Em Portugal, todos os doentes com cancro são registados, em três bases de dados distintas: Norte, Centro e Sul. O Governo pretende agora juntar todos os elementos numa única plataforma, criando o Registo Oncológico Nacional, gerido, na primeira fase, a partir do Instituto Português de Oncologia de Lisboa. Para se ter noção da incidência, da evolução da doença no País e para planear recursos, argumentam os defensores da proposta. Também será possível, a partir daí, perceber como os diferentes hospitais do País tratam os seus doentes, permitindo a cada cidadão fazer uma escolha informada, afirma Nuno Miranda, hematologista e diretor do Programa Nacional para as Doenças Oncológicas, da Direção- -Geral da Saúde.
Estes argumentos não convenceram a Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD), que chumbou o diploma, sugerindo mesmo ao Governo que “expurgue os números correspondentes ao utente e ao processo clínico.” A Liga Portuguesa Contra o Cancro, a principal organização não governamental que representa os doentes, também não está de acordo, propondo a criação de um número de identificação fictício, para efeitos do RON (Registo Oncológico Nacional).
Apesar disso, o projeto de lei já foi aprovado no Parlamento, na generalidade. E irá em breve à votação na especialidade.
O registo nacional vai funcionar em moldes semelhantes ao que tem funcionado o ROR (Registo Oncológico Regional) Sul. Quando este foi montado, não o submeteram a parecer da comissão de proteção de dados?
Sim, claro. Há vários pareceres da CNPD, todos positivos. Em 1998 houve necessidade de legalizar as bases de dados da saúde, penso eu que por uma diretiva europeia, e foi pedido parecer à CNPD. Em 2005, montou-se a nova plataforma eletrónica, onde está sediado o ROR Sul, precisamente com os dados de que estamos a falar [número de utente e nome do doente], e também recebeu vários pareceres positivos.
Neste modelo, do ROR Sul, a informação registada inclui o nome do paciente. Uma informação que será agora eliminada, face às objeções da CNPD
Vamos ver. Eu acho que deve constar.
Qual é mais-valia de se incluir o nome do paciente, além do número do utente?
O que é um registo oncológico? Não é um registo realizado numa única ocasião ou local. Cada caso tem diversas atualizações. Todos os hospitais que tratam determinado doente oncológico têm acesso – mas só aos dados dos doentes que tratam. E, depois, é preciso notar que nem todos os doentes têm número de utente, que só se tornou obrigatório a partir de certa altura. E há os estrangeiros, por exemplo, que podem não ter número de utente e mesmo assim serem tratados. Logo, este número não é suficiente como identificador inequívoco. Também acho que o nome deve estar lá porque responsabiliza muito mais quem usa as bases de dados. Desta forma, está bem presente que se trata de uma pessoa. E não apenas de um número.
Todos os países europeus têm um registo oncológico nacional?
Registos nacionais, não. Desta forma, unificada, têm os países nórdicos, Inglaterra… Os outros gostariam de ter. Mas acabam por ter registos regionais, como é o caso de Itália ou de Espanha, que podem até nem incluir toda a população do país.
Este registo tem como objetivo principal perceber como são tratados e como evolui a doença no País. Em Portugal, temos acesso a todos os medicamentos disponíveis no mercado para o tratamento do cancro tão rapidamente como noutros países europeus?
Mais ou menos. Em alguns casos, demoramos mais a aprovar, noutros demoramos menos. É que podemos discutir se o acesso muito precoce é sempre uma coisa boa. Um dos dramas a que hoje em dia assistimos é a introdução no mercado de medicamentos insuficientemente testados, com toxicidades ainda pouco conhecidas.
Isto acontece em oncologia porque há algum desespero e uma forte pressão dos doentes…
Pois. A questão é que em oncologia temos objetivos muito elevados: a cura ou pelo menos o controlo a doença – aquele chavão de transformar o cancro numa doença crónica. Estamos a assistir a uma época de colheita de muitos anos de investigação, com início, à séria, nos anos 70.
Por vezes tem-se a sensação de que é uma promessa sempre adiada.
Houve pessoas, políticos e não só, que fizeram promessas relativamente à cura do cancro que não podiam cumprir. Mas a melhoria nos últimos tempos é notória: mais qualidade de vida, melhor integração na vida ativa, menos efeitos secundários da terapia. Cada vez olhamos mais para o doente e menos para a doença.
Mas há tipos de cancro onde parece nunca haver boas notícias, como é o caso do pâncreas.
Em relação ao tumor do pâncreas mais frequente, o adenocarcinoma, os resultados ainda são muito maus, é verdade. Mas é também das áreas onde tem havido mais investigação e onde estamos à espera de encontrar resultados positivos nos próximos tempos. Antes, preocupávamo-nos com os insucessos. Hoje, é muito mais importante estudar os sucessos: porque é que este caso correu bem?Como podemos fazer para que os casos que correram mal passem a correr bem?
E a conclusão não será, muitas vezes, a sorte? Ou seja, nos casos que correram bem, não terá a pessoa herdado um bom património genético, por exemplo?
Não necessariamente. Porque podemos tentar perceber como fazer para que uma pessoa que não tenha um património genético tão favorável passe a funcionar como se tivesse. Hoje interessa-nos traçar padrões, analisar big data, olhar para a árvore em vez da floresta.
E isto tudo é possível num cenário algo pessimista para o Serviço Nacional de Saúde: médicos sobrecarregados, poucos enfermeiros por doente?…
Vai-se conseguindo. Mas é um facto que a parte mais crítica não é se o medicamento chegou cá ao fim de três ou seis meses de ser aprovado, mas sim os recursos humanos. E isso será cada vez mais relevante numa população envelhecida, a precisar de mais apoio, de retaguarda.
E como vê Portugal, nesta questão?
Vejo mal. Hoje em dia já se detetam assimetrias em pessoas que vivem em regiões rurais, com famílias mais alargadas, relativamente às que ficam mais sozinhas, sem apoio nas cidades.
O apoio familiar tem impacto no tratamento?
Seguramente que terá impacto na qualidade de vida. Duvido que se venha a traduzir em muito mais do que isso. Mas a qualidade de vida é essencial.
Que grande alteração estatística é que aconteceu nos últimos tempos?
Há vinte anos, o cancro que mais matava em Portugal era o do estômago. E com a mudança dos hábitos alimentares, a diminuição do consumo de produtos de salgadeira, isto inverteu-se. O frigorífico em si [substituindo as formas mais tradicionais de conservar os alimentos, que passam pelo sal e pelo fumeiro] é importantíssimo. Em Portugal, atualmente o que mais mata é o cancro do pulmão. O do cólon está a subir, o do pulmão a descer – estamos sempre à espera que seja ultrapassado, mas continua a liderar.
Ironicamente, um cancro evitável…
Completamente evitável em 90% dos casos.
O que está a falhar?
Temos uma atuação pouco eficiente em relação ao tabagismo, que tem de ser entendido como uma toxicodependência. Há uma certa permissividade social relativamente ao consumo de tabaco, e são as medidas restritivas legais que mais impacto têm revelado, e não as educacionais. A taxação, por exemplo, tem um efeito direto. E porquê? Porque isto é uma toxicodependência. Houve um combate de anos e anos da indústria tabaqueira para negar a evidência científica: que quem tinha cancro do pulmão era quem fumava. E foram precisos muitos combates nos tribunais, em associações internacionais de medicina, com uma pressão muito grande para a negar.
A obesidade também é um fator de risco para alguns tipos de cancro. Faz sentido encarar este problema como se encara o tabagismo, como uma dependência?
Não é que seja um problema de dependência. Mas não depende só da vontade própria. Há pessoas que comem quantidades iguais de comida e uma é gorda e outra não. Os metabolismos são diferentes, a capacidade de absorção da glicemia também. Por outro lado, há fatores psicológicos que regulam o apetite, e quem já tratou doentes deprimidos sabe disso: há pessoas que, quando começam a emagrecer, se deprimem, como consequência da diminuição na quantidade de ácidos gordos. Deprimem-se e como tal têm um apetite quase compulsivo. É preciso olhar para a obesidade de diversas maneiras, tendo em conta os erros alimentares e defendendo o consumo de vegetais, da sopa. A dieta mediterrânica, em suma. Promover o exercício físico, para combater o sedentarismo. Só que é obrigatório ter consciência da realidade das pessoas hoje em dia, com horas perdidas nos transportes, sem tempo para se alimentarem como deve ser. E ainda ter atenção às questões do preço: muitas vezes, a alimentação mais saudável é mais cara.
O leite, que já foi tido como um alimento perfeito, tem vindo a ser relacionado com um aumento da incidência de cancro. Como está esta questão?
Os dados neste momento ainda não são claros. São até conflituosos.
Há quem compare com o tabaco, no sentido de haver também um lobby do leite…
A Organização Mundial da Saúde, em particular a IARC (Agência Internacional para a Investigação do Cancro), tem tido uma posição muito séria relativamente aos temas que estuda. O efeito, a existir, é pequeno. Não acho que neste momento haja motivo para recomendar não beber leite. O que sabemos relativamente à alimentação é que deve ser variada, equilibrada e rica em frutas e vegetais. Isto é claro! Temos hoje a ideia de ciência rápida e imediata. É como nos filmes em que há um problema num avião e uma pessoa que nunca pilotou um Boeing na vida se levanta, vai para o cockpit e aterra a máquina sem problemas, apenas com as indicações da torre de controlo. Mas não é assim. A medicina é uma coisa complicada. Não é ir à loja e comprar.
Para si, a opção de não tratar também é válida?
Claro! O que costumo fazer é pôr–me nos sapatos do doente, e é completamente normal propor não fazer nada. Há situações em que não temos vantagem nenhuma em tratar.