Era uma vez um príncipe que decidiu tornar-se jardineiro e instalar-se em Portugal…
Se aqui poisou os olhos, caro leitor, saiba que está prestes a embarcar numa história mirabolante, que vai das montanhas longínquas do continente indiano aos serenos arrozais da Comporta, passando por Paris, pela Normandia e pelo vale do Loire, em França. Uma récita que inclui o mundo da alta Finança, castelos com jardins onde crescem centenas de espécies de tomate, um incêndio devastador e até um assassínio. Por estas páginas hão de passar príncipes e princesas, ministros e cientistas, um prémio Nobel, uma vidente, uma loira que muda um destino e uma morena que se torna companheira de uma vida. Em todas as cenas, uma personagem comum – Louis-Albert de Broglie.
Este príncipe francês, nascido em Paris a 15 de março de 1963, filho mais novo do duque de Broglie, ministro de De Gaulle, descobriu a Comporta… e quer comprá-la. A venda está a ser gerida pelo Tribunal do Luxemburgo, uma vez que a dona de mais de 50% do fundo imobiliário que gere a herdade é a Rio Forte, empresa do grupo Espírito Santo que foi à falência. A transação, que poderá rondar os 400 milhões de euros, visa recuperar créditos devidos aos credores do Espírito Santo, sendo o maior a Caixa Geral de Depósitos. No ano passado, a venda da Comporta já era dada como certa; o comprador seria o empresário português Pedro Almeida, 72 anos, radicado na Suíça, que fez fortuna com o petróleo e queria construir ali um resort de luxo. No Luxemburgo já estava dado o aval, mas em novembro o Ministério Público português impediu o negócio, não levantando o arresto dos bens.
É nesta janela de oportunidade que entra Louis-Albert, agora em fase de contactos com o Luxemburgo para levar a cabo uma proposta de compra. O príncipe conheceu a Comporta que considera um “cruzamento entre a Europa, a Ásia, com os seus arrozais, e a África, cheia de aves e uma relação telúrica com a terra” em 1995, aquando do casamento de um amigo. Mais de 15 anos depois, recebe um telefonema: “Sabes aquela casa de que gostaste? Está à venda.” Meteu-se no avião, comprou-a, recuperou-a e mudou-se sem hesitar, com a sua mulher, Françoise, deixando para trás o escritório de Paris (que foi outrora atelier de Delacroix e de Monet), o castelo no Loire e a Deyrolle (um projeto cultural e educativo, com sede em Paris), que tem feito as delícias dos seus dias.
A propriedade na Comporta, um conjunto de casas de arquitetura tradicional e recuperadas e decoradas a seu gosto, é o seu lar; aquele que, diz, se tudo desaparecesse, mais falta lhe faria. É de lá que sai, todos os dias do ano, para mergulhar no Atlântico, do outro lado da duna, e de onde volta com o que encontra no areal e lhe serve de matéria-prima para as suas esculturas. Ali instalou as casas de madeira do século XVIII, que comprou em Timor, e é ali que se recolhe depois das viagens que ainda o levam à China, ao Brasil ou à sua França natal, com os projetos em prol de um futuro mais sustentável.
Tem também uma casa em Lisboa, onde oferece jantares a advogados, arquitetos, jornalistas. Integra-se bem na sociedade portuguesa e já teve à sua mesa um “Prémio Pessoa”. Recebeu-o como recebe toda a gente: descalço. Elegante mas despretensioso, de sorriso sempre aberto, Louis-Albert de Broglie já passou por louco – ou excêntrico. Ri-se. Considera-se um homem de convicções fortes e com muita intuição.
O PESO DA HISTÓRIA
Terceiro de três filhos rapazes, nasceu no seio de uma família que impõe respeito. Broglie, um nome oriundo do Piemonte italiano, entrara no léxico francês no século XVII, pronunciando-se de forma diferente conforme se quisesse referir a família (foneticamente ” “) ou a localidade da Normandia (” .gli”), na qual esta se instalara, dando o nome à terra.
Catorze anos mais novo do que o filho varão, Louis-Albert passou a infância e a juventude no 16ème arrondissement, em Paris, e, aos fins de semana, na casa de Broglie – um castelo medieval por várias vezes reconstruído, em que se esconde a maior biblioteca francesa privada e o laboratório de um antigo prémio Nobel. A coleção de livros lá permanece, herdada de Madame de Staël, mulher de um antepassado seu, bem como o local de trabalho de Louis de Broglie (Nobel da Física em 1929, pelo seu trabalho sobre a natureza ondulatória dos eletrões) e do seu irmão, também ele físico, Maurice.
Nesse castelo, cujas portadas demoravam horas a abrir e a fechar, tal era o seu número, sempre se acordou cedo. Louis-Albert corria para a rua, onde se juntava àqueles que trabalhavam a terra, cortavam madeira, ordenhavam as vacas, tratavam da horta. Apesar de ser príncipe (título recebido de Francisco I da Áustria, no século XVIII, pelos serviços militares prestados pelos Broglie à França e à Áustria, na guerra contra a Prússia) e de ser irmão de um duque (título este concedido, no século XVII, pelo rei Louis XV e usado pelo chefe da família), Louis-Albert gostava de brincar com as crianças da aldeia, de partilhar com elas a fruta, os legumes e a madeira colhida. Ainda hoje se lhe iluminam os olhos ao contar como adorava acordar a ouvir a relva a ser cortada pelo jardineiro (um paraquedista da Segunda Guerra Mundial, onde perdeu um braço). Diz que a sua relação “virtuosa” com a natureza, a noção do equilíbrio e da responsabilidade em relação à terra, vem desse tempo.
Mas a sua vida não foi só alegrias e facilidades. Numa noite de Consoada, tinha ele 13 anos, saía o pai de casa do contabilista quando é surpreendido por dois tiros na nuca e outro no peito. Deputado, por várias vezes ministro, no tempo de De Gaulle, é recordado pelo filho mais novo como um homem “brilhante, interessado pelas ideias, desligado do conforto” que, apesar de ter motorista, preferia chegar ao Conselho de Ministros no seu 2CV, com os sapatos cheios de terra, após dar uma volta pela propriedade. Ainda hoje, 40 anos depois, os motivos do assassínio do pai de Broglie estão por desvendar.
ENTRE DOIS MUNDOS
Aos 18 anos, Louis-Albert decide ir passar férias à Índia. “Ia por três semanas e fiquei três meses”, a andar pelas montanhas. Voltou mais zen e otimista, ciente de que “quando se anda na montanha, vai-se de um ponto a outro, independentemente das dificuldades. Não há más notícias, há ensinamentos”.
Depois, regressou à terra. Tinha estudado durante 15 anos nos Jesuítas, frequentara Franklin (colégio das elites francesas). Tirou o curso de Gestão e quis partir para o Brasil. Arranjou um encontro com um alto quadro do BNP Paribas, para se aconselhar sobre o seu futuro, mas enganou-se nas horas e chegou 60 minutos mais cedo do que o previsto. A caminho a sala de espera, entrevê uma estátua de Tara (a bondosa deusa hindu, a salvadora que leva os náufragos do mundo para a “outra margem”). Entra no gabinete para admirar a peça e, não tarda, é surpreendido pelo ocupante da sala. Conversam sobre Tara, sobre a Índia, sobre a sua ida para o Brasil… e sai de lá com uma oferta de emprego. Mudaria de azimute, o Brasil podia esperar. Seguiria para a Índia.
Esteve sete anos ao serviço do BNP Paribas, a maior parte do tempo trabalhando na avaliação de unidades hoteleiras e na conversão de dívida em capital. Começou pela Índia, onde, fascinado “pelos que estavam ao serviço dos outros”, criou, com um padre indiano, uma associação de apoio às crianças leprosas, com uma escola e um centro médico, nos arredores de Nova Deli a Nayee Asha, que significa Nova Esperança. Dois anos depois, o banco põe-no a calcorrear o mundo e o príncipe vira yuppie. “Lembro-me do divertido que era apanhar um avião para ir de uma festa a outra”, conta-nos. Só que aquela vida não o preenchia. “Não tínhamos objetivo. Ao fim do dia, não restava nada”, referiu, em 2008, à revista Vanity Fair.
Estava no Canadá quando o irmão do meio, Philippe-Maurice, lhe ligou. Apesar de já terem três castelos, vinha propor-lhe comprar mais um, agora em Montlouis-sur-Loire, no Centro de França. Calhava bem, ia visitar uns amigos chegados (donos do Clos Lucé, onde Leonardo Da Vinci passou os últimos anos da sua vida) e assim dava uma olhada na propriedade. Estava um bonito dia de sol, e o castelo, no topo de uma colina, pareceu-lhe saído de um conto de fadas. Comprou-o. Corria o ano de 1991, Louis-Albert tinha 29 anos e trabalhava há sete no BNP Paribas. Um ano depois, a mãe e um tio tiveram um AVC e o jovem príncipe decide mudar de vida. Demite-se do banco e investe o que tem no seu novo castelo, La Bourdaisière.
UM PASSO PARA O FUTURO
Dedicou-se à reconstrução, à descoberta do espaço, ao regresso à terra. Foi à procura das sementes e dos grãos que o senhor Coquerelle, o jardineiro da sua infância, lhe mostrava e distribuía pela propriedade familiar da Normandia. Trouxe outras da Índia e demais paragens. Estabeleceu contacto com guardiões de sementes antigas e começou a plantar.
Hoje, tem mais de 650 espécies de tomate – encarnados, laranja, amarelos, verdes, roxos, brancos, pequenos, rugosos, enormes, com nomes que não lembram ao diabo: Hawaian Pineapple, Celebrity, Chapman, Chello, Cherokee Green, Chinese, Coeur de Pigeon, Cornue des Andes, Cotelee de Valence, Creole, Dad’s Sunset, Dr. Lyle, Erka d’Australie, Eros, Glamour, Glasnost, Hank, Jerusalém, Mark Twain, Green Sausage, Peron, Ping Pong, Poil Branc, Rayon de Soleil, Taxim Téton de Venus e aí por diante. O projeto tomou uma dimensão tal que, em 1998, La Bourdaisière foi declarado Conservatório Nacional do Tomate.
Ao lado da horta, no meio do parque de 55 hectares, o castelo é agora um hotel de charme. Louis-Albert ainda conseguiu criar ali uma miniquinta ecológica, com a qual pretende promover um novo tipo de agricultura, inspirada na permacultura (um sistema que se baseia em princípios agrícolas e sociais que replicam a realidade observada em ecossistemas naturais). Para o príncipe, este é apenas um projeto-modelo. A sua ideia, materializada no Fermes d’Avenir (Quintas de Futuro), é mostrar como este modo de cultivo e de vida não só é mais saudável e sustentável como também é mais barato. Não parece disposto a descansar antes de difundi-la por esse mundo fora. É a sua forma de praticar a máxima “Pensar globalmente, atuar localmente”, difundida no século XX.
UM MIDAS DOS TEMPOS MODERNOS?
Louis-Albert de Broglie abraçou a causa e tem-na usado em todos os projetos em que se tem metido desde que deixou a banca. A par da aposta nos jardins, na horta e na quintinha, também lançou, com igual sucesso, a marca Prince Jardinier (Príncipe Jardineiro), alcunha pela qual o tratam os amigos desde que passou a viver a tempo inteiro a causa ecologista. Foi à Normandia buscar os utensílios do senhor Coquerelle e reproduziu-os. Criou igualmente uma linha de acessórios e de roupa de trabalho (macacões, coletes, luvas, aventais, chapéus) que tem sido vendida nas lojas de Paris. Louis-Albert, que anda preferencialmente descalço, parece o rei Midas: o que toca transforma-se em ouro, em sucesso.
Sempre com um olho no futuro, o príncipe não deixa esquecer o passado. “Pour l’avenir” (“Para o futuro”) é o lema da família de Broglie. Colou-o à quintinha, mas também à Deyrolle, casa nascida em 1831, com o intuito de conservar espécies e de divulgar produtos pedagógicos, e que fez as delícias de artistas como Dubuffet, Salvador Dalí ou André Breton e até serviu de cenário para o filme Meia-Noite em Paris, de Woody Allen… Hoje é uma espécie de museu, uma loja de curiosidades (com esqueletos, animais dissecados e empalhados, quadros cheios de insetos) instalada bem no Centro de Paris.
Deyrolle está virada para o futuro, mas nem sempre foi assim. A 31 de dezembro de 1999, estava Louis-Albert em casa de uns amigos, à espera da passagem do ano, quando uma conviva, vidente, lhe pede insistentemente cinco minutos. Não descansou enquanto não lhe disse que, no ano que estava prestes a começar, uma loira haveria de mudar a sua vida. E, de facto, conta, nesse ano, uma amiga loira liga-lhe, dizendo que a Deyrolle estava à beira da falência e que a família contava vendê-la a uma marca francesa de luxo. O príncipe aproveita e, no início de 2001, compra-a para lhe dar novo fôlego.
Mas, mais uma vez, as coisas não correm como previsto. A 1 de fevereiro de 2008, pelas seis da manhã, um incêndio devastou a casa. Três horas depois já tinha na cabeça um plano para a reerguer. A editora Gallimard publicou um livro (com textos de Pierre Assouline e fotografias de Bettina Rheims) sobre a história de Deyrolle, cujos fundos reverteram para a sua reconstrução. Hermès criou um número limitado de um lenço de seda, com o mesmo fim. No final desse ano, o mais novo dos irmãos de Broglie receberia ainda o valor das vendas de obras sobre a fragilidade da natureza, assinada por três dezenas de artistas (como Miquel Barceló, Sophie Calle, Nan Goldin ou Jan Fabre), vendidas num leilão organizado pela Christie’s.
DE PARIS PARA A COMPORTA
Depois de recuperar La Bourdaisière e de transformá-lo num hotel de charme, de criar o Conservatório Nacional do Tomate e a Quinta para o Futuro, de dar novo fôlego à Deyrolle, o “Príncipe Jardineiro” virou-se para outras paragens. Tem dado palestras sobre sustentabilidade, ecologia, biodiversidade, educação e arte, sobre a necessidade de criar territórios resilientes e de pôr a economia ao serviço do Homem e do território, e não o seu contrário.
Em resumo, tem-se empenhado em globalizar a ideia de que é preciso pensar o território, nunca perdendo de vista o tríptico que guia a Deyrolle: Natureza – Arte – Educação.
Recentemente, deu dois passos importantes na expansão da sua filosofia. No final de março, o presidente da Câmara de Versalhes anunciou o vencedor do concurso público para criar o 9.º bairro de Versalhes: Louis–Albert de Broglie e a Deyrolle. “Terras de Versalhes” (assim se chama o projeto) dará corpo a esse tríptico. Dois meses antes, assinara, na presença de Emmanuel Macron e de dois ministros franceses, o dos Negócios Estrangeiros e o da Economia, um acordo com as autoridades chinesas para a criação de um parque cultural e ecológico na região de Sichuan, ao lado do Parque dos Pandas.
E se Versalhes está em curso e Sichuan bem lançado, no que Louis-Albert pensa, desde que para cá se mudou, é no projeto que gostaria de criar, na Comporta, fazendo com que o Alentejo e Portugal se posicionassem como “defensores da ordem, uma inspiração do que deve ser o território do século XXI”. Sonha agora em erguer naquele pedaço de terra frente ao mar, rodeado por três reservas naturais, um território que siga o seu tríptico. Já pensou em tudo: diminuiria substancialmente o índice de construção, criaria mais áreas verdes, mais zonas agrícolas, dinamizaria a economia local, sem esquecer de nela integrar a arte e a educação.
A sua ideia passaria por criar sete centros: um de agroecologia, inspirado na permacultura (para dar formação nesta forma de trabalhar a terra e de gerir a floresta); um centro de inovação low tech e high tech, que potenciasse a produção agrícola local; uma escola alternativa (inspirada na filosofia Montessori e nas escolas verdes de Bali) que investisse na autonomia e na inovação; um centro de arte (um museu de Arte Natural e de Arte Contemporânea), como uma arca de Noé; um centro de média-medicina e de bem-estar e um de reciclagem e transformação; e, por fim, um centro de conferências, onde se juntassem regularmente grandes cientistas, gestores e a sociedade civil, para debater e divulgar temas como os oceanos ou a saúde alimentar.
Segue sempre o mesmo lema: Natureza (preservando o ecossistema e cultivando a biodiversidade), Arte (devolvendo a identidade aos territórios), Educação (usando inovação, adaptando as economias, fomentando o equilíbrio). Chamou a este projeto “Comporta Utopia”. “Utopia?!” perguntámos. Ri. “Não. Não somos utopistas. Somos realistas, pragmáticos”. Utopia, diz, citando Victor Hugo, “é o futuro do amanhã”.
A conversa vai longa. Por fim, o príncipe lembra a frase de Maximilien de Robespierre, que sempre teve pendurada na parede do seu quarto e que ele adotou como seu lema de vida: “Le discours sans l’action, c’est du vent” (“O discurso sem a ação é vento”).
QUEM É ESTE PRÍNCIPE?
– Louis-Albert de Broglie nasceu em Paris a 15 de março de 1963
– Filho mais novo do duque Jean de Broglie, deputado e ministro de De Gaulle
– Sobrinho-neto de Louis de Broglie, que foi Nobel da Física em 1929
– Casado com a haitiana Françoise Gardère, não tem filhos
– Estudou Gestão e começou por fazer carreira na Banca
– Criou o Conservatório Nacional do Tomate
– Deu novo fôlego à casa de curiosidades Deyrolle (quase bicentenária)
– Está a conceber um parque cultural e ecológico na China
– Desenhou a cidade do século XXI para Versalhes
– Quer fazer da Comporta um exemplo vivo do seu ideal Natureza-Arte-Educação