É um caso inédito em Portugal e um marco da nossa medicina. Os órgãos de uma mulher, em morte cerebral, foram mantido em funcionamento para permitir a gestação de um feto, que tinha apenas 17 semanas quando a mãe morreu. O bebé, do sexo masculino, nasceu esta terça-feira, 7 de junho, às 32 semanas, com 2,350 quilos.
S. tinha 37 anos e estava grávida de 17 semanas quando, a 20 de fevereiro de 2016 foi declarada em morte cerebral, na sequência de uma hemorragia intracerebral.
“Perante a gravidez em curso, S. foi avaliada pela obstetrícia, que considerou que o feto se encontrava em aparente condição de saúde. Após parecer da comissão de ética e direção clínica do CHLC [Centro Hospitalar de Lisboa Central] e numa decisão concertada com a família de S. e família paterna da criança, foi acordada a manutenção da gravidez até às 32 semanas, por forma a garantir a viabilidade do feto”, informou o CHLC em comunicado.
O parto realizou-se no Hospital de S. José e o recém-nascido foi encaminhado para a unidade de cuidados intensivos neonatais da Maternidade Alfredo da Costa. Tratou-se do período mais longo, registado em Portugal, de uma gestação com a mãe em morte cerebral.
“A morte cerebral é uma paragem do funcionamento do tronco cerebral e é irreversível. Não se trata de um coma, pois um coma é um estado de vida, embora sem consciência. Na morte cerebral não há vida. Mas, com assistência médica, os órgãos podem ser mantidos em funcionamento e foi o que aconteceu”, explica Rui Nunes, médico e professor catedrático, presidente da Associação Portuguesa de Bioética.
“Claro que, a priori, a situação levanta questões e pode causar consternação”, continua. “Pode, por exemplo, afetar a perceção, por parte da família e dos entes queridos da pessoa em morte cerebral, levando-os a sentir que a mesma possa estar a ser instrumentalizada com um objetivo. Mas é um objetivo meritório; trata-se de dar vida a uma vida intrauterina. Sem assistência, o filho morreria”, explica.
Assim, durante 15 semanas, o corpo de S. foi mantido em funcionamento, permitindo ao feto que se desenvolvesse, até que a sua sobrevivência, fora do corpo da mãe, estivesse garantida. Tal nunca tinha acontecido durante tanto tempo.
“É um marco importante na História da nossa medicina e é revelador da capacidade técnica e tecnológica da medicina a ultrapassar barreiras”, acrescenta Rui Nunes.
E a criança? Que questões se levantarão perante o eventual conhecimento da história da sua gestação? “Qualquer pessoa tem direito à sua identidade e ao conhecimento da sua história pessoal. Quer isto dizer que este recém-nascido, quando for adulto, tem o direito de ter esta informação. Para o bem e para o mal”, conclui o médico.