E le está sentado no alpendre da sua casa, sozinho e pensativo. De repente, põe um boné na cabeça, levanta-se e desata a correr. O jardineiro Forrest Gump, residente num condado do Alabama, tão cedo não há de parar de galgar quilómetros. Quando já corre há mais de dois anos (só dorme se vencido pelo cansaço, e come se a fome aperta), de costa a costa, e volta, torna-se um fenómeno mediático. Na quarta vez em que cruza uma ponte sobre o rio Mississípi, um magote de repórteres acompanha-o na corrida e inunda-o de perguntas: “Está a fazer isto pela paz no mundo?”; “Corre pelos direitos das mulheres?”; “Em defesa do meio ambiente?”; “Dos direitos dos animais?” Ninguém acreditava que um tipo corresse tanto por nenhuma razão em especial – mas era o que estava a acontecer.
Como não lembrar a película de 1994, que arrebatou os Oscars de Melhor Filme, Melhor Realizador (Robert Zemeckis) e Melhor Ator (Tom Hanks), quando se tropeça no caso de Rui Pedras? Na última sexta-feira, 15, estava no Pavilhão de Portugal, no Parque das Nações, em Lisboa, pronto para arrancar numa ultramaratona de 145 quilómetros, “pelos caminhos do Tejo”, com meta em Fátima. A distância corresponde a três maratonas e meia. Partiram 44 participantes, mas 20 desistiram. Rui Pedras foi dos que chegaram ao fim. Começou em Lisboa às oito da noite, e às oito da noite do dia seguinte, sábado, 16, cortou a meta em Fátima. Vinte e quatro horas a correr e, por vezes, a andar, quando o cansaço era insuportável. “Foi muito dura esta peregrinação”, diria depois à VISÃO.
Uma vez mais, Rui Pedras, “atleta de pelotão” para quem “o que conta é chegar em bom estado físico”, não resistiu a testar os seus limites. Porém, no decurso da longa “peregrinação”, verificou que ainda não tinha recuperado da violenta prova anterior, que fizera 15 dias antes. Pudera! Desafiado pelo amigo Diogo Simão, arrancou a 31 de maio para o Portugal Ultra Triathlon, que ligou o rio Minho ao Cabo da Roca. Em cerca de 72 horas, Rui Pedras nadou 11,4 km (de Vila Nova de Cerveira a Caminha), pedalou 540 km numa bicicleta (de Caminha ao Cartaxo) e correu 126,6 km (do Cartaxo ao Cabo da Roca). “Pelo menos tinha de tentar”, diz ele. E cortou a meta na ponta mais ocidental da Europa, no “primeiro triplo ‘ironman’ realizado em Portugal”.
Mas quem é, afinal, Rui Pedras? Tem 60 anos e é administrador-executivo de um banco. O que lhe diz o seu médico sobre estas loucuras? “Apenas me aconselha a não ultrapassar os meus limites. Nós sentimo-los, e o corpo dá-nos sinais para abrandarmos. É só obedecer.” Há quem ache, claro, que estas provas são uma moda e um completo exagero. O banqueiro contesta: “Se a Ciência já demonstrou que a prática regular de exercício, em particular da corrida, traz enormes vantagens para a saúde, a prática do “ultra-running”, na minha perspetiva, permite ir além desses efeitos benéficos, quando atingimos um estado de equilíbrio geral em que o corpo e a mente funcionam como um todo.”
Gloriosos “malucos” de Barcelos
A história mais curiosa do meio ultramaratonista nacional talvez seja a que une Rui Pedras a Carlos Sá, o mais cotado atleta português da modalidade. Ambos nasceram em Barcelos e até sofreram lesões graves na mesma e violentíssima prova, o Tor des Géants (TdG), nos Alpes italianos, numa distância de 330 km e com uma elevação acumulada de 24 mil metros.
Outra curiosidade tem que ver com as profissões de ambos. Se Rui Pedras é hoje banqueiro, Carlos Sá, 44 anos, criou o próprio emprego ao tornar-se ultramaratonista profissional no início de 2012, após arrancar um 4º lugar no Ultra Trail du Mont Blanc (103 km), o que levou uma marca de equipamentos desportivos a convidá-lo para a representar. Antes disso, tinha sido operário têxtil, até o setor, nos vales do Cávado e do Ave, colapsar. Depois fez trabalhos verticais a limpar vidros e a pintar edifícios, mas chegou a crise do imobiliário e ficou outra vez desempregado.
E eis que, logo em 2013, Carlos Sá salta para a ribalta mediática, ao vencer a ultramaratona de Badwater, no Vale da Morte, na Califórnia. Completou os 217 km da prova em 24 horas e 38 minutos. Aquelas designações dizem tudo sobre a dureza da corrida, que se desenrola numa estrada que atravessa o deserto de Mojave, com a temperatura máxima a ultrapassar os 50ºC. Porém, o bafo irradiado do alcatrão chegou aos 76ºC. “Senti na pele a fúria do Vale da Morte”, diz Carlos Sá. É difícil, contudo, falar de ambientes extremos com o ultramaratonista. O maior desafio que enfrentou até hoje na carreira, garante, aconteceu em 2016, na Gronelândia, onde percorreu 700 km em 12 dias, sob temperaturas entre os -15ºC e os -20ºC.
Pedro Amorim, o médico que o acompanha, sublinha que o atleta reúne todas as características fisiológicas ideais para um ultramaratonista. Se o coração de uma pessoa normal bate à volta de 60 vezes por minuto durante o sono, o de Carlos Sá regista 28 pulsações em repouso. Depois possui uma elevada capacidade de transportar e de metabolizar o oxigénio durante o exercício físico, uma grande eficiência na produção de energia para as células e uma percentagem generosa de fibras lentas que facilitam o fornecimento sanguíneo celular em esforços de longa duração.
E o que se ganha? É pouco. A Marathon des Sables, no deserto do Sara, é a prova com melhores prémios. Quem ganha cada uma das seis etapas recebe €1 500. E o 1º lugar no pódio final vale €5 mil. A propósito, Carlos Sá recorda que só a logística de que precisou na ultramaratona de Badwater, que venceu em 2013, orçou em cerca de €10 mil. O atleta é hoje dono de uma empresa de eventos, que organiza, por ano, oito provas no País e que proporciona estágios a ultramaratonistas renomados.
Carlos Sá é o “ídolo nacional” de Rui Pedras. A primeira vez que correram juntos foi em 2011, na Marathon des Sables. “Foi fantástico o que aprendi com ele nessa semana que durou a prova”, lembra o banqueiro que persistirá no pelotão: “Espero poder continuar a correr e a fazer triatlos longos e ultralongos ainda durante muitos e bons anos.”
O que é preciso ter
É considerada uma ultramaratona qualquer prova cuja distância ultrapasse a da maratona (42,195 km). Antes de se lançar na aventura, saiba o que é essencial, segundo um especialista, o médico Pedro Amorim, chefe de serviço do Departamento de Anestesiologia, Cuidados Intensivos e Emergência do Centro Hospitalar do Porto
– Resistência à fadiga, à dor e ao sono
– Resiliência, capacidade de se manter focado
– Experiência nas distâncias e tipo de terreno, em altitude e temperaturas extremas
– Capacidade de habituar o organismo a ingerir e a digerir alimentos e líquidos durante o esforço, selecionando os nutrientes mais bem tolerados
– Progressão através de distâncias cada vez maiores
– Aconselhamento e treino apropriados
– Capacidade de, durante as provas, conhecer o corpo, de “ouvi-lo”, monitorizando a frequência cardíaca, a respiração, a diurese, o peso e a capacidade cognitiva
– Saber detetar sinais de desidratação, hiponatremia, hiper ou hipotermia, hipoglicemia, fadiga, perda de capacidades cognitivas
– Ser humilde perante os grandes desafios da Natureza, no contexto de distâncias longas