Estamos no centro urbano de Alcobaça, num estúdio minúsculo de um prédio em frente de um curso de água que aglutina os rios Alcoa e Baça. A conversa com Radu Caraus, 24 anos, transporta-nos no tempo e no espaço para mais de quatro mil quilómetros dali, para Cimislia, no Sul da Moldávia, a sua cidade natal. O episódio aconteceu pouco antes de o seu pai, Igor, o trazer (e à irmã, Romica, mais velha) para Alcobaça, tinha ele nove anos. Acordou de manhã na casa dos avós paternos, bebeu um chá, comeu uma fatia de pão com manteiga e foi para o jardim. Deparou-se com um desafio: peras maduras, às quais não conseguia chegar. Era difícil subir à árvore, que tinha os ramos de baixo podados. A solução estava na construção de uma escada de madeira com três metros, que não havia por ali – o tipo de decisão que Radu já tomava, extasiado.
Logo reuniu tábuas e pregos para dar forma ao projeto. No entanto, apareceu-lhe na oficina a avó, zangada por causa do barulho. Era Dia Santo, em que “não se bate prego”, lembra-se Radu de a ouvir dizer. O rapaz fez de conta que entendeu e respeitou o raspanete, esperou que a avó adormecesse na habitual sesta, e levou a tralha para mais longe de casa, onde terminou a construção da escada. Ao entardecer, foi experimentar o seu produto. “Subi a escada e comi uma pera grande e muito saborosa”, recorda o moldavo-português no seu estúdio de trabalho, em Alcobaça. “Até hoje, não comi nenhuma que me soubesse tão bem.”
Há um passado que explica o presente (mais de 2,5 milhões de subscritores e 400 milhões de visualizações nos seus três canais no YouTube, onde ensina a construir brinquedos com materiais simples, como o papelão) e o futuro que Radu quer perseguir. Quando a Moldávia pertencia à União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), o jovem considera que a sua família integrava a “classe média alta” de Cimislia. O pai, médico veterinário, e a mãe, Svetlana, psicóloga e professora do ensino primário, ocupavam bons cargos na administração local. Com o desmoronar da URSS, o nível de vida dos Caraus também ruiu. O que tinham de poupanças no banco passou a valer quase nada. Independente desde 1991, a República da Moldávia é hoje o país mais pobre da Europa, segundo o Índice de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas.
Filho dos “novos escravos”
Radu viveu, desde pequeno, as dificuldades resultantes da imensa reviravolta geopolítica em consequência da queda da URSS. Os pais não podiam dar-se ao luxo de lhe comprar brinquedos – e ele, tal como as outras crianças, teve de aprender a fazê-los. Com seis ou sete anos, observava a desenvoltura técnica dos mais velhos. Depois, na oficina do avô paterno, tentava replicar o fabrico dos mesmos objetos. “Não ficavam grande coisa”, diz. Os pregos acabavam desacertados e faltava-lhe a força para cortar a madeira com um serrote. Mas, persistente, tornou-se cada vez mais habilidoso com as ferramentas. Começou a fazer arcos e flechas, fisgas, muitas cabanas, lanças, escudos, carrinhos e canas de pesca – para não falar na escada de três metros.
Foi nessa altura, no início do século, que o pai tentou encontrar melhor sorte para a família em Portugal, integrando a vaga de imigrantes do Leste europeu a que, à época, uma reportagem de capa da VISÃO chamou Os novos escravos. O médico veterinário Igor Caraus foi parar a Alcobaça, para trabalhar nas obras. De seguida, a mulher juntou-se-lhe. A psicóloga e professora Svetlana Caraus arranjou emprego nas limpezas. Depois, chegaram os filhos, Romica e Radu. Viviam num apartamento no centro da cidade, que o rapaz achava “muito bonita”. Tinham melhores condições de vida, mas Radu sentia a falta dos seus amigos de Cimislia, dos passeios na floresta, de inventar…
Foram tempos árduos. Na escola foi “alvo de racismo, claro”, como diz. “Andar à pancada nos intervalos era o prato do dia.” Tudo isso, porém, a somar ao exemplo que via nos pais, ajudou-o a “ser resistente” e a “criar carácter”. E voltou às invenções, agora por necessidade. A certa altura, o pai arranjou trabalho numa fábrica de enchidos, no Sardoal. A família passou a viver numa zona industrial, onde Radu não tinha outras crianças com quem brincar. Solução: brincar sozinho. Como? Construindo duas enormes e pormenorizadas aldeias em miniatura, uma de cowboys e outra de índios. Já tinha com que ocupar o tempo livre.
TUBALATUDO & RADIFF, LDA.
Quando estava no 11º ano, um amigo disse-lhe que era possível ganhar dinheiro a criar conteúdos para a internet. Para Radu, não era nenhum quebra-cabeças – bastava-lhe mostrar o que fazia desde pequeno. Criou um blogue onde ensinava a fazer brinquedos e armas medievais, que logo angariou um grande número de visualizações. Seguiu-se o primeiro canal no YouTube, o Tubalatudo, e depois o crazyPT, que ainda hoje é o maior dos três que tem na plataforma. E o que deixa Tubalatudo, o seu “nome de guerra”, mesmo feliz é receber pelo Facebook fotos de pais e filhos com a legenda de que construíram juntos um brinquedo que ele lhes ensinou a fazer por vídeo. “Nunca me vejo como um youtuber – que é hoje quase sinónimo de ser parvo –, mas como um maker, alguém que faz coisas”, define-se.
Terminado o 12 .º ano, Radu balançou entre o desejo de tirar um mestrado e o de continuar a evoluir no YouTube. Decidiu-se pela segunda via e não está arrependido. Hoje vive sozinho em Alcobaça (os pais residem em Londres e a irmã em Coimbra), financeiramente autónomo (através das receitas da publicidade nos seus canais), e mal consegue dormir com os projetos que lhe fervilham na cabeça. Agora, em edição de autor, lançou O Livro das Engenhocas (preço: €25), no qual ensina a fazer, ao pormenor, dez projetos que selecionou. Prepara-se, também, para criar um novo canal no YouTube, sob a marca Radiff (associa o seu nome ao conceito de “diferente”), dedicado ao ensino do fabrico de peças (de mobiliário, por exemplo) em impressão 3D, tecnologia que Radu acredita ir provocar “uma revolução tão grande como a da internet”. Nem era preciso que o dissesse, mas aqui fica: “Desde que um projeto me faça feliz, não tenho medo de arriscar.”
O útil é bom
Radu Caraus apostou em canais no YouTube com conteúdos úteis – e acertou. Tem mais de 2,5 milhões de subscritores. Aprender a fazer um minibarco ou um skate a motor? Os canais de Radu ensinam a fabricá-los lá em casa. Também pode ser um carrinho robô de duas rodas ou um perfeito avião de papel. O moldavo-português provou que o conteúdo útil gera igualmente visualizações e uma enorme interação.