A palavra certa é persistência. Foram necessários 14 anos de trabalho, de pesquisa, de criação e de persistência, para que José António Sousa Uva conseguisse abrir as portas da Herdade de São Lourenço do Barrocal, um turismo rural de cinco estrelas nascido em Monsaraz, no coração do Alqueva, no início deste ano. A propriedade estava na família desde 1820 e o projeto estende-se agora ao longo de 780 hectares, abrangendo dez áreas diferentes, do alojamento à agricultura.
José Sousa Uva tem 41 anos e faz parte da oitava geração à frente daquela que foi uma das maiores propriedades agrícolas do Alentejo. Viveu alguns anos fora do País e diz que foi graças a essa experiência que regressou com um novo olhar. Quis fazer de São Lourenço do Barrocal um projeto autossustentável, que assentasse numa nova forma de estar na vida. “Não o faço por idealismo ou romantismo bacoco, mas por acreditar no Alentejo. A nossa geração deve olhar para as suas raízes e pensar em formas de as adaptar aos nossos dias”, esclarece. Convidou o arquiteto Eduardo Souto Moura para a reabilitação e conta como o Prémio Pritzker o fez “de forma honesta, sem passar por cima do que já existia”. Hoje, dá emprego a 50 pessoas e divide-se entre Lisboa e Monsaraz. Ao fim de semana, a família junta-se toda na herdade.
Desde que foi inaugurada, a “nova” Herdade de São Lourenço do Barrocal tem estado em destaque nas revistas de arquitetura e nas publicações especializadas no setor do turismo. Na região, o impacto não tem sido menor. Aos poucos, José António tem vindo a introduzir pequenas alterações no modo de fazer de sempre. Já convenceu um padeiro a fabricar outras variedades de pão com centeio e uma das olarias da aldeia criou uma linha mais moderna de pratos, utilizada apenas pelos hóspedes. A ideia é preservar ofícios, não confundir por favor com saudosismos.
O turismo tem, pois, vindo a ser um dos grandes motores deste renascimento do Alentejo. Em apenas cinco anos, de 2009 para 2014, o número de estabelecimentos hoteleiros subiu de 153 para 412 (ver caixa). Isto enquanto as indústrias tradicionais e as explorações agrícolas continuaram a sofrer os efeitos da urbanização e da concorrência das grandes produções… É por isso que casos como o da Queijaria Sapata merecem ser notícia. Na estrada que liga Reguengos de Monsaraz ao Redondo, uma pequena propriedade, caiada de branco e azul, anuncia discretamente que chegámos. Lá dentro, Assunção Sapata e o marido, Luís Melo, dividem com dois funcionários o fabrico de queijos, as limpezas e as burocracias da empresa. Assunção cresceu a trabalhar na queijaria da família, provavelmente a única do Alentejo onde a cura dos queijos ainda se faz ao natural.
Em 2010, Assunção e Luís assumiram a gestão da Sapata e o negócio ganhou um novo fôlego. Criaram um queijo amanteigado de 100 gramas e também um requeijão que foi galardoado com o 1º prémio da feira de Serpa. Todos os meses, produzem 40 mil toneladas de queijo, trabalham dia e noite e já exportam 15% da produção, sobretudo para as comunidades de portugueses emigrantes. A Sapata foi até a primeira queijaria (do mundo!) a lançar uma aplicação para Android e IOS, que permite ver onde os queijos Sapata são vendidos. “Queremos manter a proximidade com os nossos clientes e, por isso, recusamos trabalhar com as grandes superfícies”, afirma Luís.
A perspetiva do ‘glocal’
Não é negócio herdado, mas Ana Cristina Cachola também começou a ter contacto com a arte contemporânea em criança. Entre os 5 e os 10 anos, já ela acompanhava o pai a Lisboa, para verem exposições e visitarem ateliês de artistas plásticos. E a relação foi-se estreitando em casa, onde vivia entre peças de arte que ele ia comprando já na ideia de fazer um museu em Elvas. Toda a gente dizia a António Cachola que a sua coleção devia ser exposta na capital, mas o economista e empresário argumentava que a sua cidade ficava no centro da Península Ibérica, e não descansou até inaugurar o Museu de Arte Contemporânea de Elvas (MACE), em 2007.
“Aprendi com o meu pai que não há centros nem periferias, que é importante destruir essa ideia feita”, confessa a filha única de António Cachola, que vive entre Lisboa (onde dá aulas de pós-graduação e doutoramento, na Universidade Católica Portuguesa), Elvas e Campo Maior, mas continua a afirmar – e a sentir – que a sua casa é no Alentejo. É onde mantém um grupo de amigos e para onde vai quando quer pensar calmamente na próxima exposição de que há de ser curadora ou quando precisa de um retiro para escrever. “Já lá escrevi um texto sobre o Pedro Calapez, para Nova Iorque.”
Aos 33 anos, Ana Cristina combate o mito da preguiça dando o exemplo e repetindo que conhece poucas pessoas com mais energia do que os alentejanos. “Somos é mais otimistas e pacientes. E temos um tempo diferente”, argumenta, a fumar calmamente mais um cigarro, mas sempre atenta às horas porque prometeu passar pelo ateliê de um artista cujo trabalho conhece mal. Estamos numa esplanada na Gulbenkian e, no final da semana, havemos de nos reencontrar em Elvas, para a sessão fotográfica.
Na área da arte contemporânea, tem visto nascer vários projetos no Alentejo. “A Fundação Eugénio de Almeida, em Évora, o espaço da coleção do Jorge Gaspar, no Alvito, o Centro de Arte Quetzal, na Vidigueira, o Centro de Artes de Sines… E não estamos a falar de locais com programação pontual.” Com todos tem acontecido o mesmo que no MACE: fazem mexer a região e criam novos públicos. E sempre com a visão do “glocal” – o local com uma perspetiva global, mantendo a diversidade identitária. “A produção cultural é contagiosa, e temos de confiar neste poder de contágio para fazer ainda mais, para que a cultura se propague de uma forma virulenta.” A ação seguinte? Ter consciência desse contágio e perceber o que se pode fazer no Alentejo que não se consegue noutras regiões. “Por exemplo, residências artísticas. Há espaços e paisagens mais propensos à criação.”
Antes e depois do Alqueva
Karsten Larsen faz parte dos 4613 estrangeiros residentes no Alentejo (dados de 2011, os últimos disponíveis). Apesar da população oriunda de outros países continuar a aumentar em permanência desde 1960, o peso dos emigrantes ainda é muito pequeno: 5,6% da população total nos últimos Censos contra 1,9% observados em 1960, quando apenas existiam 141 estrangeiros na região.
Foi difícil convencer Karsten a abrir-nos as portas de sua casa. Tem 55 anos, está há 34 em Portugal, este agricultor dinamarquês, habituado a apresentar os seus negócios pelo mundo fora, mas que pouco gosta de se expor. Começou por uma parcela de 25 hectares na aldeia de Salvada, às portas de Beja, e, a partir daí, estendeu-se por 560 hectares e por uma imensidão de culturas – azeitona, papoila branca, milho, beterraba e outros hortícolas, sendo que quase tudo é exportado para o norte da Europa.
Em tempos, Karsen chegou a ser o único a cultivar milho no Alentejo e, enquanto não chegava a barragem do Alqueva, usava água bombeada do rio. Hoje, os seus terrenos já chegam à margem do Guadiana, mas – ironia das ironias –, embora tenha sido um dos primeiros a acreditar na mudança que o Alqueva traria, foi o último a receber as ligações, por estar mais distante. A espera custou-lhe tanto que chegou a pensar em deixar tudo e recomeçar na Roménia. “Não tive coragem”, conta. “Os meus filhos nasceram cá. Tenho aqui os meus amigos, vou à caça, gosto da comida alentejana e adoro passear de barcos do Alqueva.”
A construção da barragem do Alqueva veio, de facto, beneficiar muitos agricultores. De acordo com a empresa que gere o projeto, a EDIA, 66% dos potenciais beneficiários da rede de água já estão ligados. No entanto, apesar de o primeiro ano de consumo ser oferecido e de, nos seis anos seguintes, os preços ainda serem subsidiados, os pequenos agricultores ainda resistem ao novo abastecimento por causa dos custos elevados de ligação à rede.
Sem raízes na região
Entre os novos alentejanos, também há quem não tenha quaisquer raízes na região. Teresa Pinto Correia cresceu em Lisboa e viveu uns anos no Luxemburgo e na Dinamarca. Quando chegou à Universidade de Évora, em 1997, trazia uma dinâmica aprendida lá fora. “Se é para fazer, então vamos fazer”, há de repetir várias vezes na manhã em que visitamos o Instituto de Ciências Agrárias e Ambientais Mediterrâneas (ICAAM), um centro de investigação vocacionado para as questões da agricultura no Mediterrâneo, que a geógrafa, de 54 anos, dirige no Polo da Mitra, nos arredores da cidade.
Agora, quase 20 anos depois, a investigadora vê que a decisão de se mudar para o Alentejo foi acertada. “Embora seja uma região de baixa densidade populacional, encontra-se sempre alguém que apoia os nossos projetos”, diz. “A universidade tem pouco dinheiro, não estamos numa situação brilhante, mas os portugueses são tão bons como quaisquer outros investigadores. Se temos financiamento, atraímos para aqui como outros atraem. E em Évora há melhor qualidade de vida.” Neste momento, o ICAAM comparticipa em dez projetos europeus, do Horizonte 20/20, e coordena um deles; e tem outros projetos europeus, da Fundação para a Ciência e Tecnologia e de financiamento regional. Resultado: são já 120 os investigadores integrados e 100 os estudantes de doutoramento associados.
Olhando para trás, Teresa vê igualmente que nada teria sido possível sozinha – o seu trabalho é de equipa, também gosta de repetir. “Como diretora do ICAAM, faço crescer os projetos, mas as coisas ultrapassam-me, o que é bom.” Claro que há o clássico poder do exemplo, e aí a geógrafa tem já um enorme capital de confiança, “de fazer um bom trabalho e, com entusiasmo, dar tudo por tudo”. Em casa, com os pais, aprendeu a cultura do rigor e a ideia de missão. “A causa pública é óbvia. Não me passaria pela cabeça trabalhar numa empresa privada.” Não admira, por isso, que o ICAAM trabalhe muito em contacto com os agricultores e as empresas da região, e que Teresa Pinto Correia termine a entrevista a dizer: “O nosso papel também é fazer ciência virada para a sociedade. Não podemos ser predadores.”
Factos são factos e, nos últimos 15 anos, o Alentejo perdeu 51 mil habitantes. E justamente por causa disso, continua a fazer sentido relatar histórias jornalísticas de gente que, contrariando a desertificação demográfica, virou costas ao rebuliço da cidade. “Vivo no fim do mundo, no final de uma estrada cheia de pó, mas no meio do maior planetário do mundo. A vinda para o Alentejo mudou-nos como casal, rio muito mais e deixei de stressar.” Quem o diz é Bárbara Alves da Costa, 40 anos, antiga jornalista da SIC, que em junho do ano passado se mudou com o marido e os três filhos para perto de Grândola. “Um dia, liguei ao Pedro [o marido] para lhe dizer que achava que estava na hora de mudarmos de vida. Começámos logo a idealizar o projeto”, recorda. Fala do Terra do Sempre, um turismo rural inspirado, claro, na história do Peter Pan e nos clássicos da literatura infantil. Valeu-lhes a ajuda de amigos e muitas horas de trabalho. Hoje, os vizinhos fazem parte da rotina da família e dos hóspedes do Terra do Sempre também.
Correr contra a desertificação
De Lisboa a Alcácer do Sal gasta-se uma hora de carro, sempre a cumprir os limites de velocidade. E de Alcácer a São Romão do Sado são só mais 29 quilómetros, um instante para quem conhece bem a estrada. Mas havemos de parar antes, tentados pela pergunta de Paulo Lima: “Nunca ouviram falar do Porto de Rei?” São 11 da manhã, devem estar uns 30 graus e não há água por perto para refrescar este outono mascarado de verão, quanto mais para ajudar a imaginar como era o embarcadouro que esteve ativo até aos anos 40. Em troca, há um cais assoreado, mato por todo o lado, um palacete em ruínas, o seu portal com brasão a denunciar um passado ilustre, e o antropólogo a dizer: “Também faria sentido fotografarem-me aqui”.
Por essa altura, Paulo Lima – “o nosso homem na Unesco”, como é conhecido por muitos – já se entusiasmara a falar do canto do ladrão do Sado, uma forma de improviso tradicionalmente associada aos “pretos do Sado”, os descendentes dos escravos negros que começaram a trabalhar nos arrozais da região a partir do século XVIII. Só depois seguiríamos para São Romão do Sado, a aldeia onde esse canto mais se fazia ouvir antes de ficar reduzida a três ou quatro habitantes.
É por causa dele que este alentejano de 50 anos, que coordenou e festejou as candidaturas do cante alentejano (2014) e dos chocalhos (2015) a Património Imaterial da Humanidade, anda pela zona. Queria apresentar mais uma candidatura, desta vez transnacional, à volta do canto de improviso e dos escravos, mas tudo indica que este “do ladrão” se encontra extinto. A esperança de encontrar pessoas que ainda o cantem é pouca, confessa, apesar de ainda lhe faltar visitar um ou dois lares de idosos. “Chegámos tarde.”
Há muito que Paulo corre contra o tempo, tem de ser. Afinal, é a urgência de preservar que leva a Unesco a atribuir o estatuto de património imaterial a expressões culturais ou tradições como o cante alentejano e a arte chocalheira. E, embora saiba que esse estatuto acaba por ser usado como uma bandeira turística (“Não sejamos ingénuos, isto gera milhões”), continua a acreditar que vale a pena avançar com candidaturas “nem que seja só para chamar a atenção para questões como a desertificação”. Dois anos depois de o cante ter passado a fazer parte da lista, diz que o resultado mais positivo foi o reforço da identidade dos alentejanos (“Sou da geração que ia para Lisboa e era alvo de anedotas”) e o interesse dos jovens. “Antes da candidatura, havia uma centena de grupos ativos; hoje há 170 e o cante já não é uma prática considerada chata, de velhos.”
Os tempos estão a mudar e, as práticas tradicionais passaram a fazer parte de projetos que lhes acrescentaram valor. Nos montes alentejanos, os cantares ganharam outros sotaques e as vilas renascem com novas ideias. De gente que de preguiçosa nada tem, de gente que persiste – e resiste.
NÚMEROS DO ALENTEJO
Explorações agrícolas: 49.742 em 2000; 37.539 em 2014
Iniciado em 2002, o abastecimento de água a partir do Alqueva tem atraído novos projetos agrícolas. Mesmo assim, o fenómeno tem sido insuficiente para estancar a quebra acentuada de explorações agrícolas no Alentejo.
Projetos turísticos: 105 em 2000; 412 em 2014
Na área do turismo, aparecem as boas notícias, com a região a atrair cada vez mais projetos e visitantes. O número de hotéis continua a crescer e, desde 2009, mais do que triplicou, atingindo as 412 unidades em 2014