Há 11 meses, Mário Machado ficou livre da prisão, mas com a cabeça a prémio. Mais cedo ou mais tarde seria perseguido por um dos seus inimigos. O ex-dirigente da Frente Nacional, e rosto mais conhecido do movimento skinhead em Portugal, tinha até conseguido conquistar mais alguns ódios durante os dez anos que passou na cadeia, condenado por vários crimes como extorsão, agressões e discriminação racial.
Reaproximar-se dos Portugal Hammerskins (PHS), que fundou vinculado à fação mais perigosa do movimento internacional de extrema-direita, não era uma opção: nenhum membro se esquecera de que Mário Machado traíra o atual líder, Bruno Monteiro, escrevendo uma carta a ameaçar de morte a sua companheira, caso a mesma não lhe entregasse 30 mil euros. Ao mesmo tempo, os Hell’s Angels, que tinham conseguido conquistar território em Portugal nos últimos anos, também prometiam não esquecer que Mário Machado, em 2009, teria disparado um tiro numa perna de “Thor”, um dos membros da fação algarvia daquele grupo motard.
A retaliação não tardaria e Mário Machado sabia disso. Apesar de estar em liberdade condicional, e aconselhado a manter uma postura discreta, tentou proteger-se, aliando-se aos únicos que poderiam fazer frente aos Hell’s Angels: os Bandidos, seus arqui-inimigos.
A vingança acabaria mesmo por ser servida à hora de almoço do dia 24 de março deste ano, num restaurante no Prior Velho, em Loures, onde Mário Machado se reunia com alguns dos líderes estrangeiros dos Bandidos, para discutir a abertura de um primeiro capítulo (filial) do gangue em Portugal. Dezenas de membros dos Hell’s Angels entraram no restaurante munidos de facas, paus e barras de ferro, e acabaram por fazer seis feridos (entre eles, o cabecilha dos Bandidos na Alemanha, que ficou ferido com gravidade). Fugiram antes da chegada da polícia. Mário Machado saiu ileso da emboscada e protagonizou uma autêntica cena de filme de gângsters para as câmaras de televisão: passou um dedo pelo pescoço, simulando um ato de degolação, como quem promete que também se vingará.
Os Hell’s Angels e os membros do Bandidos Motorcycle Club (MC) são rivais históricos e têm travado pelo mundo lutas tão sangrentas que algumas chegaram até a ser batizadas com predicativos como “A grande guerra nórdica dos motociclistas”. Em Portugal, ainda não se tinha assistido a esta luta de gangues até ao episódio do Prior Velho. Enquanto os Hell’s Angels estão representados no nosso país desde 2002 – com fações (os chamados capítulos, em terminologia motard), em Cascais, Lisboa, Algarve, Setúbal e Porto – e praticamente sem concorrência, os Bandidos ainda só têm uns pequenos aliados no nosso país: os Red & Gold, grupo motard fundado por Mário Machado já depois de sair da cadeia.
Atuação em Portugal
Os Hell’s Angels montaram a emboscada no Prior Velho para darem um sinal a Mário Machado de que não se esqueceram da violenta agressão a um dos seus membros, mas sobretudo para marcarem território. Fonte ligada à investigação explica à VISÃO que, em Portugal, um pouco como por todo o mundo, grupos como os Hell’s Angels têm conquistado terreno por terem “o monopólio da segurança privada ilícita em discotecas, bares de striptease ou festas de motards”: “Quem domina os negócios da noite acaba por controlar outros negócios ilícitos como o tráfico de droga – sobretudo cocaína e metanfetaminas –, o tráfico de armas, embora em menor grau, ou a exploração de mulheres.”
Por saberem que estes clubes não se costumam poupar a vinganças e estão dispostos a guerras reais pelo controlo do território, a Unidade Nacional de Contraterrorismo da Polícia Judiciária tem mantido os elementos dos dois clubes sob vigilância máxima. Além do culto do monopólio, os membros destes grupos de motards “cultivam códigos de violência e de silêncio”: “Não são admitidos delatores. Entra quem dá provas de lealdade, havendo quem seja chamado a praticar crimes como sinal de coragem, conseguindo assim os votos necessários para se tornar membro efetivo da organização”, diz a mesma fonte da investigação.
Estes gangues – que, convém separar as águas, são uma minoria entre os clubes de motoqueiros – estão associados em todo o mundo às ideologias de extrema-direita por terem também uma forte expressão racial. Não será por acaso que os Hammerskin Nation partilham uma estrutura piramidal e um vocabulário muito semelhante ao grupo dos Hell’s Angels, nascido em 1948 na Califórnia. Para se ser um Angel “full colour”, isto é, um membro efetivo que já pode participar em todos os eventos e usar os emblemas do grupo no seu colete ou casaco de couro, incluindo a célebre caveira com asas, podem ser precisos muitos anos, provas e rituais de iniciação (ver caixa A Hierarquia dos Hell’s Angels). Quem sai do clube é obrigado a devolver todos os emblemas e até as tatuagens poderão ter de ser removidas à força.
O primeiro capítulo dos Hell’s Angels em Portugal foi fundado em Cascais por um imigrante alemão que estivera ligado, no final dos anos 90, ao tráfico de estupefacientes, diz à VISÃO uma fonte que se dedica a investigar estes grupos que, nos últimos anos, têm sido vistos como uma ameaça em praticamente todos os relatórios sobre segurança na Europa, Estados Unidos da América ou Canadá. Em Portugal, a expressão criminosa dos Hell’s Angels – que ainda hoje tem entre os seus membros muitos estrangeiros residentes no País – nunca atingiu o grau de violência de outros países, mas os seus elementos também nunca foram propriamente vistos como uns bons rapazes aficionados por motas Harley-Davidson. Afinal, o seu histórico não é pacífico.
Em 2014, mais de 20 membros do grupo tentaram invadir a discoteca Dock’s Club, em Lisboa, armados com facas, ferros e paus. No ano anterior, em 2013, uma dúzia de filiados do clube atacou elementos das forças de segurança que estavam de folga e participavam na Concentração Internacional de Motos de Faro. Já em 2008, durante o mesmo encontro, dez elementos dos Hell’s Angels agrediram sem razão aparente dois espanhóis e um português que estavam sentados numa esplanada. Em 2009, um alemão membro do clube foi detido no Algarve e depois extraditado. Era alvo de um mandado de captura internacional pelo homicídio de um elemento de um gangue rival na Alemanha. E, em 2005, pelo menos seis Hell’s Angels protagonizaram outra história de violência. Sequestraram e espancaram um ex-membro do grupo na própria casa, com o objetivo de lhe extorquirem 8 mil euros e uma Harley- Davidson.
Motoqueiros e gângsters
Hell’s Angels Motorcycle Club foi fundado em 1948, em São Bernardino, Califórnia, quando alguns grupos que gostavam de andar de mota, e tinham nomes como “Pissed Up Bastards”, resolveram fundir-se com outros, formando um clube maior. O nome Hell’s Angels terá sido inspirado numa esquadrilha de aviação militar. Na década de 50, surgiram pelos Estados Unidos da América os primeiros charters (capítulos) e, em 1961, o grupo deu início a uma estratégia de expansão internacional, primeiro para o Canadá e para a Nova Zelândia, e depois para a Europa, com o primeiro capítulo do nosso continente a ser inaugurado em Londres, em 1969. Hoje, os Hell’s Angels têm mais de 250 filiais espalhadas pelos cinco continentes. O presidente do capítulo de Oakland, nos EUA, ocupa o topo da hierarquia, sendo ali o centro de decisões de toda a organização. “Sonny” Barger é, aliás, o membro mais emblemático dos Hell’s Angels – também conhecidos por “HA” ou por “81”, devido à posição das letras H e A no alfabeto.
O grupo expandiu-se durante quase duas décadas praticamente sem concorrência. Seriam precisos 18 anos para ser formado aquele que viria a ser o seu principal clube rival, também nos EUA: Bandidos MC, fundado em 1966, no estado do Texas, por Donald Chambers, ex-veterano da Guerra do Vietname, alegadamente em honra dos bandidos mexicanos que se recusavam a viver segundo as regras. “Ele queria que os motociclistas fossem ‘durões’, que não se preocupassem com nada, exceto com as suas Harley-Davidson. Queria que vivessem apenas para a estrada. Sem regras, sem passado, sem família, apenas para a estrada”, escreveu James F. Quinn, um professor da Universidade do Norte do Texas, que estudou a fundo os gangues de motociclistas. Segundo o Departamento de Justiça dos EUA, os Bandidos têm já mais de 2 500 membros espalhados por 13 países.
Não foi preciso muito tempo até uns e outros entrarem nos radares das polícias. Logo nos anos 60, os Hell’s Angels deixaram de ser vistos como um grupo de amigos que se juntava para concentrações motard ou que assegurava a segurança de espetáculos de bandas famosas, como os Beatles. Em 1965, um relatório do estado da Califórnia tinha dados tão assustadores sobre criminalidade dentro do grupo que o jornalista Hunter S. Thompson resolveu infiltrar-se no gangue, durante cerca de um ano. Com essa experiência – que acabaria com Thompson a ser esmurrado e expulso do grupo, porque alguns Angels não confiavam nele –, o jornalista acabaria por escrever o livro Hell’s Angels: A estranha e terrível saga de gangues motociclistas fora da lei.
No relatório estatal – conhecido como Lynch Report –, descrevia-se como as comunidades rurais viviam aterrorizadas com o gangue de motociclistas. Eram enumerados casos de tentativa de homicídio, assaltos e atos de violência, destruição de propriedades, violações e outras agressões sexuais. Os seus membros, descrevia-se no relatório, vestiam-se como “piratas”, tinham grandes barbas, usavam um brinco em cada orelha, eram “vingativos, incorrigíveis e organizados”.
Thompson acompanhou-os nas suas viagens, bebeu nos seus bares, assistiu às suas brutalidades, conheceu os seus caprichos sexuais e, no final, disse que por pouco não se converteu ao estilo de vida das estradas. Os Angels, escreveu, eram violentos, imprevisíveis e perigosos, sim, mas o Relatório Lynch exagerara na análise. “Os Hell’s Angels tentam não fazer nada pela metade e qualquer pessoa que lide com extremos está destinado a causar problemas, quer queira, quer não. Isso, juntamente com a crença na completa retaliação por qualquer ofensa ou insulto, é o que torna os Hell’s Angels incontroláveis para a polícia e fascinantemente mórbidos para o público em geral”, escreveu.
Em estado de guerra
Do lado dos Bandidos, foi Chambers, o próprio fundador do grupo, o primeiro responsável por o seu clube parecer aos olhos do FBI mais como um sindicato do crime organizado do que como um bando de motards aficionados e implacáveis. Em 1972, o ex-veterano de guerra foi condenado a prisão perpétua pelo homicídio de dois traficantes de droga em El Paso. A polícia espalhou a história de que Chambers e outros Bandidos tinham obrigado as vítimas a cavarem as suas próprias sepulturas antes de serem mortas. Na década seguinte, em 1984, um tiroteio entre os Bandidos e outro grupo chamado Comancheros matou sete pessoas e feriu outras 28, em Milperra, perto de Sidney, na Austrália. O incidente ficou conhecido como “Massacre Milperra” ou “Massacre do Dia do Pai”. Já em 2015, os Bandidos foram protagonistas de outro tiroteio num restaurante da cidade de Waco, no Texas, por causa de uma disputa territorial com outros gangues. Nove pessoas morreram e 18 ficaram feridas.
Porém, os espetáculos mais sangrentos foram aqueles em que, de um lado, estiveram os Bandidos e, do outro, os Hell’s Angels. Os dois mais temidos gangues de motards do mundo protagonizaram aquela que ficou conhecida como “A Grande Guerra Nórdica dos Motociclistas”, na região da Escandinávia, uma luta pelo controlo de território e do tráfico de droga. O conflito, que duraria entre 1993 e 1997, deixaria um rasto de pelo menos 11 mortos e mais de 90 feridos. Os incidentes incluíram uma explosão que mandou pelos ares uma casa que pertencia aos Hell’s Angels, numa cidade portuária da Suécia. Os dois gangues voltaram a enfrentar-se novamente no Canadá, no final dos anos 90 e primeiros anos do século XXI. Dessa vez, o conflito – que ficou conhecido como “A Guerra Quebec dos Motociclistas” – custou 150 vidas.
Em 2010, a Europol, polícia de investigação europeia, temia a eclosão de novos confrontos, entre gangues de motocilistas, como os que ocorreram na Escandinávia. Chamava-lhe “risco claro de guerra”. Os dados da Europol, da Interpol, do FBI ou do Serviço de Inteligência do Canadá coincidem neste ponto: Hell’s Angels e Bandidos dedicam-se sobretudo ao tráfico de droga, ao roubo e à extorsão. “A maior parte dos capítulos desses grupos de motoqueiros é criminosa”, dizia na altura o chefe de comunicação da Europol. A grande preocupação está agora centrada na Europa Oriental, sobretudo na Turquia e Albânia, onde os Hell’s Angels se aliaram a outros grupos de motociclistas. Na Holanda e nalguns estados da Alemanha, o clube foi proibido por suspeitas de ligações ao crime organizado e violento.
Fora da Europa, há muito que são velhos conhecidos da polícia e dos serviços secretos: o Departamento de Segurança dos EUA incluiu-os na lista de organizações criminosas; os Serviços de Inteligência do Canadá classificaram-nos como “um dos quatro grandes bandos de motards a combater”. Em 2014, 17 países europeus e seis países parceiros da Europol elevaram-nos à categoria de “ameaça nacional”. Bem longe da ilusão romanceada do motard rebelde e sem causa.