Não sabe precisar quando descobriu. Na verdade, agora que olha para trás, Manuela acha que sempre suspeitou da homossexualidade do filho. “Sabe? Aquela intuição de mãe que não se explica…”. Mas depois, o rapaz trazia raparigas lá a casa, à mãe vinham-lhe esperanças, talvez estivesse enganada. Um dia ela arranjou coragem para o questionar. Ou melhor: o filho provocou a pergunta da mãe, “deu-me pistas, uns toques”. “No fundo, ele queria que eu perguntasse, queria que eu soubesse. Era um segredo que estava a pesar-lhe na alma. Uma pessoa só pode ser completamente feliz se for transparente”, conta Manuela Ferreira. Ficou em choque, chorou durante muito tempo, ao passo que o pai e o irmão encararam a circunstância com naturalidade. “Descobri que afinal era eu a pessoa mais homofóbica lá de casa”, ri-se, hoje, a administrativa, de 57 anos. Tinha medos, assaltavam-na questões: E os outros? E netos? E o que teria feito de errado na educação que dera àquele filho? E a discriminação e as represálias que ele iria sofrer na escola ou no emprego? E o que iriam pensar os amigos da família e os amigos? “Por incrível que pareça, as reações mais violentas vêm da parte de quem os filhos esperam apoio. Os filhos assumem-se, a família fecha-se. Por cada um que sai do armário, há três ou quatro que entram lá para dentro”. No topo das preocupações estão sempre os outros, o olhar dos outros, a censura alheia…” Gera-se um silêncio pesado que pode destruir uma família, e o filho sente que o estamos a esconder. É terrível”. Manuela nunca esqueceu o momento em que recebeu palmadinhas nas costas de consternação, quando contou a certos amigos que o filho era homossexual, “a tentarem consolar-me, como se tratasse de uma doença”. Reagiu, “estruturou a cabeça”, inscreveu-se na Amplos Bring Out – A associação de Mães e Pais pela liberdade de Orientação Sexual, hoje é vice-presidente.
Nos encontros de entreajuda trocam-se experiências, cada pai ou mãe vai no seu estadio de aceitação, uns chegam lavados em lágrimas, outros felizes, “já deram a volta”, “alguns dizem que não querem falar, mas em todos se sente a necessidade de “deitar cá para fora”… “Já ajudámos tantas famílias e ao fazê-lo ajudamo-nos a nós próprios. Todos, de um modo geral, tivemos uma educação homofóbica e por isso as pessoas sentem-se sozinhas neste processo”. O que ainda perturba muito a aceitação dos pais é a religião, mas Manuela não consegue entender que os princípios religiosos possam sobrepor-se ao amor por um filho. “Como é possível rejeitar um filho? Dizer que não se aceita a sua orientação sexual dele é dizer que não se gosta dele”
Hoje o filho de Manuela já é adulto (25 anos), acabou o curso de Antropologia, é optometrista de profissão e tem um companheiro. “É das coisas que mais alegria me dão: poder falar do namorado do meu filho com um sorriso. Sem me sentir encolhida ou com vergonha. Ele teve esse enorme ato de coragem para comigo, que foi assumir-se, que foi dizer-me ‘eu vou ser feliz, mas de outra maneira’”.
Tens a certeza?
Foi por saber que amar não deve custar nem a liberdade nem a vida, que Margarida Faria e o marido criaram há seis anos a associação Amplos (com uma centena de associados). Logo que se aperceberam de que uma das filhas era homossexual, descobriram também que não havia nada do género em Portugal que orientasse as famílias. O momento da aceitação por parte dos pais é crucial para o bem-estar emocional e saudável desenvolvimento de uma criança e adolescente LGBT (lésbica, gay, bissexual e transgéneros). Há estudos que comprovam que muitas destas crianças, que passam por medos, confusão, angústias várias, se não amparadas na altura certa têm probabilidades acrescidas de cair em depressões, bullying, tentativas de suicídio, consumo de drogas… (ver quadro). É, portanto, também de uma questão de segurança: “A discriminação dentro da família é muito mais dramática para eles do que a lá de fora. Onde eles procuram apoio, obtém rejeição”, lamenta a socióloga e presidente da Amplos. “Trata-se”, acrescenta, “das poucas minorias que têm de se revelar perante os próprios pais”. E uma palavra errada na hora errada pode ser devastadora. Dizem os psicólogos, que ficamos sempre muito mais sensíveis e despidos perante os nossos pais. E afinal, a que propósito a pior notícia que um filho pode dar a um pai é a sua orientação sexual?
A associação exerce alguma influência a nível da legislação antidiscriminatória, como no caso da coadoção. Para Margarida Faria, o problema está nas mentalidades e a intolerância tem de ser combatida na infância, no pré-escolar até. Por isso, no tempo do ministro Crato fizeram pressão para que no estatuto do aluno passasse a ser incluída a “não discriminação em função da orientação sexual”. Em 1983, ainda havia uma lei no Código Penal que criminalizava a homossexualidade e “o binarismo homem/ mulher e todos os estereótipos na educação impõem-se-nos de uma forma inconsciente. Mesmo sem querer, passamos a vida a agredir o outro por causa de questões de género. Isso está na base da homofobia”. Ao contrário dos países nórdicos, em que as questões de género não são consideradas tão relevantes, a responsável da Amplos classifica Portugal como um país demasiado padronizado. “Não formamos uma sociedade aberta, nem inclusiva”: “As vítimas são eles, não são os pais. Cá ainda estamos na fase da aceitação, os outros países do norte já vão na fase da proteção”.
Olhares matadores
Muitos pais rejeitam os filhos, incapazes de tolerar a sua orientação sexual. Não aceitam, dizem que se trata apenas de uma fase, de uma mania, que isso passa. Chegam a sugerir “a cura”. Os filhos passam à condição de condenados, a viveram numa dissimulação, numa paz podre, numa encenação, como que num sequestro afetivo.
Estudos comprovam que o coming out dos jovens acontece, agora, cada vez mais cedo. A primeira atração dá-se por volta dos 10 anos. Aos 13, 14 já são capazes de identificar a sua orientação sexual. Marta tem hoje 19 anos. A mãe conta como Martinha sempre deu muita importância ao visual, mas gostava de usar as camisas do pai, de combinar os laços de pescoço com os atacadores e de usar o cabelo bem curtinho. “Ela é perfeitamente identificável na rua”, continua a mãe, Susana Pina, 43 anos, psicóloga. Talvez por isso, e também por mãe e filha, com pouca diferença de idades, não se coibirem de se abraçar na rua ou manifestar o carinho uma pela outra em público, Susana já se sentiu alvo do preconceito e dos olhares de soslaio reprovadores: “Tomaram-nos como um casal de lésbicas. Senti como aqueles olhares são matadores”, comenta. Para ajudarem a Amplos e “contribuírem para normalizar uma situação diferente”, aceitaram dar a cara por uma campanha divulgada esta semana. Às primeiras imagens, os gestos carinhosos e próximos entre duas mulheres desafia o espetador: “serão lésbicas?”. E cada um sentirá a frase à medida dos seus próprios preconceitos. Afinal não: são mãe e filha. “Se uma filha nos pede um abraço, não há como não retribuir… Se ela cair e se magoar, vou beijá-la e consolá-la como se tivesse três anos. Porque iria deixar de o fazer? Porque já somos mulheres?”.
Desde cedo percebeu a orientação sexual da filha, viu logo que não era apenas uma “maria-rapaz”. Quando a menina tinha 9 anos, levou para casa um livro infantil, sobre uma princesa que se apaixona por uma rapariga, estudadamente esquecido, em cima da mesa, de forma a que ela o encontrasse. “Foi uma maneira de eu lhe dizer, subtilmente, ‘está tudo bem’, ‘não há problemas’. Sem fazer disso um assunto solene…”
Ainda assim houve, conta, fases de “violência emocional”: “Eles estão a construir a sua identidade, em processo de desenvolvimento mental”. Viveu com a filha uma história de amor não correspondida por outra menina. “Foi arrasador. Mas é igualzinho ao que se passa com os adolescentes hetero: as mesmas lágrimas, a mesma intensidade, as mesmas músicas…” A sua segunda paixão já foi correspondida e aí, curiosamente, chegaram os problemas. Na escola não queriam duas namoradas aos beijos e abraços no recreio. O conselho diretivo fez-lhes uma guerra cerrada, os auxiliares perseguiam-nas por todo o lado, invocaram atentado ao pudor, queixas dos outros pais. As miúdas lidaram com aquela hostilidade, que lhes chegava, não por via dos colegas, mas dos adultos. Susana só entrou em cena quando a filha lhe telefonou um dia a soluçar: “uma professora tinha-lhes dito a seguinte frase ‘de cada vez que se abraçam, há uma criança que morre?’”. A mãe pediu apoio à Amplos, foi à escola com a presidente Margarida, cedeu a uma depressão, não aguentou assistir à crise de uma miúda tão nova: “A minha filha é um furacão emocional, mas é preciso muito para a deitarem abaixo”. Estes miúdos, conta, vivem agredidos, sentem-se ofendidos por tudo e por nada, estão sempre à defesa, e “nós, sem querer, temos atitudes homofóbicas também, temos de ter tempo para encaixar, para fazer o luto das nossas expectativas, e depois estar sempre ao lado deles”. Mas há sempre qualquer coisa que escapa: “Quando tenho de dizer à minha filha ‘se vão para determinado bairro não andem de mão dada’, não é por preconceito: É por receio dos outros”. E isto, para esta mãe, como diz a mensagem da campanha, é “amor incondicional”.
Um autocarro chamado preconceito
Um casal de rapazes chega de mão dada a uma paragem de autocarro. Sentam-se e enquanto esperam conversam, trocam olhares de cumplicidade e carinho, abraçados. Uma mulher manifesta a sua indignação perante o casal gay e decide humilhá-los e ofendê-los à vista de toda a gente. Alguém está disposto a intervir? A partir desta cena protagonizada por atores e das reações de cidadãos anónimos, o programa E SE FOSSE CONSIGO? (segunda-feira, na SIC e SIC Notícias, depois do Jornal da Noite) aborda o tema da homofobia e traz testemunhos de quem sente o preconceito por causa da orientação sexual.