aproveitar uma oportunidade única para encenar o reaparecimento do material militar roubado em Tancos – decisão que o ex-diretor-geral da PJM justificou agora ao juiz de instrução com o “interesse nacional”. Resumindo, para encurtar razões: em pânico com o impacto mediático do roubo, o alegado líder do grupo que assaltou os paióis de Tancos, o ex-fuzileiro João Paulino, contactou e encontrou-se com um amigo de infância, o ex-paraquedista Bruno Ataíde, que ingressara na GNR e trabalhava no Núcleo de Investigação Criminal do Destacamento de Loulé. Paulino disse a Ataíde que talvez pudesse saber do paradeiro das armas, mas antes do que viesse a ser feito tinham de lhe assegurar que nada lhe aconteceria. O antigo paraquedista passou a informação ao seu superior, o sargento-ajudante Lima Santos, o qual transmitiu-a a um contacto que tinha na PJM. E o embuste começou a ser cuidadosamente preparado, com total autorização e encobrimento do diretor-geral, coronel Luís Vieira, o qual garantiu a imunidade a João Paulino.
E às três da manhã de 18 de outubro de 2017, uma quarta-feira, o titular da investigação da PJM, major Vasco Brazão, que por acaso estava de piquete nessa semana, foi acordado por uma chamada anónima a alertar para a presença de material de guerra abandonado num local ermo na Chamusca. Só a meio da manhã desse dia, quando 264 unidades de explosivo plástico e mais de 200 granadas, incluindo granadas-foguete antitanque, já tinham sido transportadas para o campo militar de Santa Margarida, com a colaboração de elementos da GNR de Loulé, é que a PJM informou os procuradores do DCIAP titulares do processo e a UNCT da PJ do aparecimento de material militar roubado em Tancos. Faltavam, no entanto, 1 500 munições de 9mm, que a Judiciária Militar dizia acreditar que eram o objetivo do assalto. Na altura em Bruxelas, o primeiro-ministro, António Costa, felicitou a PJM e a GNR pela descoberta do arsenal.
Contudo, no mês seguinte, novembro, o major Vasco Brazão mostrava-se particularmente agitado – a ponto de confidenciar o inimaginável aos seus próximos: “Isto ainda vai acabar com eles a prenderem-nos.” Acertou em cheio. Há precisamente uma semana, foi desencadeada a “Operação Húbris”, designação que deriva de um conceito grego que se aplica a tudo o que ultrapassa os limites. Cinco procuradores do DCIAP e uma centena de inspetores e peritos da PJ fizeram buscas em vários locais nas zonas da Grande Lisboa, Algarve, Porto e Santarém, e detiveram oito pessoas – o então diretor-geral da Judiciária Militar, coronel Luís Vieira, três responsáveis da PJM, três elementos do Núcleo de Investigação do Destacamento de Loulé da GNR, e o suspeito civil, João Paulino. O juiz de instrução decretou a prisão preventiva do coronel e de Paulino, e os restantes seis arguidos ficaram em liberdade, embora sujeitos, além do termo de identidade e residência, à suspensão do exercício de funções, proibição de contacto com os coarguidos e com quaisquer militares das Forças Armadas, da GNR e elementos da PJM.
No momento em que estas linhas são escritas, desconhece-se a medida de coação aplicada pelo juiz a Vasco Brazão. Mas ainda na República Centro-Africana, o major elogiou na sua página do Facebook a “integridade” e a “coragem moral” do seu ex-superior, coronel Luís Vieira. Quanto a si próprio, confessou-se “arrependido, mas de consciência tranquila”. Uma contradição nos termos muito adequada a toda esta trapalhada.