Os investigadores da Polícia Judiciária Militar (PJM) são dados a “operações-relâmpago”. Era de esperar. Tome-se o exemplo do caso dos Comandos, que resultou das mortes, em setembro do ano passado, dos recrutas Hugo Abreu e Dylan da Silva, na sequência de “golpes de calor” e desidratação extrema, na “Prova Zero” do curso nº 127. Os restantes 65 instruendos foram de imediato ouvidos na sede da PJM, no Restelo (Lisboa), numa maratona que parecia não ter fim.
Em salas autónomas, eram inquiridos seis recrutas de cada vez, em audições que, por depoente, chegavam a prolongar-se ao longo de meia dúzia de horas. Mas não só. “Ouvimos um total superior a cem testemunhas, algumas mais de uma vez”, diz o major Vasco Brazão, porta-voz da PJM. Apenas um mês após as mortes de Hugo Abreu e Dylan da Silva, a procuradora Cândida Vilar, do DIAP (Departamento de Investigação e Ação Penal) de Lisboa, recebia da PJM um relatório intercalar, já com propostas de constituição de arguidos.
A magistrada viria a acolher essas sugestões e, com o desenrolar das averiguações, exarou, em junho último, um despacho de acusação em que atribui a 19 arguidos, oficiais e sargentos, o crime de abuso de autoridade por ofensa à integridade física (em graus diferentes), que o Código de Justiça Militar pune com prisão de oito a 16 anos. O processo segue agora para instrução, sob a direção de um juiz.
Independentemente do êxito, ou insucesso, da sua tese (julgamento pelo Código Militar, em lugar do Código Penal civil, que prevê para os crimes em causa penas de prisão bem mais suaves, com máximos de dois e três anos – decisão que cabe, em 1ª instância, ao juiz de instrução), a VISÃO perguntou à procuradora Cândida Vilar como foi trabalhar com investigadores da PJM. “Gostei”, respondeu a magistrada. “Respeitam a autonomia da condução do inquérito pelo Ministério Público e são coesos entre eles. E dentro dos meios militares, muito fechados, têm informações que mais ninguém terá”, acrescentou Cândida Vilar.
Desde 1993, a PJM possui, por lei, uma única dependência hierárquica: o ministro da Defesa. Não tem justificações a dar às chefias militares. Proliferam, pois, os anticorpos castrenses. O diretor da PJM, coronel Luís Vieira, sentiu-os agora na pele.
Oficial Comando, o Dia do Regimento há de ser o único do ano em que, com visível gosto, diz quem viu, enverga a farda (no resto do tempo anda à civil, como os operacionais que dirige). Mas não recebeu o habitual convite para participar no “Dia dos Comandos”, comemorado a 29 de junho último. Proscrito para sempre?
VOLUNTÁRIOS, RIJOS, MAL PAGOS
“Justos e tenazes” é o lema dos investigadores da PJM, à qual concorrem voluntários dos três ramos das Forças Armadas e da GNR (oficiais, que têm de ser licenciados, e sargentos). Após testes psicotécnicos e uma entrevista, há a aprovação ou o chumbo. Os candidatos escolhidos passam depois por um longo curso na PJM, que inclui um módulo de formação na PJ e outro no SIS. A comissão de serviço é de três anos, prorrogáveis, e, em substância, valoriza-se a “experiência” e a “rede de contactos”. O porta-voz da PJM, major Vasco Brazão, é um bom exemplo disso mesmo. Oficial de Cavalaria e licenciado em Ciências Militares, esteve cerca de 11 anos na Polícia do Exército, antes de ser “sondado” para ingressar na PJM.A recompensa, dir-se-ia, há de estar numa espécie de dever cívico cumprido. Os 35 militares (13 oficiais e 22 sargentos) que atualmente constituem as Unidades de Investigação Criminal da PJM, em Lisboa e no Porto, têm consciência de que interferem com lealdades corporativas arreigadas e que isso lhes pode prejudicar a progressão na carreira. E, no entanto, esfalfam-se a trabalhar. Para lá das diligências e do expediente quotidianos, têm, em equipas de dois elementos, tanto na capital como na Invicta, de fazer piquetes à chamada de 24 horas durante uma semana. Sempre os mesmos, ao longo de 168 horas seguidas. A escala é igual para os peritos do seu bem equipado Laboratório de Polícia Técnico-Científica.
E os telefones dos investigadores e peritos de piquete tocam muitas vezes. “A PJM é a polícia que em Portugal averigua a maior tipologia de crimes”, sublinha o major Vasco Brazão. Está inscrito na lei orgânica da Judiciária Militar um “subsídio de serviço permanente”, mas aguarda-se há cinco anos que uma portaria governamental o regulamente e concretize o respetivo pagamento. Os militares, como se sabe, estão proibidos de fazer greve…
Ainda assim, há avanços. Os DIAP de Lisboa e Porto já têm assessores jurídicos militares. Ajudam os procuradores nos inquéritos averiguados pela PJM, que tem competências de investigação dos “crimes estritamente militares” e dos ilícitos cometidos no interior de instalações das Forças Armadas e da GNR. Se os processos chegarem a tribunal para serem julgados segundo o Código de Justiça Militar, o coletivo de juízes tem de integrar, por lei, um oficial especializado das Forças Armadas, que completa o trio de magistrados.
ARMAS, TANCOS E ‘AVARIAS’
Intrigante, no mínimo, é que, no total dos 310 processos concluídos pela PJM em 2016, 39 tenham a ver com “comércio ilícito de material de guerra”. Mas o major Vasco Brazão desvaloriza o caso. “O elevado número desses inquéritos acontece devido ao recorrente aparecimento de munições, muitas vezes ainda provenientes do Ultramar, e a sua posse, seja por militar ou civil, enquadra-se no referido crime, de acordo com o Código de Justiça Militar”, diz. Contudo, o registo de processos do ano passado também averba nove inquéritos por “extravio de material de guerra”, oito por “furto/roubo de material de guerra”, e dois por “detenção ou tráfico de armas proibidas”.
Isto seria relevante se não tivesse ocorrido, em junho último, o roubo de armamento nos paióis militares de Tancos, algures entre os dias 25 e 28. Nesse período de tempo, os habituais patrulhamentos não foram feitos segundo as regras que estavam a ser seguidas. Ou, outra possibilidade, não se efetuaram de todo.
A PJM avançou logo para mais uma “operação-relâmpago”. Em poucos dias ouviu largas dezenas de pessoas, maioritariamente militares, mas também civis que, antes do assalto, trabalhavam em reparações dos paióis de Tancos e das cercas de vedação – a qual foi cortada para concretizar o roubo do arsenal. Há quem defenda ter sido esta maratona de inquirições que “apertou” os assaltantes e os seus mandantes, levando-os a devolver o armamento roubado.
O certo é que, às três horas da madrugada de 18 de outubro, um oficial da PJM, de piquete nessa semana, recebeu uma rápida chamada anónima, feita de uma cabina telefónica pública, que ainda assim descreveu o suficiente para localizar, na Chamusca, material de guerra abandonado. Estava uma noite de tempestade, com chuva intensa e trovoada. À luz de lanternas, os investigadores militares descortinaram um amontoado de caixotes, no sítio indicado pela voz anónima, uma valeta rodeada de canavial. Mas também perceberam que havia ali caixas de granadas. Impunha-se uma morosa operação de segurança, de certificação de que as caixas e os caixotes não se encontravam armadilhados, de maneira a ser possível o seu transporte para o campo militar de Santa Margarida. Apenas aí, após a abertura das embalagens, os números de série do armamento permitiram obter a certeza de que se tratava do arsenal roubado de Tancos cerca de quatro meses antes.
No conjunto devolvido, porém, não estavam 1 500 munições de 9 mm, que continuam desaparecidas e que especialistas em segurança contactados pela VISÃO acreditam ter sido o objetivo do roubo. O restante material levado pelos assaltantes (264 unidades de explosivo plástico e mais de 200 granadas, algumas das quais antitanque) resultou do “aproveitamento de uma oportunidade”, dizem, mas às tantas “começou a queimar-lhes as mãos”. Por outro lado, aqueles especialistas creem haver uma ligação entre as munições de 9 mm roubadas em Tancos e o desaparecimento, detetado no início de 2017, de 57 pistolas Glock, que se encontravam num armazém da Direção Nacional da PSP, em Lisboa. A investigação deste caso ficou entregue à própria PSP, que sobre ele erigiu um manto de silêncio.
Quanto ao processo de Tancos, e apesar dos reiterados avisos do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, de que quer uma conclusão o mais rápida possível do inquérito, são crescentes os desentendimentos e incidentes entre a Unidade Nacional Contra Terrorismo, da PJ, que a procuradora-geral da República colocou a liderar no terreno as investigações, e a PJM, à qual Joana Marques Vidal atribuiu o papel de “coadjuvante”. O porta-voz da Judiciária Militar recusa-se a pronunciar-se sobre qualquer aspeto do processo. Apenas informa que o relatório do Laboratório de Polícia Técnico-Científica da PJM, de “exame ao local do crime”, na Chamusca, foi já enviado ao Departamento Central de Investigação e Ação Penal.
ENTRAR DE MANSINHO NA REDE
A PJM, convém dizer, não vive só de “operações-relâmpago”. Também mostra resultados em investigações feitas entre os pingos da chuva. Foi o caso, por exemplo, de uma rede de corrupção e sobrefaturação que se estendia por 12 messes da Força Aérea (FAP), de Norte a Sul do País. Em abril de 2014, uma denúncia anónima fez a PJM arrancar com a averiguação. A carta, relata o major Vasco Brazão, mencionava vários nomes de militares ligados às messes, e empresas que há muito tempo forneciam bens alimentares à FAP. “Fizemos uma recolha exaustiva, mas com cautela extrema, para não levantar suspeitas, de todos os militares e civis que trabalhavam nessas messes, bem como dos diferentes fornecedores”, conta o porta-voz da PJM.
A certa altura, o Ministério Público (MP) colocou a questão sobre se valeria a pena continuar a investigar o caso, cujos crimes podiam estar já prescritos – um oficial, importante na rede, havia passado à reserva em 2007. “Defendemos, então, que a probabilidade de a atividade criminosa em causa manter-se em curso era muito alta”, diz o major. O MP aceitou que as diligências prosseguissem. E a PJM tinha razão, recebendo depois, em novembro de 2015, um bónus que deu um enorme impulso à investigação. Um oficial da FAP, recém-chegado a uma base, foi “convidado” (pressionado, na verdade) a entrar no esquema. A sua função interessava à rede. Mas esse oficial denunciou o que se passava à sua hierarquia e, com luz verde ao mais alto nível da FAP, tornou-se num agente encoberto da PJM dentro da rede.
Confrontada, aí, com um processo já de dimensões gigantescas, a Judiciária Militar pediu a colaboração da Unidade Nacional de Combate à Corrupção, da PJ, com mais investigadores e meios. Ao contrário do caso de Tancos, aqui a colaboração entre as duas polícias correu sobre rodas. Em novembro de 2016, a Operação Zeus desmantelou a rede. E, recentemente, o MP acusou 86 arguidos (40 militares e 46 empresários, empresas e trabalhadores) de associação criminosa, corrupção ativa e passiva agravadas, falsidade informática e falsificação de documentos.
Segundo o despacho de acusação, a “conduta indiciada representou uma sobrefaturação em montante não apurado, mas significativamente superior a 2,5 milhões de euros”. E, de acordo com o MP, era um major-general quem encabeçava a rede, recebendo luvas mensais dos seus subordinados. Mas a imaginação policial fez com que Zeus, o pai dos deuses na mitologia grega, desabasse sobre um esquema que parecia perfeito.
(Artigo publicado na VISÃO 1290 de 23 de novembro)