Na casa de fotocópias colada ao Técnico, um dos itens com mais saída eram “os cadernos da Suzana” – apontamentos das aulas de Análise Matemática ou Mecânica dos Fluidos, escritos numa letra certinha, sem rasuras. Servia para quem não ia à aulas ou para quem se perdia nos próprios gatafunhos. Hoje, aos 42 anos, Suzana da Mota Silva, a autora dos tais apontamentos, trabalha na Agência Espacial Europeia (ESA, na sigla em inglês).
E pode dizer-se que chegou ao destino, depois de um trajeto que a levou a fazer investigação no acelerador de partículas do CERN, em Genebra, a dar aulas na Universidade de Lausanne, a trabalhar numa empresa holandesa de helicópteros e, finalmente, à ESA. Toda uma carreira construída a pensar no espaço.
Como quase todos os 30 alunos da primeira turma do curso de Engenharia Aeroespacial, que abriu em 1992, no Instituto Superior Técnico, desde pequena que queria ser astronauta. Na adolescência não perdia um episódio da série Cosmos, de Carl Sagan, e gostava de perceber como funciona o mundo. Nas missões MetOp-C e Aeolus, que fazem parte do programa de Observação da Terra da ESA, tem como função garantir que não há erros, no setor mais exigente que existe. “Não nos podemos dar ao luxo de falhar.” Um lema que adotou desde o primeiro dia em que subiu a escadaria do Técnico para entrar numa turma que era olhada com muita curiosidade: o que aconteceria aos melhores alunos de engenharia do País? Teria o mercado de trabalho capacidade para os absorver?
Colega de Einstein
Mais de vinte anos depois, é evidente que a aposta está ganha. As vagas cresceram para 85, o curso continua a atrair os melhores – partilhando este ano o primeiro lugar na lista de acesso ao Ensino Superior com outro daquela escola de engenharia, Física Tecnológica – e não há licenciado que esteja sem emprego. Uns trabalham no fabricante de aviões Airbus, na TAP ou nas OGMA, ou em empresas que nasceram após a adesão de Portugal à ESA, no ano 2000, como é o caso da Deimos Engenharia. Também há quem seja “colega de Einstein”, trabalhando como avaliador de patentes, tal como o génio da Física, antes de se dedicar à investigação.
Mas também há quem tenha um percurso que foi parar à Casa Branca. Rodrigo Carvalho, 41 anos, era “o brasuca” da turma. Distinguia-se pelo sotaque e pela capacidade de sonhar acordado. Já fez quase tudo – de um mestrado na Universidade de Cranfield, Reino Unido, uma das melhores no setor da aviação, ao marketing num gigante do setor do retalho. Também trabalhou em empreendedorismo social, enquanto criava as suas própria empresas, como um site de aconselhamento jurídico ou um centro de explicações. Até que descobriu que era capaz de escrever e teve a ideia de criar uma série de desenhos animados para ajudar as crianças a comerem melhor, a Nutri Ventures. Traduzida em dezenas de línguas, a trama de aventuras, pintalgadas de conselhos para uma alimentação saudável, já o pôs de braço dado com a primeira-dama americana, Michele Obama. Também lhe trouxe muitas angústias, que isto de ser empreendedor soa mais sedutor do que é na realidade. Até receber o primeiro sim de um investidor, Rodrigo Carvalho ouviu 86 respostas negativas. “Ser empreendedor é criar valor sem recursos, vulgo desenrascanço”, compara. “Uma capacidade que fomos obrigados a desenvolver durante a licenciatura.”
Profissão: resolver problemas
Samuel Martins, 33 anos, também não escolheu o caminho mais óbvio. Aluno de 19, recusa o título de marrão. Tinha namorada, uma banda de garagem e gostava de ler. Veio de Porto de Mós, Leiria, para Lisboa para o curso de Física Tecnológica. Os pais teriam preferido Medicina – a escolha imediata para quem está quase a rebentar a escala, mas aceitaram uma opção motivada exclusivamente pela “curiosidade intelectual”. Ainda nem tinha acabado o curso e já tinha sido pescado pela McKinsey – metade dos consultores da empresa vem das engenharias. “Aceitei a proposta porque o trabalho era resolver problemas”, revela. Como diz Gonçalo Figueira, professor da licenciatura em Física, “os desafios intelectuais são uma coisa que diverte estes alunos.”
A dada altura, teve saudades da parte técnica e fez um doutoramento em Física, nos EUA. Gostou do País e ficou com vontade de lá viver. Concorreu a uma posição na Fundação Bill e Melinda Gates e ficou. Em Seattle, na sede da Microsoft, reúne-se frequentemente com o milionário para discutir os projetos apoiados pela instituição. É sua responsabilidade acompanhar o desenvolvimento de novos produtos, decidir onde e como se deve investir os milhões da fundação, que combate a malária e a sida. “Durante o curso, aprendi a aprender e isto permitiu-me adaptar-me a qualquer situação, em qualquer área.”
Luís Anjos achava que ia ser cientista, como era “normal” para quem escolhia Física Tecnológica. Mas enquanto se especializava na área da exploração petrolífera e ia percebendo que a via da investigação não era fácil, fez a escolha racional e entrou na Galp. Hoje é o responsável técnico pela exploração e produção da empresa em África. Tem colegas a trabalhar em marketing, telecomunicações, gestão. “É um curso que abre muitas portas.”
Está visto que estes engenheiros podem ser aquilo que quiserem. Até jornalista da VISÃO – como é o caso da autora deste artigo, aluna do primeiro curso de Engenharia Aerospacial do País.
Top 10
Estes são os cursos universitários com as médias de entrada mais altas*
1º
Engenharia Aeroespacial
IS Técnico – 185,3
2º
Engenharia Física Tecnológica
IS Técnico – 185,3
3º
Engenharia e Gestão Industrial
FEUP – 184,8
4º
Medicina
FMUP – 184,0
5º
Medicina
ICBAS – 182,5
6º
Bioengenharia
FEUP – 182,0
7º
Medicina
U. Minho – 181,7
8º
Matemática Aplicada
e Computação
IS Técnico – 180,5
9º
Medicina
U. Coimbra – 179,8
10º
Engenharia Biomédica
IS Técnico – 179,5
* Numa escala até 200