As brochuras dos Emirados Árabes Unidos (EAU) anunciam praias de areia branca e águas azul-turquesa; arranha-céus de vidro e hotéis luxuosos; piscinas rodeadas de espreguiçadeiras, ocupadas por mulheres deslumbrantes; iates no mar, jatos privados no ar, Lamborghinis em terra. Claro que a publicidade nunca conta a história toda, e não é grande cinismo imaginar que há algum Photoshop aqui e umas modelos pagas ali. Mas, no caso desta federação de sete estados, o que não se vê nas fotos pode fazer a diferença entre umas férias paradisíacas e uns infernais meses na prisão, ou pelo menos um pesadelo judicial: o modernismo transmitido pelas imagens esbarra numa legislação anacrónica, quando vista por olhos ocidentais. E por causa disso, dos mal-entendidos culturais, Abu Dhabi, capital dos EAU, anunciou a criação de um tribunal para resolver os pequenos mas espinhosos casos que envolvem turistas. Para que o valioso turismo do Emirado não continue a ser manchado pelas sucessivas notícias de situações kafkianas a envolver visitantes estrangeiros.
Segundo a organização não governamental Detained in Dubai (Detido no Dubai, e sim, houve necessidade de formar uma associação para apoiar cidadãos estrangeiros enredados em problemas legais na região), o futuro tribunal vai lidar sobretudo com manifestações públicas de afeto – um casal a dar as mãos ou a beijar-se – e de raiva – altercações no trânsito, troca de insultos –, além de embriaguez, vestimentas consideradas inapropriadas (quase invariavelmente envolvendo mulheres) e a captação de imagens de locais proibidos. Casos que podem implicar até seis meses de prisão.
Carícias proibidas
Um dos exemplos mais mediáticos aconteceu no Dubai, em 2008: dois ingleses, apanhados na praia em permuta de carícias, foram detidos e condenados a três meses de cadeia. Apesar de Vince Acors, de 34 anos e Michelle Palmer, 36, garantirem que estavam apenas a beijar-se, o juiz acusou-os de indecência pública, embriaguez e manter relações sexuais fora do casamento – o problema é que o homem e a mulher não eram um casal, estavam um casal. E essa é outra mecha para a cultura e para as leis dos Emirados. No fim, Vince e Michelle só escaparam a uma pena de seis anos porque prometeram (mentindo) casar-se. Mas da humilhação ninguém os livrou.
Outro casal, também britânico, enfrentou a justiça por partilhar um quarto de hotel sem ser casado – mais uma vez, a acusação passou pelo sexo extramarital, e só um documento a provar o matrimónio os livrou de prisão efetiva. Outros dois ingleses foram levados para a esquadra porque uma criança local disse tê-los visto a beijarem-se, apesar de ele e ela garantirem que tinham apenas trocado um amigável beijo na cara. (E se fossem dois homens ou duas mulheres seria bem pior – a homossexualidade é estritamente proibida na federação. Um casal gay que revele o mais leve carinho mútuo pode vir a ter problemas sérios.)
Uma situação bem mais grave, e também recorrente, aconteceu o ano passado com outra inglesa. Violada por dois homens, acabou detida pela polícia quando foi apresentar queixa. A acusação em tribunal: sexo fora do casamento. Só depois de uma intensa campanha internacional é que as autoridades acabaram por abandonar o processo.
Isto não significa que qualquer casal de turistas a dar as mãos ou a beber uma cerveja seja encaminhado para uma cela. Na realidade, na maioria das vezes as autoridades fazem vista grossa aos costumes ocidentais. Mas o facto é que as leis existem, e podem ser aplicadas discricionariamente. E nesses casos o mínimo com que uma pessoa pode contar é uma dispendiosa batalha legal, a consequente proibição de sair do país enquanto aguarda julgamento e uma multa no fim. O novo tribunal, ainda sem data definida, pretende diferenciar e agilizar estes casos com estrangeiros, sem ter de mexer na legislação (com o efeito colateral de ter dois pesos para a mesma medida – duas formas de aplicar a lei consoante a nacionalidade).
Álcool legal ou não?
Aparentemente, o tribunal não é imprescindível para os portugueses – até agora, não houve incidentes com cidadãos nacionais, pelo menos que tenham chegado ao conhecimento da embaixada de Portugal em Abu Dhabi, diz-nos o encarregado da secção consular. No site da embaixada, aliás, não consta qualquer tipo de aviso para as idiossincrasias locais (ao contrário do que faz a embaixada britânica, com a sua pormenorizada lista de cuidados a ter, incluindo a obrigação de as mulheres se vestirem de forma “modesta”). Há apenas um texto, relativamente longo, a garantir que o destino é “seguro”, “dinâmico” e “paradisíaco”, repleto de “diversidade”, com “praias inimagináveis”, e que se podem “beber cocktails em luxuosos restaurantes” – sem fazer referência à proibição de consumir álcool em público, fora dos locais licenciados (nem à proibição total no estado de Sharjah). A página da secretaria de Estado das comunidades, por seu lado, refere taxativamente que o consumo de álcool é ilegal nos Emirados, o que também não é totalmente verdade. De resto, no site da secretaria apenas se sublinha que a homossexualidade e a coabitação entre um homem e uma mulher não casados são proibidas e que a lei islâmica é estritamente observada.
Ficam algumas coisas por contar. Mas não se diz que a surpresa faz parte do prazer de viajar?
Quem o avisa…
Os Emirados estão longe de ser os únicos com leis que nos podem parecer arcaicas ou estranhas. Singapura, por exemplo, baniu as pastilhas elásticas comuns. Mas há mais faux pas sérios
Rússia – A “propaganda gay” é proibida, e a lei é suficientemente vaga para permitir que um casal seja detido se se beijar em público, se houver crianças presentes
Japão – Em muitas das grandes cidades (incluindo Tóquio) fumar na rua, fora dos locais expressamente designados, dá direito a uma multa de 50 mil ienes (410 euros)
Singapura – A cidade-estado é a rainha das proibições. A pastilha elástica está banida há mais de 20 anos (só recentemente foi aberta uma exceção para pastilhas com receita médica); cuspir ou mandar lixo para o chão, alimentar pombos, ter relações homossexuais, atravessar a rua fora da passadeira e até esquecer-se de puxar o autoclismo – tudo isto implica, no mínimo, multa
Tailândia – Desfigurar ou brincar com a imagem do rei, seja de que forma for (desenhando numa nota, ou mesmo pisando-a), é punido com prisão; atirar lixo para o chão resulta em dois mil bahts (53 euros) de multa
Outros – Os países com regimes ditatoriais, ou democracias limitadas, são muito zelosos da sua segurança: fotografar um simples palácio que pertença à família real ou ao presidente é o suficiente para chamar a atenção da polícia