Medicação, sistemas de soro, seringas, material para entubação. O enfermeiro João Domingues verifica o saco onde transporta a sua urgência ambulante antes de deixar o serviço do Hospital Garcia de Orta, em Almada, em direção a casa de Rita Esperança, 83 anos, a primeira doente na escala prevista para o dia em que a VISÃO acompanhou a equipa.
O projeto é pioneiro porque abrange qualquer doente que se dirija às urgências. Depois de observado no serviço hospitalar, o caso pode ser encaminhado para a equipa que faz o trabalho domiciliário. “Se o diagnóstico já for seguro e a patologia puder ser controlada em casa – como acontece com a diabetes, hipertensão, bronquites e insuficiências cardíacas –, se tiver um cuidador fiável, condições sanitárias, um telefone, e não distar mais de 32 quilómetros da urgência, cumpre os critérios para receber tratamento de nível hospitalar sem estar no hospital”, enumera o responsável pela equipa de hospitalização domiciliária, João Correia, que importou a ideia de Espanha, onde há já mais de uma centena de instituições com serviços semelhantes.
O grupo de profissionais, formado por cinco médicos e 9 enfermeiros, além da assistente social, tem a seu cargo 20 camas no domicílio, mas por agora acompanha apenas metade – para começar com o pé direito, diz João Correia. “Ainda há um vazio legal em relação a esta solução, que implica a responsabilização do hospital, embora o doente esteja em casa. Nós fizemos um regulamento, que submetemos ao Ministério da Saúde.”
Apesar dos receios, os dados disponíveis apontam para mais vantagens do que desvantagens em estar no hospital sem sair de casa: diminuição do risco de infeção, desnutrição e desorientação. E, claro, significativa redução de custos. De acordo com as contas do Garcia de Orta, o internamento de 10 dias no serviço de Medicina no hospital chega aos 2285 euros, enquanto em casa o mesmo doente, com a mesma patologia, representa um gasto de 431 euros.
UMA ENFERMARIA EM CASA
Nenhuma daquelas vantagens seria realmente interessante se os doentes perdessem com a troca. Habituada a internamentos regulares e prolongados devido a uma insuficiência cardíaca, Rita Esperança não tem dúvidas sobre o que prefere: “Foi a melhor coisa que me podia acontecer. O médico viu como eu estava e arranjou-me esta equipa para me salvar a vida”, resume, com um sorriso, enquanto responde ao questionário da equipa. Dormiu bem? Com a cabeça alta ou baixa? Já se pesou hoje?
A balança azul à beira do sofá apresenta-se como prova de bom comportamento. A insuficiência cardíaca provoca inchaços e a perda de cinco quilos em apenas quatro dias é a prova de que o tratamento está bem encaminhado.
Entrar em casa dos doentes tem-se mostrado a forma mais eficaz de os educar para a saúde. Ventiladores erradamente utilizados passam à posição certa. Almofadas mal colocadas vão ao lugar. Dietas desaconselhadas passam a pratos equilibrados. “Chegamos a casa de um doente hipertenso, é hora de almoço, vamos à cozinha com ele e ensinamo-lo a preparar a refeição sem sal”, exemplifica o outro médico da equipa, Pedro Azevedo, que ficou na Urgência a avaliar possíveis candidatos ao internamento domiciliário.
Antes de deixarem a casa da família Esperança, médico e enfermeiro verificam o nível de oxigénio no sangue e entregam os saquinhos de plástico identificados com a medicação adequada a cada dia. A doente faz questão de vir despedir-se à porta, mas não passa o portão tapado por roseiras. Afinal, está em casa, mas está no hospital.
MELHOR E MAIS BARATO
A experiência tem demonstrado que é possível alargar este tipo de resposta, até por ser eficaz em patologias que representam 90% dos internamentos nos hospitais: pneumonia, insuficiência cardíaca, bronquites crónicas, infeções urinárias e infeções cutâneas.
A Medicina Interna será a mais solicitada para acompanhar a hospitalização domiciliária. Armando Carvalho, presidente do colégio da Ordem dos Médicos da especialidade, vê estes avanços com otimismo.
“O hospital deve ser um recurso para a doença aguda. O acompanhamento domiciliário é um bom exemplo de como se pode fazer melhor gastando menos.” Mais do que conseguir equipas para estas funções, a maior dificuldade que Armando Carvalho aponta é a avaliação das condições para estar internado dentro de portas. “Que casa? Que apoio pode ter da família?” Mesmo consciente de que “a vigilância no domicílio não é tão perfeita”, o internista acredita que vão crescer as experiências deste tipo.
Antes de arrancar com a carrinha, identificada com o nome do hospital e com o lema “Cuidamos de si em sua casa” estampado na porta, o enfermeiro João Domingues consulta o dossiê da próxima visita. Espera-o um paciente com doença pulmonar obstrutiva crónica.
Afastadas as cortinas que deixam apreciar as orquídeas bem cuidadas dispostas no parapeito, e garantida a entrada de luz desejável a trabalhos com agulhas e soros, António Fernandes desfia as razões da enfermidade que o obriga a andar com uma botija de oxigénio e tubos no nariz. Trinta anos de tabaco dele e dos outros – os clientes que lhe fumaram para cima no café onde investiu uma vida.
Já na quarta visita a António Fernandes, a equipa dispõe o material com à-vontade. Ao ponto de improvisar uma enfermaria: para o tubo de soro chegar ao cadeirão onde se senta António, enrola-se o resto do fio à maçaneta da porta e usa-se o candeeiro da sala para elevar a botija, com a ajuda de uma geringonça de clipes que médico e enfermeiro aprenderam a levar para todo o lado.
Obrigado a uma média de dois internamentos por ano, António, 65 anos, prefere a nova modalidade. Porque evita o “ai, ai, ai” dos doentes do lado, além do cruzar-se com “o caixão que andava sempre ali para trás e para a frente”. Mas, sobretudo, porque evita fragilizar a companheira, com quem vive há 40 anos, que gastava o dia em transportes e canseiras para poder visitá-lo. E até fora ela, aliás, a primeira a precisar do novo serviço. Agora que chegou a vez de António, ambos decidiram que seria melhor ser tratado em casa. Mas não sem antes exigir garantias. “Uma pneumonia é uma coisa grave! Em casa o tratamento também é eficaz?”
A resposta vem positiva e António dá-se ao direito de imaginar as mãos na terra onde plantou os 120 pés de tomate, pepino, pimentos e curgetes, no terreno atrás da casa, perto da Costa da Caparica. Se tudo continuar a correr bem, nos próximos dias terá “alta” – de casa para casa.