A cela em que entramos é um cubículo de cinco por três metros, frio e húmido. Vemos dois catres, roupa velha a secar, papéis e livros (incluindo o Código Penal), um lavatório e uma sanita encafuados a um canto, e uma TV, que transmite os quatro canais generalistas e alguns do cabo. Estamos na Ala 4, com 134 presos, da cadeia de Pinheiro da Cruz, em Grândola. Aquele habitáculo é a atual cela, a nº 28, onde vive o recluso octogenário António Batista Gonçalves, Xerife de cognome, que cumpre 24 anos de prisão.
A 13 de abril de 2000, foi condenado à pesada pena por um crime de associação criminosa, dois crimes de furto de uso de veículo na forma continuada, 26 crimes de furto qualificado, um crime de furto qualificado na forma tentada, outro de resistência e coação sobre funcionário, outro ainda de dano qualificado, mais um de furto de uso de veículo, e de furto qualificado na forma continuada, e finalmente um crime de detenção de armas e munições proibidas. Nos fundamentos da sentença, decidida por um coletivo presidido pelo juiz Jorge Langweg (e confirmada, após recursos, na Relação de Évora e no Supremo), surge um Xerife a liderar uma sofisticada “quadrilha”, os Mau-Mau, de Olhão.
Lê-se no documento que o gangue “possuía informadores” na PJ, na PSP, na GNR e até “na secretaria do Tribunal Judicial de Olhão”, o que lhe “permitia, normalmente, frustrar qualquer investigação policial”. Os alvos a assaltar eram “previamente visitados e analisados”. Na altura dos furtos, “os membros da quadrilha iam equipados com armas”, distribuídas pelo “cabecilha António Gonçalves”, que também lhes fornecia “radioemissores recetores que permitiam o contacto permanente entre os vários elementos, ficando um de vigia”, para garantir a “segurança nos assaltos”. Foi ainda apreendido pela Brigada Anti-Crime da 2ª Esquadra da PSP de Faro, que teve êxito na investigação porque “a sua estrutura não esteve minada por informadores da quadrilha”, um “scanner de frequências rádio”. Ao lado, encontrava-se “um papel onde estavam inscritas as frequências rádio da GNR e da PJ”, prevenindo-se assim o grupo de “ser surpreendido pelas autoridades policiais”.
Tamanha sofisticação, porém, não impediu um caricato fracasso. Aconteceu, descreve a sentença, quando ia já avançada a noite de 23 de setembro de 1996. Xerife e quatro elementos da sua “quadrilha” dirigiram-se às instalações da Makro na Guia (Albufeira). O objetivo era o de “estudarem a maneira de neutralizar o sistema de alarme”, para um futuro “assalto ao estabelecimento”. Xerife “encostou um escadote à parede norte” e começou a trepar. Tentava alcançar uma pequena janela. Mas o segurança de serviço detetou as movimentações e, do interior da grande superfície, fez chegar ao grupo um recado, através do sistema de som exterior: ou desandavam ou chamava a polícia. O gangue pôs-se rapidamente ao fresco. Nem quiseram ver a cara do segurança inoportuno.
Evasão tranquila
Escrutinada a sentença, conclui-se que o furto mais lucrativo dos Mau-Mau teve como alvo a Loja do Camarão, em Vilamoura (Quarteira), em fins de dezembro de 1997 (ver caixa O gangue que até trabalhava no Natal). A coberto do breu noturno, arrombaram as fechaduras das portas de entrada. Depois, limparam as câmaras frigoríficas – 452 kg de camarão e 50 kg de lagosta. Valor comercial da operação: 4 183 contos (€20 869).
Salto em frente na história. Em 12 de abril de 2011, foi concedida a Xerife uma saída precária de cinco dias. A apodrecer na prisão há mais de 13 anos, decidiu não voltar à cadeia. Já tinha 76 anos, haviam-lhe vagamente prometido a liberdade condicional aos dois terços da pena, em 2014, mas não acreditava que viveria até aos 79 anos. Ia morrer na prisão. Impensável. E dava como saldadas as suas contas com a sociedade. Foi isso mesmo que, na clandestinidade, disse numa entrevista à SIC, em julho de 2011, com a cara de Xerife desfocada – um regresso encapotado à ribalta mediática, depois das parangonas nas décadas de 1980/1990.
No parlatório da cadeia de Pinheiro da Cruz, encontrámos um velhote baixo, de um metro e 62, alquebrado pelos seus 82 anos, embora de discurso escorreito, memória espantosa e olhos verdes vivaços. Estava vestido com um kispo e umas calças de fato de treino rotos, e nos pés tinha umas sapatilhas gastas. Tão longe do verdadeiro e mulherengo Xerife, aquele que, no auge da vida, se apresentava de cabelo puxado para trás, comprido e amestrado com laca, fato impecável (muitas vezes branco, no verão), sapatos a condizer e, dissimulado, o coldre com a sua arma.
A evasão não foi uma aventura por aí além, relatou Xerife à VISÃO. Começou por se fechar durante três meses na padaria da família (aprendeu a profissão com o pai), a trabalhar. “Fazia por noite uma média de 250 pães com chouriço”, conta. Dormia no andar de cima, que tinha instalações de habitação. Só passados aqueles meses inaugurou, ao cabo de 13 anos, a cama da imponente vivenda que construiu em Olhão. [A casa ficou pronta no dia em que foi detido, 1 de janeiro de 1998…]
Às tantas, dava-se até ao luxo de ir à ilha da Armona, ao largo de Olhão, onde uma das suas filhas tem um café-restaurante e um minimercado.
Também ‘Robin dos Bosques’
Armado, garante, é que não andava, “por causa da situação em que me encontrava”. É altura de esclarecer a obsessão pelas armas, que lhe valeu o cognome de Xerife. “Gosto do mecanismo, como há pessoas que gostam, por exemplo, da mecânica dos relógios”, alega. “Mas nunca disparei contra ninguém. Preferi sempre jogar a minha arma fora, mesmo quando disparavam contra mim. Não queria vir para a cadeia tantos anos e, ainda por cima, ficar com remorsos de que tinha matado uma pessoa.” Só as disparava, diz, “no campo, a atirar a latas, ou em carreiras de tiro”. Era o seu “passatempo”.
E a que se deve a alcunha de Mau-Mau? Aí é preciso recuar aos anos 50. Apesar de baixo e franzino, o rapaz António tinha fama de ir direito a quem o ofendesse, ou à família, sem olhar a pergaminhos. “Porra que tu és rijo, és mau”, comentavam amigos. António ganhou esse outro cognome, Mau-Mau, que depois se estendeu aos três irmãos e a todo o clã.
À época, as notícias revelavam a explosão de uma sangrenta guerrilha tribal no Quénia, contra o colonizador britânico, a qual ficou conhecida como “a revolta dos Mau-Mau”. Está explicado o mimetismo.
Residentes em Olhão lembram que António Gonçalves ainda teve uma terceira alcunha: Robin dos Bosques, porque “roubava aos ricos para dar aos pobres”. Nem o marketing pessoal o homem descurava.
De volta à evasão. Xerife era com frequência visto por populares na cidade. Confrontada na altura com o facto pelo Diário de Notícias, uma “fonte policial” não recorreu a sofismas. Disse ao jornal que não estava “a ser dada prioridade a esse caso porque não é uma pessoa perigosa e, enquanto nos for passando informações de outros grupos criminosos, é mais útil em liberdade do que detido”.
Os tribunais, esses, emitiram dois mandados de captura. O primeiro foi enviado à PSP de Olhão, mas era válido para qualquer outra autoridade. Caso da Polícia Marítima, que deu de caras com Xerife na ilha da Armona e optou por pedir um novo mandado, com caráter de urgência. O documento até foi passado no momento, mas quando os polícias regressaram à ilha já o evadido tinha desaparecido.
‘Receio de reincidência’
Xerife seria apanhado numa rotineira Operação Stop da GNR, em Faro, na madrugada de 9 de dezembro de 2011. Quando, tarde demais, se apercebeu da barreira policial, os nervos traíram-no. Virou o carro para uma estrada de terra batida sem saída. Os militares acharam estranha a manobra, decidiram averiguar e ir ao encontro daquele Ford Fiesta. Descobriram-no ali perto, parado debaixo de uma árvore, ao lado de casas térreas. Ao volante, Xerife, que não ofereceu qualquer resistência. Estava desarmado e sem nenhum documento de identificação. Oito meses e dois dias após o fim do prazo da saída precária, regressava à cadeia de Pinheiro da Cruz.
À data de 15 de agosto passado, segundo dados da Direção-Geral dos Serviços Prisionais, Xerife era um dos nove reclusos com mais de 65 anos que cumpriam, nas cadeias portuguesas, penas entre 20 e 25 anos de prisão (punição máxima permitida). Mas num universo de 301 reclusos dessa faixa etária, encontravam-se 119 sentenciados por homicídio, 39 por abuso sexual de crianças e 38 por tráfico de droga. A seguir à punição máxima, no entanto, as penas mais elevadas oscilavam entre seis e nove anos de prisão, abrangendo 63 reclusos idosos. Enigmas da Justiça, que aparenta bater forte em quem furta e mais levemente em quem mata ou abusa de menores.
Com os juízes de execução de penas, Xerife não tem tido melhor sorte. Já viu a liberdade condicional ser-lhe chumbada seis vezes – a última há poucos dias. O conteúdo dos despachos judiciais repete-se. No elenco de “factos” penalizadores, além da evasão de 2011, lê-se que é a segunda vez que cumpre pena (em 1988 foi condenado a quatro anos de cadeia por furtos qualificados, detenção de armas de fogo, falsas declarações e falsificação de documentos) e que, em 2013, o surpreenderam “na posse de um telemóvel”.
De resto, “por razões de economia processual”, os juízes dão por inalterados os fundamentos das reprovações anteriores. “Continuamos a ter presente o intenso passado criminal e penitenciário do recluso, pautado pela prática de diversos crimes e graves. (…) Também continua presente o comportamento do recluso quando decidiu não regressar de uma licença de saída jurisdicional, violando desse modo, e mais uma vez, a confiança que o sistema de justiça depositou em si (…).” Este “circunstancialismo”, escrevem os magistrados, “faz-nos recear pela reincidência, receio este que não é afastado pelo facto de o recluso dispor de apoio no exterior e de enquadramento laboral, pois isso nunca o impediu de delinquir.”
‘Não faliu o BPN, não destruiu o BES…’
Magalhães e Silva é um dos mais antigos e conhecidos advogados penalistas da praça lisboeta. A título de exemplo, foi convidado pelo International Senior Lawyers Project a defender pro bono Rafael Marques, quando uma dezena de generais próximos do Presidente José Eduardo dos Santos apresentaram, no Ministério Público de Lisboa, uma queixa-crime por difamação contra o jornalista e ativista angolano, após a publicação do seu livro Diamantes de Sangue. O advogado aceitou e teve êxito – o processo foi arquivado.
Abordado pela VISÃO sobre o caso de Xerife, nas vésperas de o recluso octogenário ser pela sexta vez ouvido por uma juíza de execução de penas, com vista à eventual concessão da liberdade condicional, Magalhães e Silva vislumbrava ali um “regime que a Inquisição não desdenharia”. E perguntava: “Será crível que, 20 anos depois dos furtos praticados, um velho de 82 anos, no limite da esperança de vida, e cuja razão de viver tem assentado na porfia de não morrer na cadeia, vá voltar a roubar, sozinho ou em quadrilha?” Foi incisivo. “Se um sistema de administração penitenciária e as autoridades judiciárias não são capazes de ter esse mínimo de comunhão com o seu semelhante que obriga a correr o risco de deixar Xerife morrer em liberdade, então alguma coisa vai muito mal nesta República.”
Já Carlos Pinto de Abreu, também contactado pela VISÃO naquela altura, encontrou no caso matéria para escrever um artigo, que publicou no site e no Facebook do Forum Penal-Associação dos Advogados Penalistas. Começou por ser irónico. Xerife “não era um santo, embora conheça pecadores muito piores”. E, anotou o advogado, “não implodiu a PT, não faliu o BPN, não arruinou o BPP, não destruiu o BES, não arrasou o Banif; enfim, não nos tramou seriamente a todos e a todas nós e às gerações vindouras… Só mesmo a alguns e algumas de nós, aqui e ali”.
Pinto de Abreu lembrou que Xerife “nunca cometeu crimes de sangue, não matou nenhum ser humano, nem atentou, isoladamente, em série ou de forma gravosa, contra os seus valores pessoais mais lídimos, a vida, a integridade física, a liberdade e a autodeterminação sexual”. O advogado considera que é preciso “ponderar da verdadeira necessidade e compreender a profunda falta de humanidade das medidas e penas privativas de prisão em situações em que os visados estão no ocaso das suas vidas, às portas do decesso e já não são um risco para sociedade”. Mas solicita a quem de direito que não se atrase nas soluções. “Nestes casos, a demora é mesmo mortal.”
Pelo seu lado, o advogado Ricardo Sá Fernandes referiu uma “situação desumana”. Sublinhava não haver razões que permitam presumir que Xerife “não irá ter um comportamento adequado à vida em sociedade”. Há, depois, “a idade, o longo tempo de prisão já cumprido, durante o qual não ocorreram faltas particularmente graves, a natureza dos crimes cometidos, sem violência sobre pessoas, a inserção social e laboral” – tudo circunstâncias que “justificariam a liberdade condicional” de Xerife. “Negá-la a quem tem 82 anos de idade e está preso há mais de 18 anos”, diz Sá Fernandes, “revela uma inaceitável incompreensão acerca do papel da prisão e uma visão apoucada do que é a dignidade humana.”
Não morrer ‘como um cão’
Xerife parece ter razão quando afirma que apenas será libertado, por imposição legal, aos cinco sextos da pena, que atinge a 4 de setembro de 2018. Não acredita que o mandem embora antes disso. “A minha luta continua a ser a de não morrer na cadeia, como se fosse um cão”, diz. E trabalha para isso. Vai todos os dias ao ginásio da cadeia fazer duas horas de exercício. “Corro e ando na passadeira, faço meia hora de remo, pego nos halteres, seis quilos em cada mão, e puxo pelos braços.” Telefona diariamente à família (já preso, ficou viúvo, e tem cinco filhos, quatro netos e três bisnetos). E insiste: “Quero morrer lá fora e à minha maneira”. Quanto às contas a ajustar no seu submundo? “Já saí, estive lá fora oito meses e não fiz mal a ninguém.”
O gangue que até trabalhava no Natal
Na sentença que em 2000 condenou Xerife a 24 anos de prisão, vê-se que o grupo que liderava era eclético nos furtos que cometia, discretos e eficazes. De lingerie a whisky ou a desumidificadores (estes roubados num 25 de dezembro), há um pouco de tudo. Eis alguns dos furtos mais lucrativos
O assalto-‘boutique’ – Noite de 19 para 20 de setembro de 1996. O gangue de Xerife, formado por 15 elementos, tem como alvo a empresa Soencomendas, em Boliqueime (Loulé). Bastou arrombar uma janela do escritório para entrarem no interior da firma. De um vasto armazém, escolhem levar artigos de desporto, camisas, sapatilhas, vestuário, lingerie, produtos de beleza, mas também material de pesca, bolsas para espingardas e cartucheiras. Valor comercial do furto: 3 085 contos (€15 387).
‘Xerife’, o ‘construtor’ – Os elementos do grupo levavam walkie-talkies quando, na madrugada de 10 de dezembro de 1997, se dirigiram ao armazém da Silmadeiras, em Venda Nova (Silves), para fazer uma limpeza. Arrombaram os portões e depois foi só agarrar em placas e portas de madeira, de várias qualidades, e colocá-las num camião da empresa, que ali estava e de que tinham a chave falseada. Conduziram o pesado, recheado com as madeiras, até uma serração, propriedade de um elemento do grupo, e o material foi aí descarregado. O camião seria abandonado na zona da Guia (Albufeira). Das madeiras furtadas, nem uma simples porta foi recuperada. Valor global do furto: 2 878 contos (€14 355).
Álcool em barda – Batiam as duas horas da madrugada de 16 de dezembro de 1997. O gangue de Xerife apontou à empresa Adega Algarvia, em Almancil (Loulé). Foi com um martelo elétrico que abriram um buraco numa das paredes do armazém da firma, e assim entraram na arrecadação. Esmeraram-se na colheita: 1 606 garrafas de vinho, espumante, whisky, brandy e licores, no valor de 2 715 contos (€13 542).
Estrangeiro ‘depenado’ – Era 25 de dezembro de 1997. Um bom dia para entrar na casa de um estrangeiro endinheirado, que tinha ido passar a quadra natalícia fora de Portugal. Não há aqui espaço para elencar o que Xerife e o seu grupo furtaram da residência, em Moncarapacho (Olhão). Pratos e elefantes em cerâmica, objetos decorativos, relevos em madeira, estais em cobre, um sino ornamentado – mas também dois desumidificadores e uma máquina de afiar lâminas. Total apurado do furto: 2 549 contos (€ 12 714). Só a máquina de afiar foi recuperada.