O Dia de Reis é dia de “Cantar as Janeiras”, uma tradição que ainda se mantém em Belmonte e em muitas outras vilas e aldeias. Foi lá que José Afonso as terá ouvido pela primeira vez em miúdo, pela mão do tio paterno João Filomeno.
O pai fora colocado como juiz em Timor e José fica a seu cargo em Portugal. Tinha 9 anos e, mais tarde, dirá que esse ano de 1940 foi o pior da sua vida. “O tio Filomeno era dono do cartório e presidente da Câmara, e nós chamávamos-lhe, com uma certa simpleza, de ‘o tio fascista'”, conta o irmão mais velho do cantautor, João Afonso dos Santos.
Não consta, no entanto, que Zeca tenha ficado com um trauma em relação às “Janeiras”. No final dos anos 60, escreveu e musicou uma canção a que deu o título de Natal dos Simples e que começa precisamente com o verso “Vamos cantar as Janeiras”.
A canção fala de raparigas solteiras e casadas, e de como quem tinha uma candeia acesa, rabanadas, pão e vinho novo matava a fome à pobreza. “Na região de Alpedrinha e nos ambientes da Beira-Serra, lá para os lados de Folgosinho, os mendigos acercam-se dos portais dos grandes senhores para cantar as janeiras e encher os alforges de pão e castanhas”, contou, a propósito deste Natal dos Simples, que editou em 1968.
José Afonso regressara de Moçambique no ano anterior. Esperava voltar a ser professor de liceu, e chegou a ser colocado em Setúbal, mas acabou por ser expulso do ensino oficial pelo regime de Salazar. Tinha estado internado uns tempos na Casa de Saúde de Belas, com uma depressão, e recebeu a notícia quando teve alta.
Começou, então, a dar explicações, sem nunca deixar de cantar e de compor. Cientes de que o amigo precisava de um meio de subsistência mais certo, Rui Pato e António Portugal mexeram-se junto de algumas editoras e conseguiram um contrato excelente para a época: Arnaldo Trindade, da Discos Orfeu, oferecia-lhe 15 mil escudos mensais em troca de um novo álbum por ano. Zeca aceitou e foi na Orfeu que editou mais de 70% da sua obra.
O primeiro LP foi Cantares de Andarilho. Abre com Natal dos Simples e continua com Balada do Sino, Canção de Embalar, O Cavaleiro e o Anjo, Teto do Mendigo, Chamaram-me Cigano, Vejam Bem.
Para compor Natal dos Simples, Zeca Afonso inspirou-se em parte em Los Cuatro Generales e noutras canções populares espanholas, contará. “Os acompanhamentos apropriados deveriam incluir ruídos produzidos por guizos, pedras e matracas.” Mas, mesmo só acompanhado pela viola de Rui Pato, tem todo o sabor de uma canção de folclore.