Rita Quintela não dá ponto sem nó. Todas as sextas-feiras gasta parte da hora de almoço a elaborar a ementa da semana. Antes, consulta os menus escolares dos quatro filhos de modo a variar entre a carne, o peixe, os ovos e os vegetais. O que nunca muda é a sopa no início e a fruta no fim das refeições, tal como recomenda a Organização Mundial de Saúde: ingestão diária de, pelo menos, 400 gramas de frutas e hortícolas. Segue-se a consulta dos sites e blogues especializados em cupões de descontos. As compras quinzenais feitas online evitam tentações de campanhas desnecessárias ou produtos apelativos. “Com um orçamento mensal para seis pessoas resvés aos dois mil euros esta gestão financeira ajuda-me a ter uma alimentação saudável”, explica enquanto prepara uma lasanha de carne para o jantar. Tenta que nenhuma refeição exceda um euro por cabeça. No final, contas feitas, o tabuleiro de lasanha para seis fica pronto por 3,50 euros.
Legenda: (de cima para baixo) – Família Furtado Rendimento mensal: €700. Na ementa de Isabel, jardineira e guisados alternam com massas e fritos. Os filhos não dispensam os refrigerantes; Família Quintela Rendimento mensal: €2 000. Rita fez um tabuleiro de lasanha por 3,50 euros. Todas as refeições começam com sopa e terminam com fruta; Família Marques Rendimento mensal: > €2 000. Sara cozinhou salmão de aquacultura sustentável no forno com bulgur e salada biológicos
É ao domingo, a partir das seis da tarde, que forno e fogão começam a aquecer. Metódica, Rita vai para a cozinha alinhavar o que lhe há de facilitar a confeção das refeições durante a semana. Por seis euros compra três quilos de carne de porco da mais barata e junta-lhe 200 gramas de soja hidratada, cenoura, molho de tomate e um refogado feito com azeite, cebola e alho. “Usar a soja como proteína saudável faz reduzir o consumo de carne”, argumenta. Depois da carne cozinhada divide em seis porções, deixando metade a uso no frigorífico e congelando a outra metade. Nessa noite ainda faz uma das quatro panelas de sopa semanais com legumes vindos da horta de um tio (outra forma de poupar), e um bolo, se tiver tempo, pois lá em casa não entram sobremesas prontas. Costuma fazer comidas de tacho e não abdica das refeições vegetarianas – ora ratatouille ora cuscuz e tofu com legumes salteados. Apesar da variedade, as quatro crianças da família Quintela nunca devem ter comido linguado. “O peixe continua a ser um alimento caro e dentro do meu orçamento só cabem tentáculos de lulas, pescada congelada, filetes para fazer no forno e pastéis de bacalhau”, enumera. Todos os truques que usa para esticar o orçamento foram partilhados, durante alguns anos, no site Mãe Galinha, a que se seguiu o blogue “O Que É o Comer”, por agora em banho-maria.
Este poderá ser o típico exemplo da família de classe média que desde o início da crise, em 2008, tem vindo a apertar o cinto e a fazer cada vez mais ajustes alimentares, procurando não ceder aos alimentos processados e às comidas prontas – quase sempre mais baratas mas cheias de gordura e açúcar.
Legenda (da esquerda para a direita): Família Furtado A sobremesa de maçã do Banco Alimentar partilha o espaço com frango, sopa de lombardo, refrigerantes e margarina; Família Quintela É ao domingo que se prepara a maior parte das refeições da semana. Depois é só escolher uma caixa no frigorífico e aquecer. A sopa nunca falta; Família Marques De forma exímia cada prateleira é dedicada a um grupo de alimentos, na sua maioria biológicos, orgânicos, caseiros, livres de gorduras e açúcar
Nunca se gastou tão pouco com a alimentação. Segundo o Inquérito às Despesas Familiares, do INE, em 1995 os portugueses gastavam 21,5% do seu orçamento em alimentação, valor que baixou para 13,3%, em 2011. Desde o último Inquérito Alimentar Nacional já passaram 35 anos e nesse tempo muitos hábitos se alteraram. Até ao início dos anos 80, o paradigma era os ricos serem gordos. “Nessa altura o peso a mais e a opulência eram fatores sociais diferenciadores, bem vistos pela sociedade”, nota Pedro Graça, diretor do Programa Nacional para a Promoção da Alimentação Saudável. Havia a ideia de que as populações com mais capacidade económica, de um modo geral, tinham acesso a produtos mais calóricos. Até que a indústria alimentar começou a produzir calorias baratas. “Com o aumento do número de hipermercados, mudou a forma de consumo. Passou a comprar-se com menos regularidade e isso fez com que os produtos tivessem de ser conservados à custa de dois ingredientes: gordura e açúcar”, explica o nutricionista. Só em 1995 se fala, pela primeira vez, da relação entre o estatuto social e a obesidade. É o pediatra William H. Dietz que afirma que “a fome e a obesidade ocorrem com uma frequência aumentada nas populações pobres”. E isso pode parecer, à primeira vista, estranho, como nota Pedro Graça: “Como é que uma pessoa que não tem dinheiro para comprar comida acaba por engordar?” Os dados hoje são inequívocos, como ficou bem expresso no final do Ciclo de Conferências da Gulbenkian, o Futuro da Alimentação, que aconteceu em 2012: a incidência de obesidade é cinco vezes maior no estrato socioprofissional mais baixo, sobretudo em famílias de maior vulnerabilidade económica, com horários irregulares, trabalhando até muito tarde ou por turnos, desfasados do resto da família. As crianças, estando sozinhas, acabam por fazer escolhas piores, preferindo alimentos muito calóricos, ricos em gorduras e açúcares.
Engordar em frente à tv
Portugal tem a taxa mais elevada de mães trabalhadoras da União Europeia e, segundo um estudo da OCDE, de 2011, é também o país onde os filhos passam menos tempo com os pais (100 minutos/dia, contra os 400 da Irlanda, que lidera a lista). A televisão depressa passa a baby-sitter, o que também aumenta o risco de obesidade e de tensão arterial alta. E quanto menor é o grau de ensino, maior é o valor de obesidade, concluiu-se ainda num estudo sociodemográfico para avaliar a alteração dos valores de obesidade infantil da população portuguesa, de 2002 a 2009, liderado por Cristina Padez, investigadora da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra. Foram inquiridas 17 424 crianças, dos 3 aos 11 anos, de várias regiões do País, e a percentagem que passa mais de duas horas a ver televisão, ultrapassando os limites considerados de referência pela Academia Americana de Pediatria, dá que pensar: 28% de meninos e 26% de meninas, durante a semana. Ao sábado e domingo os valores disparam para 75 e 74 por cento. “Ver televisão tem maior impacto no excesso de peso pois as crianças ingerem comida menos saudável, ao contrário de quando usam o computador ou jogos eletrónicos, que exigem mais concentração e interação”, explica a investigadora Cristina Padez. Quarenta por cento destas crianças permanecerão obesas na idade adulta. As que conseguirem estabilizar o peso terão, ainda assim, maior risco de doenças cardiovasculares.
No mesmo sentido vai o estudo publicado por Elisabete Ramos, do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto, na revista científica Nutrition, onde se comprova que o sedentarismo tem efeito nas escolhas alimentares dos jovens. Dos 1 436 participantes com 13 anos, 52% gasta, em média, mais de duas horas por dia a ver televisão, ficando mais propensos a consumir alimentos com altos teores de gordura e de açúcar, em detrimento de frutas e de hortícolas.
O cenário não melhora na adolescência, apesar de os jovens ganharem autonomia para praticarem exercício fora de casa e depois das aulas. O problema é mais acentuado no meio rural, onde vivem os rapazes e as raparigas entre os 13 e os 16 anos que menos se mexem. Apesar dos espaços em liberdade, durante o ano letivo os miúdos dos meios rurais passam mais tempo a ver televisão do que os das cidades, que têm uma maior oferta de atividades extra curriculares, como o desporto ou a música, concluiu um estudo da Faculdade de Ciências do Desporto e Educação Física da Universidade de Coimbra que, entre 2007 e 2012, analisou o comportamento de 500 adolescentes da região Centro (Aveiro, Castelo Branco, Coimbra, Leiria e Viseu). No campo, a média semanal nos rapazes é de 3 horas e 24 minutos em frente à televisão, enquanto os da cidade estão 2 horas e 48 minutos. Nas raparigas, o valor desce para 2 horas e 48 minutos e 2 horas e 24 minutos, respetivamente.
“Os de 15 e 16 anos são menos ativos do que os de 13 e 14. Há um decréscimo da atividade ao longo da adolescência, mais visível nas raparigas, que nestas idades privilegiam o convívio social em detrimento do exercício físico. Os rapazes têm sempre um campo de brita para jogar à bola”, diz o autor do estudo, Aristides Machado-Rodrigues. “Quem mora em zonas seguras, bem iluminadas, perto de jardins com sombras e bebedouros, com bons acessos propícios para se deslocarem a pé, tem um comportamento mais ativo. Além da escola, também as famílias, as autarquias e outros agentes sociais devem organizar e promover hábitos de exercício físico entre os jovens.”
Sopa, mas só às vezes
No frigorífico de Isabel Furtado, 54 anos, há sopa de lombardo, mas depois de andar desde manhã na rua a jogar à bola, o seu neto Max prefere, às cinco da tarde, almoçar restos de frango assado e comer depois um gelado cheio de corantes e açúcar. Falta uma hora e meia para o rapaz de 14 anos ir jantar e encher três vezes o prato com frango guisado e esparguete. Enquanto o ano letivo não começa é ainda mais difícil impor-lhe regras e horários, queixa-se Isabel, que sai de casa às sete da manhã e até regressar, à uma e meia da tarde, não consegue controlar quem já almoçou nem o que comeu.
Só ao fim de semana é que consegue juntar à mesa os sete inquilinos da casa alugada há 24 anos no bairro Sá Carneiro, em Caxias (o casal com os três filhos de 27, 23 e 18 anos, e dois netos de 14 e 5 anos).
Com o marido desempregado há mais de dois anos e sem receber subsídio de desemprego desde maio, Isabel tem cerca de 700 euros mensais para gerir, arrecadados entre os 460 euros que traz para casa das limpezas, mais uns pozinhos de dois filhos. O baixo rendimento familiar faz com que precisem de apoio social. Uma vez por mês, recolhem os cabazes do Banco Alimentar, um de secos, outro de frescos. Nunca fez contas ao que gasta todos os meses em alimentação, o que sabe é que consegue “dar conta do recado” e pôr comida na mesa para todos. Como anda sempre atenta às promoções dos supermercados nunca lhe falta proteína no congelador. Nem feijão demolhado, nem rissóis de carne ou panadinhos de salmão, opções mais baratas para as refeições familiares. E o dinheiro ainda estica para refrigerantes e gelados. A matriarca costuma fazer sopa mas reconhece que às vezes tem de deitá-la fora. Os filhos e netos nem sempre querem… e ela não consegue obrigá-los.
Comemos mais do que precisamos
Diz-me o teu peso, dir-te-ei o que comes. O padrão de alimentação saudável recomenda a ingestão diária de 2 000 a 2 500 calorias, consoante se é mulher ou homem, e as proteínas devem ser repartidas entre 40% animal e 60% vegetal. Estes valores são largamente desrespeitados na maioria da população – e nem sempre por questões económicas. Dados da Balança Alimentar Portuguesa (BAP) 2008-2012 revelam que atingimos, em média, 3 963 calorias per capita, um aumento de 2,1% face aos números da BAP 2003-2008. O suficiente para saciar não um mas dois adultos. Desde os anos 1990 que os portugueses têm vindo a afastar-se da combinação saudável, consumindo 62,8% de proteína animal e 37,2% de vegetais.
Mesmo quem está informado cede aos apelos do marketing. “Mais do que identificar o inimigo é preciso criar opções saudáveis e baratas”, refere Pedro Graça. Vivemos numa sociedade obesogénica, um “palavrão” que a OMS usa para falar de um conjunto de alterações que interfere com as escolhas. “Costumo dizer aos meus alunos do 4.º ano de Nutrição, talvez as pessoas que mais sabem do tema em Portugal, que basta marcar-lhes aulas ou um exame entre as 11 e as duas da tarde para desregularem a sua alimentação”, exemplifica o professor.
Como Sara Marques dos Santos não trabalha fora de casa, pode dedicar-se à pesquisa e leitura sobre alimentos orgânicos, gastar tempo na ida às compras a diversos supermercados, dar um salto à praça e ao mercado de biológicos, onde por mês gasta perto de 600 euros só em comida para o casal, duas empregadas (uma delas interna) e três filhos com 7, 4 e 1 ano e meio.
O conhecimento existe mas o tempo é fundamental para esta ex-advogada, 39 anos, pôr em prática tudo o que aprendeu no curso online de “health coach”, uma espécie de treinadora de bem-estar, do americano Institute for Integrative Nutrition.
Foi há sete anos, com o nascimento do primeiro filho, que se intensificou a preocupação com o que a família come. “Abria-se um caminho para ingerirmos cada vez menos químicos”, explica. Quico nasceu com paralisia cerebral e Sara viu na alimentação saudável a maneira mais fácil de potenciar a aptidão cognitiva do filho. Anda sempre a pesquisar quais os alimentos que tratam problemas, aumentam capacidades e mudam o estado de espírito. “Sou realmente diferente do tradicional, uso muitos produtos biológicos, cereais integrais, presto mais atenção aos rótulos e à tabela de ingredientes.”
Na casa de Sara e Miguel Marques dos Santos o frigorífico organizado é digno de uma revista de decoração. Nas gavetas inferiores arrumam-se os frescos da estação do Prove, um cabaz semanal com seis quilos que Sara compra por dez euros. Nas prateleiras superiores há pasta de amêndoa (para barrar o pão ou usar em batidos), manteiga clarificada indiana (ghee), hummus (pasta de grão), doces de abóbora e de marmelo feitos com açúcar de coco (o único que entra lá em casa), potes com queijo quark (0% de gordura e fermentos lácteos), puré de fruta e granula caseira feita com cereais, sementes, frutos secos e mel. Um caso sério de sucesso entre os amigos que leva Sara a ponderar a sua venda. Já anda, aliás, a testar embalagens e logótipos – quem sabe não aproveita a imagem do seu blogue “S de Salada”. Para aqueles momentos de fome antes das refeições existem umas “bolinhas energéticas” de amendoim, coco, manteiga de coco, manteiga de amêndoa, levedura de cerveja e tâmaras. Na porta há chocolate preto (70% cacau), iogurtes artesanais, picle caseiro de cenoura, leite de coco, pasta de sésamo, leite caseiro de aveia e espelta. No congelador, os gelados feitos com fruta fresca são “um mimo” para os filhos.
A cada refeição, preocupa-se em servir depois da sopa um prato com proteína, hidratos e vegetais. A fruta vem em sumo ou como sobremesa. Para o jantar, entre frango biológico ou lombo de salmão de aquacultura sustentável optou por fazer no forno o peixe com citrinos e molho de arando, acompanhado de bulgur (um substituto do arroz) e salada. De tudo o que Sara faz a única coisa que Miguel rejeita são os sumos com legumes. Apesar de ter sido atleta de alta competição de ski aquático e de sempre ter tido cuidado com o que comia, o advogado não consegue beber o “sumo do Hulk”, como lhe chama Duarte, de 4 anos. E, de vez em quando, também jantam fora, sem fundamentalismos, e até comem pizza e batatas fritas. Em casa, Miguel gosta de cozinhar massas (o único senão é que a mãe só come as versões integrais). Divergências ultrapassadas com muito sabor – mas também sem a preocupação de olhar para o preço dos melhores produtos, na hora de decidir o que será o jantar.