‘Respeitem este momento de dor da família”, foi o pedido da jornalista Judite de Sousa, lida pelo colega José Alberto Carvalho, na abertura do Jornal das 8, de domingo, 29 de junho de 2014, na TVI. A morte do seu único filho, André Sousa Bessa, aos 29 anos, na sequência de uma queda numa piscina, em casa de amigos, em Azeitão, chocou o País. A página criada no Facebook com o nome da jornalista e uma foto em que está com o filho, no perfil, depressa viu o seu mural cheio de mensagens de apoio e pesar. No mesmo fim de semana, irrompeu outra notícia, a de um despiste em moto 4, no concelho de Penela, que viria a ceifar a vida de duas crianças, com 5 e 6 anos. Como continuar a viver depois “disto”, que é da ordem do indizível, do inconcebível?
“Pode ser-se órfão, viúvo, mas não há palavras para designar uma dor tão funda como a da perda de um filho”, elucida o psicanalista Carlos Amaral Dias. Por ser contranatura e inverter a ordem natural das gerações, este é o acontecimento de vida mais stressante, logo a seguir ao suicídio de um filho, e tem consequências traumáticas que podem culminar, não raras vezes, em luto patológico, como o estudado por Freud e que o psicanalista Amaral Dias revisita, para ilustrar a dor que não se consegue simbolizar: “A mãe que embala um pedaço de madeira não está a substituir o filho perdido, antes a negar a ideia da morte.”
Entre os casos que acompanhou, Amaral Dias lembra o da mulher que ultrapassava essa ideia pelo pensamento mágico, vendo na passagem de uma gaivota, à beira-mar, um sinal enviado pelo filho ausente. E o da mãe que insistia no suicídio do seu menino, morto num acidente de viação: “Era a forma que ela tinha decontinuar ligada a ele, nem que fosse pela culpabilidade.”
Há um antes e um depois, como sugere o poema Pedaço de Mim, de Chico Buarque: “A saudade é o revés deum parto/A saudade é arrumar o quarto/Do filho que já morreu.” Ou o filme O Quarto do Filho, de Nanni Moretti, em que o triunfo da dor se abate sobre uma família, em que os pais se sentem culpados sem o serem, e suspensos no tempo, em torno do lugar vazio do adolescente perdido.
Um caminho solitário
Embora o luto não seja uma doença, como faz saber o psicanalista António Coimbra de Matos, é sempre muito difícil de resolver, no caso de um filho, agravado pelo facto de se tratar de uma morte violenta e precoce (antes dos 15 ou 16 anos). “Segui alguns casos, não foi uma terapia, antes sessões mensais de apoio, para elaborar o sofrimento e a perda. Cada paciente encontrará uma solução sua.” Seja desfazer-se dos pertences seja mantê-los pelo tempo que entender necessário. Ser figura pública é, aqui, irrelevante. Basta lembrar o caso do cantor e ator Angélico Vieira, que perdeu a vida num violento acidente (além de implicar outro morto e feridos, e um processo em tribunal), com a mesma idade que André Sousa Bessa. Desde esse 28 de junho de 2011, o pesadelo mora com os pais de Angélico: aceitar o incompreensível e descobrir estratégias para funcionar é sempre um processo solitário, apesar de todos os apoios que se possa ter.
José Eduardo Rebelo, 57 anos, jamais imaginou que, há duas décadas, viria a perder a mulher e as filhas (com 7 e um ano), num acidente de viação. “Retomar uma condição de equilíbrio, face à vida e a nós próprios, é a finalidade do luto.” O professor universitário e biólogo marinho viveu uma década de luto intenso e fez uma reflexão profunda que o levou a fundar a Associação de Apoio à Pessoa em Luto (Apelo), a que preside. “O ser humano está preparado para sobreviver a situações muito complexas e desenvolver mecanismos que continuam a mantê-lo vivo, e só é patológico em 3% a 5% dos casos “, diz José Rebelo. Até lá chegar, há um longo caminho a percorrer: a negação, a busca obsessiva da pessoa perdida, nos objetos e nas conversas. No casal, um tende a exigir ao outro o apoio e as respostas a perguntas candentes, que nenhum é capaz de dar. José Rebelo procurou-as na ciência, mergulhou em livros, escreveu três (destaca Desfilhar: Viver a Perda deum Filho, Casa das Letras, 168 págs., €13,90), fez um mestrado em Psicologia, doutorou-se na sua área. À fase da descrença, sucede a do reconhecimento da perda, com todos os sentimentos associados, “da raiva aodesamparo, passando pela culpa e tristeza; tem-se a sensação de estar a ficar louco e aí bate-se no fundo”. A aceitação, ou a conformação, traduzem-se numa pacificação interior, povoada pela dor, que é para a vida, e por “memórias agridoces”.
‘Lágrimas no paraíso’
A descontinuidade mutilante, que se eterniza e se aprende a gerir na longa marcha dos dias, foi imortalizada em Tears in Heaven, a canção que o britânico Eric Clapton dedicou ao filho Conor, falecido aos 4 anos caiu da janela do apartamento em que vivia com a mãe.
No outono de 2010, o produtor e jornalista Paulo Sousa Costa perdeu o filho de 7 anos, na sequência de uma leucemia. Também pediu que percebessem o silêncio necessário ao seu processo de reconstrução. “Entrei no quarto dele dois dias depois, fui eu que arrumei as roupas, os brinquedos, não deixei que o fizessem por mim. Foi terrível, mas tinha de ser eu a tocar em tudo.” Paulo e a mãe da criança decidiram cremar o corpo “Ele não podia ficar fechado num caixão”, e a praia onde deitaram as cinzas é hoje o seu local de culto.
Entre mundos
Aos 46 anos, Paulo tem um papel ativo nas redes sociais e nos media. O seu livro Desistir Não É Opção (Luade Papel, 216 págs., €14,95) já totaliza sete edições. Escrito um ano depois da tragédia, conta o que ele nunca disse com a voz: os anos passados com o Paulinho, desde o seu nascimento até ao período negro que se seguiu à partida do filho o primeiro aniversário, o primeiro regresso às aulas, o primeiro verão, o primeiro Natal. Pelos milhares de mensagens que recebeu, Paulo pode dizer que “a obra tem sido inspiradora para pais em luto, mas também para pessoas que estão em desespero por outros motivos”.
De forma diferente, as redes sociais parecem-lhe, hoje, um bom veículo para receber e dar apoio. De vez em quando, coloca posts na página elaborada por alguém que não ele (Fãs do Paulinho), e criou uma: As Aventuras do Dragãozinho Azul, alusiva a uma série de sete volumes (publicou o terceiro, cada um dedicado a um pecado), em que o super-herói ajuda as crianças e lhes dá o “soro da bondade”, quando é preciso. Ainda a aprender a viver com este “novo” Paulo, confessa ter perdido as rotinas de lazer e o lado colorido da existência. Letícia, a filha, que faz 2 anos este mês, leva-o a esforçar-se para ser o pai que sempre foi. “Talvez já consiga viver um dia de cada vez. Mas há uns em que ainda vivo um segundo de cada vez.”
Quanto dura o purgatório? “É preciso um tempo para tudo, mas após um a dois anos, é importante que a pessoa retome uma certa normalidade funcional, para não ficar perdida na dor eterna, no ‘e se eu tivesse feito’, ‘porquê eu?’…” Maria de Jesus Candeias, psicóloga clínica e investigadora, explica como os objetos podem ter uma função durante o luto o quarto, o lugar à mesa, o qual não deve perpetuar-se no tempo, antes dar lugar à passagem para a dimensão simbólica. Ou seja, manter a pessoa viva no pensamento e na memória, sem cair na patologia.
Fátima Negrão é a primeira a reconhecer que ainda não passou por fases que outras mães já atravessaram. Meio ano após a tragédia da praia do Meco, que, na madrugada de 15 de dezembro de 2013, vitimou o seu Pedro, aos 24 anos, as idas regulares ao quarto do filho, que se mantém como estava, são demasiado dolorosas. Só consegue chorar. Não cultiva a indumentária preta, nem a evita. O facto de ter outro filho, que vive no estrangeiro e com quem fala regularmente por Skype, ou o de estar prestes a ser avó, não afastam a dor de algo que não consegue aceitar. “Ainda penso: ‘O Pedro vai voltar’.” Aos 54 anos, a técnica oficial decontas está a retomar o trabalho, ao seu ritmo. Não se quer isolar. Medicada com ansiolíticos, frequenta reuniões mensais de entreajuda (na Laços Eternos Associação de Apoio a Pais em Luto), na Igreja São João de Deus, em Lisboa.
A ‘cura’ do tempo
Neste momento, Fátima Negrão não quer pensar no que se segue. O perfil do filho na net continua ativo e a cada dia 15 chovem posts e desabafos. “Também eu já o fiz.” Vai manter a página até se cumprir um anodesde que o inimaginável aconteceu. Mais tarde é possível que ceda roupas do filho a amigos próximos. Para já, conforta-a a ideia de que Pedro está a vê-la, a dar-lhe sinais, razão que a leva a continuar a levantar-se da cama e a arranjar-se. Sai de casa e diz-lhe “até logo”, dá por ela a pedir-lhe perdão por não ter estado suficientemente a par das suas atividades académicas. Paulo Sousa Costa adverte: “Deem espaço a quem está a passar pelo pior processo que um ser humano pode enfrentar, sem dizer constantemente ‘tens de fazer isto, tens de fazer aquilo.'” Maria de Jesus Candeias reforça: “O puxar para a frente, por mais bem-intencionado que seja, reflete a dificuldade dos próximos em lidar com a dor do outro que precisa de tempo.”