A vida de Miguel T. sempre fora desafogada. Filho de um cirurgião, cresceu no Areeiro, bairro lisboeta de classe média-alta. Após concluir o Secundário, frequentou um curso de informática, e de imediato obteve emprego. Poucos anos depois, constituiu a sua própria empresa.
De seguida, passou para o imobiliário, montando uma sociedade para concretizar um projeto no Porto Santo, ilha onde herdara terrenos. Mas estalou a crise de 2008 e Miguel T. veio por aí abaixo. Acumulou dívidas à banca e ao Fisco, embora a venda de alguns terrenos lhe permitisse esconder da mulher e dos três filhos a sua derrocada económica. Manteve a família a viver num condomínio no centro de Lisboa até onde pôde. Até se tornar, aos 51 anos, num caso de polícia.
Também José R., 39 anos, licenciado em engenharia agrária, fez tudo para que os seus não soubessem da falência da empresa de representação farmacêutica de que era dono.
António F., 49 anos, filho de um oficial militar, foi igualmente atirado ao chão pela crise do imobiliário.
Já Paulo A., 43 anos, supervisor de vendas de uma multinacional suíça, viu, a partir de 2008, o seu ordenado diminuir substancialmente.
O decréscimo das vendas diretas a clientes não lhe permitiam atingir os objetivos estipulados pela empresa para a atribuição de prémios de desempenho.
Unidos pela desgraça, estes quatro homens reunir-se-iam, em fevereiro de 2010, em torno de uma ideia, boia de salvação para todos: conseguir 1,5 milhões de dólares falsos e introduzi-los em Angola, quando o eldorado económico, com epicentro em Luanda, ainda navegava à bolina da moeda americana. As notas contrafeitas, segundo o plano, viajariam para a capital angolana por mala diplomática.
Preparavam-se, pois, para entrar no universo dos sete mil milhões de dólares falsos, que o FED, a Reserva Federal dos EUA, calcula existirem em todo o mundo, apesar de só representarem 0,01% da moeda americana em circulação.
‘ESTAGIÁRIOS’ DA MOEDA FALSA
O grupo, que nunca se movera em tais andanças, depressa descobriu que talvez estivesse a dar um passo maior do que a perna. Mas não desistiu – com a Polícia Judiciária (PJ) a seguir-lhe a pista desde muito cedo, por denúncia desconhecida.
As contas, essas, foram logo gizadas. Comprariam as notas contrafeitas a 15 dólares verdadeiros por cada 100 falsos. Na venda a terceiros, para introdução no mercado angolano, cobrariam 18dólares a sério por cada 100 contrafeitos. As percentagens variavam entre 10% e 2%, consoante a participação no esquema e os resultados obtidos – na melhor das hipóteses, obteriam um lucro de 45 mil dólares, ou €40,5 mil, ao câmbio atual. Parece pouco, é certo. O plano, porém, pretendia abrir uma comporta que levasse ao despejo sucessivo de dólares falsos sobre Luanda.
Em abril de 2010, de acordo com a investigação da PJ, vertida depois no despacho de acusação deduzido pelo Ministério Público (MP), Paulo A. encontrou-se com um comprador no Leiria Shopping. Apresentou ao indivíduo um exemplar de uma nota falsa de 100 dólares, que lhe fora entregue por Miguel T. e António F.. O intuito era que esse comprador, suposto especialista na matéria, verificasse a qualidade da nota contrafeita e a possibilidade de disseminar os milhões em Angola. O negócio ficou aprovado.
José R. seria encarregado de arrecadar os 1,5 milhões contrafeitos, junto do falsificador credenciado. Em julho seguinte, Miguel T. entregou 30 mil euros a José R., como adiantamento para pagar osdólares falsos.
Tudo parecia correr sobre rodas, mas era ilusório. O grupo quis logo marcar a transação com o comprador para a primeira quinzena de agosto. Paulo A. agendou o dia, e Miguel T. abortou-o. Ainda não tinha os dólares falsos.
Miguel T. só os receberia no início de setembro. E a fasquia baixou: apenas era possível entregar 1 milhão e 260 mil dólares contrafeitos, em notas de 10, 20, 50 e 100. Na nova combinação com o comprador, o grupo impôs um cuidado básico.
A entrega seria feita no mesmo dia, mas em duas vezes – 500 mil dólares na primeira e, duas horas depois, em local diferente, os restantes 760 mil.
Na tarde de 7 de setembro, Paulo A. e António F. dirigiram-se para o sítio combinado, perto da Loja do Cidadão nas Laranjeiras, em Lisboa, fazendo-se transportar num Renault Mégane. Na bagageira ia uma mochila com meio milhão de dólares falsos.
Chegados ao local, saíram do carro e esperaram pelo comprador. Quem lhes apareceu, porém, foram inspetores da PJ. O grupo seria todo detido, embora só Miguel T. tivesse de pagar uma caução, de 20 mil euros, para evitar a prisão preventiva e aguardar o julgamento em liberdade provisória.
As notas, essas, eram medíocres: foram obtidas em offset e algumas até apresentavam manchas de tinta do toner. Além disso, não tinham elementos essenciais para uma falsificação que se preze – marca de água, filete de segurança ou a microimpressão (números e palavras minúsculos, quase invisíveis a olho nu).
A 18 de fevereiro último, as infrações criminais por falsificação de notas foram agravadas, com a pena de prisão máxima a passar de três para cinco anos, numa resolução aprovada em Conselho de Ministros.
Mas o julgamento de Miguel T., Paulo A., José R. e António F., iniciado, no tribunal de Leiria, em finais de 2015, ainda decorreu sob a mais suave moldura penal existente à data dos factos. Mesmo assim, o MP atacou forte no despacho de acusação: imputou–lhes associação criminosa e passagem de moeda contrafeita de concerto com o falsificador.
Aconteceu, porém, que Miguel T. e Paulo A. resolveram contar tudo ao coletivo de três juízes. Os magistrados enalteceram a “forma relevante” da sua contribuição para a “descoberta da verdade material”. E as provas avançadas pela acusação foram soçobrando, incluindo palavras e expressões de código, apanhadas nas escutas, como “garrafas de vinho”, “hectares”, “cilindrada” ou “kit de 68 cm cúbicos”, que os investigadores diziam referir-se às notas falsas.
Com a sua atitude, Miguel T. e Paulo A. também safaram António F., que recorreu ao seu direito ao silêncio, e José R., que foi ambíguo nos depoimentos que prestou, e por isso censurado pelos juízes.
Três mistérios subsistiram até ao fim: as identidades do comprador e do falsificador, e o alegado acesso a uma mala diplomática.
“Houve uma enorme falha em toda a investigação”, comenta o advogado Paulo Camoesas, defensor de um dos arguidos.
“O julgamento não nos disse o que estava a jusante nem a montante. Ficou a meio, por falta de provas.” Os juízes não corroboraram a existência de uma “associação criminosa” (eram “delinquentes primários”) e consideraram que, neste caso, a “mera censura” e a “ameaça de prisão” (penas suspensas entre 3 anos e 3 meses, e 2 anos e 6 meses) satisfazem de “forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
No acórdão, que recentemente transitou em julgado, lê-se ainda que foi uma atenuante a “circunstância” de estar em causa uma moeda estrangeira, que “não tem curso legal” no País e não prejudicaria a economia nacional. Assim decidiram os magistrados que se fez Justiça – ao cabo de mais de cinco anos de processo, durante os quais Miguel T. sobreviveu a dois enfartes.