“O controlo de tráfego ainda se fazia por rede fixa.
A estação de Mangualde recebeu a informação de que o Sud-Express estava com 18 minutos de atraso. Era via única. A tragédia começou com aquele telefonema.
Na verdade, o atraso vinha sendo recuperado, sem que o coordenador de tráfego atualizasse a informação ao regional que se dirigia a Coimbra.
O internacional seguia cheio de emigrantes, de regresso a França, depois do reencontro com as famílias, na Beira Alta. Ao ver as carruagens a aproximarem-se, e sabendo da ordem para o regional avançar, a guarda de linha antecipa o choque frontal. Tenta sinalizar.
Os 100 quilómetros por hora a que seguia o comboio não lhe dão tempo. Era já impossível evitar o pior. Por esta altura, saía eu da consulta no Centro de Saúde de Nelas, onde era diretor e delegado de Saúde. Como comandante dos Bombeiros Voluntários de Canas de Senhorim, aproveitava o fim do dia para me sentar num cubículo da central de rádio a tratar da burocracia.
Foi aí que ouvi o primeiro pedido de socorro.
“Mandem ambulâncias para a estrada de Nelas-Mangualde! ” Eram 18 horas e 37 minutos do famigerado 11 de setembro de 1985.
Pedi mais informações, mas não recebia nada por causa de um problema nas comunicações. Não havia telemóveis e o INEM era praticamente inexistente.
Alguns minutos depois, segunda mensagem: “Tragam autotanques! As carruagens estão a arder!” Tinha vestido umas calças de linho e calçado uns chinelos de lona, mas quando ouvi aquilo só imaginava a tragédia que significava um acidente com um comboio. Entrei em pânico, e foi nestes preparos que me meti num autotanque para prestar socorro, no acidente de Alcafache.
As carruagens pareciam archotes. Ao ver aquilo, fiz um disparate: agarrei numa agulheta e mandei ligar a bomba para entrar na carruagem a arder. Mas sempre que tentava avançar sentia a mangueira a andar para trás. Fui ver o que se passava e estava um bombeiro a forçar, na direção oposta. Voltei à porta da carruagem e pus-me aos gritos com ele: “És maluco! Estás a puxar para quê?” E ele: “Maluco é o senhor, a meter-se aí! Quer morrer?” Era o que ia acontecer se ele não me tivesse puxado. Muitas vezes, para salvar, cometemos loucuras.
Estavam mais de 30 graus, as fricções provocaram faíscas. Como a linha ainda não era elétrica, os comboios andavam a gasóleo, e tudo se conjugou para provocar explosões. O metal das carruagens fundiu-se e isso acontece a 800 graus.
Já nem imaginava que pudesse haver sobreviventes quando vi um bombeiro aos gritos: “Está ali uma senhora presa!” Teria uns 50 anos.
Estava completamente encarcerada entre ferros e colchões.
Rastejei até ela, palpei-lhe o pulso e disse-lhe que a ia resgatar.
Levámos mais de uma hora a desencarcerá-la. Confirmei ali que a história do sexo fraco é uma anedota machista. Nós, nervosos, e ela, sempre a repetir: “Tirem-me quando puderem. Não se magoem.” Acabámos a puxá-la por uma janela. Era a única vítima ainda viva.
Ambos os maquinistas viram o que ia acontecer e ambos morreram.
Só conseguimos retirá-los no segundo dia. Os números oficiais da CP falam de 49 mortos, mas terão sido cerca de oitenta. A quantidade de água usada para apagar o fogo dissolveu muitos corpos carbonizados e era impossível fazer uma contabilidade exata.
Passámos lá três dias. Três dias sem dormir. Na segunda noite, o inspetor regional dos bombeiros do Centro obrigou-me a ir para a cama. Eu obedeci.
Deitei-me, mas não consegui dormir e voltei.
Chorei e, se calhar, muitos bombeiros fizeram o mesmo. Na altura, os psicólogos eram os ombros uns dos outros. Durante muito tempo, acordava à noite, a sonhar com o acidente. Só lá esteve um médico, que era eu. Quando viam corpos, os bombeiros vinham chamar-me. Acabei por tirar a maior parte dos carbonizados.
Recordo-me, sobretudo, do silêncio. Não havia gritos nem histeria, apenas aquele silêncio de tragédia. Ficou uma cruz de homenagem, feita com os carris estragados. É junto desse monumento que ainda hoje se encontram, regularmente, familiares e amigos das vítimas de Alcafache. Foi há 27 anos. Mas as velas e as flores continuam a aparecer.