À entrada do apartamento do bairro lisboeta de Campo de Ourique, há uma inscrição em inglês que diz: “Bem-vindo ao nosso pedaço de paraíso”. O choro de Matias, com dois meses, parece não perturbar a paz da casa de Mariana Martins, 37 anos, e Marta Morgado, 36 anos. Nem a cadela Luanda tem estranhado aquele bebé, que agora acorda as donas durante a noite e as faz passar os dias entre biberões e fraldas. Com o mesmo à vontade, Matias aconchega-se num colo e no outro. Tem duas mães, orgulhosas do filho que conseguiram ter, já um ano depois de se casarem uma com a outra, no civil – mas não escondem o descontentamento por apenas uma delas ser reconhecida como tal. “A Marta é tão mãe como eu. Neste momento, a única diferença é que posso dar de mamar e ela não. Mas um pai também não dá de mamar, não é? O Matias não tem o sangue dela, mas os filhos adotivos também não têm e não são menos filhos por isso”, afirma Mariana Martins, a mãe que deu à luz o bebé e a única com direitos legais sobre a criança. Para Marta, este bebé é seu também: “Foi como se eu também tivesse estado grávida.”
Juntas desde 2005 e casadas há um ano, Mariana e Marta não percebem porque podem ter tudo em comum menos o filho que ambas planearam e em que ambas investiram. Matias nasceu depois de Mariana ter feito fertilização in vitro numa clínica em Barcelona, e já depois de cada uma das suas mães se ter submetido a duas inseminações artificiais falhadas. Chegou depois de muito planeamento, muitas poupanças e mais de 11 mil euros gastos. “No início, ainda considerámos pedir a um amigo, há quem faça isso, sai muito mais barato. E tentámos… Mas depois começámos a pensar que uma terceira pessoa na relação já era de mais”, conta Mariana.
Desde 2010 que, em Portugal, os homossexuais se podem casar no civil. Nestes últimos três anos, viveram com os mesmos direitos conjugais que os casais heterossexuais. No entanto, quando a lei do casamento entre pessoas do mesmo sexo foi aprovada na Assembleia da República, ficou por legalizar a adoção de crianças por casais homossexuais e a possibilidade de duas mulheres ou de dois homens poderem ser ambos as mães ou os pais de uma criança. Para gays e lésbicas que querem ter filhos, resta-lhes resolver a questão lá fora – cá dentro, os homens não podem recorrer a barrigas de aluguer e as mulheres solteiras ou casadas com outras mulheres não se podem submeter a inseminações artificiais.
Para Marta, não ser legalmente reconhecida como mãe de Matias será uma situação temporária. “No dia a dia, não sinto essa fragilidade. Mas, se quiser ter direito a baixa por o meu filho estar doente, por exemplo, sei que não tenho. Ou se quiser viajar com ele, a Mariana tem de autorizar. Isso coloca-me em desvantagem”, nota. “Tenho esperança em que um dia destes isto mude. Mas para mim é só um papel. O importante é tratar dele diariamente”, acrescenta Marta Morgado, surda, que encontrou a sua “metade”, como chama a Mariana, dentro da comunidade de surdos, em que ambas trabalham. Nem Marta Morgado se sente uma mãe de segunda nem a sua família vê Matias como um estranho. O apoio familiar que têm recebido foi e continuará a ser um grande suporte do crescimento da criança. “Quando dissemos que eu estava grávida, a avó da Marta, que é uma senhora com 90 anos, disse ‘oh, vou ter um bisneto'”, conta Mariana, emocionada.
A deputada do Partido Socialista, Isabel Moreira, pretende apresentar, em breve, na Assembleia da República, uma proposta de lei de coadopção, por parte do cônjuge, que dê aos casais homossexuais os mesmos direitos que têm os heterossexuais. Pelo menos, sublinha a socialista, esse estatuto evitará situações em que, depois da morte de um dos membros de um casal do mesmo sexo, o outro se veja privado dos seus direitos como mãe ou como pai. “Tem em vista, sobretudo, o interesse das crianças, por isso penso que atravessará todas as ideologias… tem a ver com o facto consumado: estas famílias estão aí, existem”, defende Isabel Moreira.
Mãe de primeira e mãe de segunda
Quando foi chumbada, na Assembleia da República, a proposta de adoção plena por parte de casais de pessoas do mesmo sexo, o psicólogo Pedro Costa apresentou um parecer que refutava os argumentos dos deputados que se opuseram, apresentando resultados de estudos psicológicos e sociológicos internacionais, que têm mostrado não existir diferenças entre as crianças que crescem em famílias hetero ou homoparentais. “Não há um motivo psicológico ou social para impossibilitar que estas famílias tenham filhos e que estes filhos sejam perfeitamente ajustados”, defende o psicólogo. “Neste momento, em Portugal, existem mães de primeira e mães de segunda, porque uma delas não é reconhecida como tal. E, na verdade, a criança não faz essa distinção.”
Os estudos que agora ocupam Pedro Costa, no seu doutoramento em Psicologia, na Unidade de Investigação em Psicologia e Saúde do ISPA, têm a ver com a forma como nascem as atitudes negativas em relação a estas famílias e de que forma pais e filhos se adaptam, numa sociedade que os descrimina. Até agora, o psicólogo tem trabalhado, sobretudo, com famílias planeadas, ou seja, com dois pais ou duas mães que, já juntos, tiveram filhos em comum. De fora, estão para já, as famílias constituídas com filhos de casamentos heterossexuais anteriores. O psicólogo começa já a tirar as primeiras conclusões: “Os projetos de parentalidade são muito amadurecidos e muito falados no casal, e demoram muito tempo, devido aos impedimentos sociais e legais. Para realizar esse desejo, o casal antecipa as dificuldades que vai encontrar. E, depois, com as crianças, começa a introduzir a questão muito cedo, a falar-lhes sobre a diversidade de famílias, de pessoas, de orientação sexual também.”
Curiosamente, sublinha Pedro Costa, as dificuldades em sociedade acabam por ser muito menores do que aquilo que os casais homossexuais temiam antes de serem pais ou mães. Marta e Mariana são exemplo disso. Matias nasceu num hospital público de Lisboa e, garantem as mães, quase todos os profissionais de Saúde que se cruzaram com elas as trataram com respeito. Ser um casal de lésbicas com um bebé apenas lhes tem trazido problemas burocráticos. Mas acabam sempre por encontrar compreensão em quem conhece a sua situação – mesmo que legalmente, em Portugal, uma criança não possa ser filho de pai anónimo nem possa ter duas mães. “No registo, dissemos a verdade: ‘ele é nosso, fizemo-lo por fertilização in vitro, em Espanha, por isso, não podemos mesmo saber quem é o pai biológico’. E a senhora do registo disse: ‘pois é, isto não faz sentido, a justiça vai ter que mudar para corresponder a estas novas situações'”, conta Mariana. Uma cena que se repetiu, mais tarde, quando foi chamada a tribunal para justificar a ausência de um pai. “No tribunal, a senhora teve exatamente a mesma reação: ‘é a primeira vez que me aparece uma situação assim, é preciso mudar alguma coisa na lei.'”, descreve Mariana.
Quando terminar a licença de maternidade, Mariana há de deixar Matias numa creche, durante o dia. E, como sempre, as duas mulheres não esconderam serem um casal. “As pessoas reagem naturalmente… Às vezes, não sei porque se diz que a sociedade não aceita, porque, na nossa experiência, a percentagem que não aceita é mesmo muito pequenina”, nota Mariana. Esconderem-se ou deixarem de assumir o que são nunca foi opção. Antes pelo contrário. Para estas duas mulheres, é importante dar a cara, para que ninguém se esqueça de que existem famílias como a delas. “Só temos felicidade e amor para passar a esta criança. Por isso, se ele tiver problemas, não vai ser de nós, vai ser das outras pessoas que têm minhoquinhas na cabeça e lhe vão passar isso. Cada vez mais, as famílias são todas diferentes. Há uns anos, também fazia confusão casais que eram divorciados e famílias mistas e, hoje em dia, isso já é uma coisa normal. Acho que isto vai com o tempo. Atualmente, ser diferente também já não é anormal”, considera Mariana.
Mesmo não havendo ainda números sobre as famílias homoparentais em Portugal, acredita-se, dentro da comunidade homossexual, que elas sejam muitas mais do que as poucas centenas que se costumam juntar nos encontros promovidos pelas associações gays, como as Famílias Arco-Íris, da Ilga. Quando a vergonha desaparecer, talvez se descubra que já existem em Portugal milhares de famílias constituídas por dois pais ou duas mães, acreditam os ativistas.
Atravessar a fronteira
Num pequeno consultório do Instituto de Reprodução CEFER, em Barcelona, a ginecologista Flor Molfino troca o seu habitual catalão por um inglês hesitante e algumas palavras em castelhano. À sua frente, a portuguesa Elizabete Ferreira está decidida a ser mãe aos 26 anos. Quer fazê-lo com os óvulos da sua mulher Luísa, sete anos mais velha, e que agora lhe dá a mão, enquanto ouvem a explicação do processo de inseminação artificial com fertilização in vitro, a que ambas se vão submeter.
Elizabete e Luísa Ferreira conheceram-se e apaixonaram-se há mais de três anos, casaram-se há um ano e meio e querem agora alargar a família. É a segunda vez que viajam até Barcelona e visitam a clínica de reprodução assistida. Antes de aqui chegarem, seguiram as duas um calendário preciso de medicação, para sincronizar os seus ciclos menstruais. Enquanto Elizabete preparou o útero para receber os óvulos da companheira, Luísa fez estimulação ovárica para aumentar a produção de óvulos. Hoje, é dia de ecografias, fundamental para avaliar a altura certa para extrair os óvulos do útero de Luísa, de modo a serem fecundados clinicamente pelo esperma de um dador anónimo e, depois, implantados no útero de Elizabete. O Instituto Cefer batizou este processo de ROPA, um nome que se refere à possibilidade de uma mulher receber óvulos da companheira – uma técnica possível em Espanha, desde que, em 2005, a lei passou a permitir o casamento entre pessoas do mesmo sexo e adoção por casais homossexuais. “Este filho será biologicamente das duas, porque uma porá o material genético e a outra levará a cabo a gravidez e fará o parto. Legalmente, a criança fica protegida”, explica a ginecologista.
Nem Filomena Sá, mãe de Elizabete e obstetra em Lisboa, pensou alguma vez que isto fosse possível. É ela a médica do casal e veio com as duas a Barcelona. Segue, atenta, a consulta da filha e da mulher e tem sido um apoio fundamental. “Hei de ser eu a fazer o parto da minha filha e a primeira a pegar no meu neto”, dissera, entusiasmada, na véspera.
Com o processo ROPA, garante-se uma taxa de sucesso entre os 40% e os 50% em mulheres com menos de 35 anos. As hipóteses de engravidar dependem sempre da idade da dadora, mas normalmente as mulheres que recorrem à ROPA não têm antecedentes de infertilidade. Há vários anos que o Instituto CEFER trabalha com técnicas de inseminação artificial, fecundação in vitro e doação de óvulos. Ali têm chegado mulheres de Espanha, mas também de Itália, França e Portugal, sobretudo, em busca de soluções que não encontram nos seus países.
Além do laboratório de embriologia, onde são monitorizados os embriões e feitas as fecundações in vitro, o Instituto CEFER tem também um laboratório onde se estuda e controla a doação de esperma. Ali, apenas 13% dos homens que se candidatam são aceites como dadores, porque até uma simples miopia pode ser motivo de rejeição – e, segundo a lei espanhola, um dador pode originar apenas seis gravidezes, para evitar, mais tarde, o risco de consanguinidade entre duas pessoas nascidas de um processo de inseminação artificial. A esmagadora maioria dos dadores do Instituto CEFER são jovens universitários, entre os 18 e os 29 anos. Todas as suas características são estudadas e catalogadas, até porque, depois, os casais podem escolher algumas delas.
A importância do papel
“Quero acreditar que não vivo num país em que, sendo casada, se alguma coisa acontecesse a uma de nós, viesse um tribunal e tivesse o descaramento de invadir a nossa vida privada e familiar. Enquanto a lei não mudar e não tivermos, em Portugal, uma lei de coadoção para casos como o nosso, ninguém pode ficar tranquilo. Nem eu nem outras pessoas que se interessem pelos direitos humanos e que defendam os valores de família.” É Luísa quem o diz, convicta de que esta é uma questão que tem de ser resolvida em breve.
Deixarem de ser mães por serem lésbicas nunca foi uma hipótese para elas. Terem agora um filho é a continuação natural da vida a duas que começaram há mais de três anos, quando se conheceram num projeto da Rede Ex-Aequo, uma associação de jovens lésbicas, gays, bissexuais, transgéneros e simpatizantes. Antes do casamento entre pessoas do mesmo sexo ser permitido em Portugal, já as duas viviam juntas e, pouco depois de aprovada a lei, deram mais um passo em frente: a 23 de abril de 2011, mudaram, orgulhosamente, o seu estado civil. “Em termos sociais, é diferente referirmo-nos uma à outra como sendo casadas. As pessoas olham para nós e para a nossa família de uma maneira diferente”, acredita Luísa. “O simbolismo e o peso das palavras são coisas importantes em Portugal. É como se o facto de termos mesmo casado tivesse trazido mais legitimidade ao nosso relacionamento aos olhos das outras pessoas. Para nós, é um papel, mas acaba por ser um papel que tem um certo peso”, acrescenta.
Quando Luísa e Elizabete se casaram, mudaram o estado civil e mudaram os nomes, porque, acreditam estas mulheres, mais vale prevenir do que remediar. Luísa recebeu dois apelidos de Elizabete e esta adotou os apelidos da mulher como os seus últimos. Assim, defendem, quando tiverem filhos, nasçam de quem nascerem, terão sempre todos os mesmos apelidos – e não haverá motivo para se interrogarem sobre a razão pela qual, sendo irmãos, têm sobrenomes diferentes. As explicações que terão que dar aos futuros filhos são, aliás, tema de conversa, mas não lhes tiram o sono. “Vamos contar-lhes como nos conhecemos, mostrar-lhes as fotografias do nosso casamento e dizer-lhes que eles ou elas foram crianças muito desejadas, muito planeadas. Vamos dizer-lhes que estão cá porque houve duas pessoas que se amam muito e que não conseguiam imaginar a sua vida sem filhos. E que eles ou elas são frutos desse amor”, diz Luísa, decidida. Elizabete há de acrescentar: “Só o facto de explicarmos que cada pessoa é diferente e que há vários tipos de famílias, de religiões, de raças, já prepara a criança para estar bem com essa diversidade, não é? Porque, muitas vezes, o preconceito e a homofobia vêm do desconhecimento da situação. Se, para a criança, for uma coisa perfeitamente normal, ela não vai achar estranho haver outras pessoas com outros tipos de famílias.”
À falta de uma figura masculina em casa, uma das acusações frequentes quando se fala de famílias homoparentais de lésbicas, respondem sem preocupações. “Aos 7 anos, quando os meus pais se divorciaram, vivi só com a minha mãe, não tinha a referência do meu pai sempre presente, mas tive outras referências, de professores na escola, do mestre de karaté… Tenho três irmãos e a criança vai ter outras referências masculinas que não têm obrigatoriamente que vir de mim ou da Luísa”, defende Elizabete.
Ser uma família
Elizabete e Luísa vieram de Lisboa cheias de esperança de conseguir concretizar o sonho de serem mães. Não foi fácil aqui chegar. A decisão implicou um pedido de empréstimo de 8 500 euros, a três anos, para pagar a inseminação, as viagens, as estadias em Barcelona, a medicação. Estar longe de casa e ter que falar uma língua estrangeira também não ajuda. Por razões biológicas óbvias, a parentalidade é sempre muito mais complicada para um casal homossexual. Se o casamento já foi uma vitória, ser pai ou ser mãe é uma batalha ainda maior. Por isso, é maior também a dor quando se descobre que a gravidez não aconteceu. Para Elizabete e Luísa, o resultado negativo nas análises chegou quando já estavam em casa.
Por estes dias, gerem os sentimentos de derrota e frustração como sabem e podem. Elizabete, enfermeira numa maternidade, confronta-se diariamente com os bebés dos outros, mas refugia-se no karaté; Luísa empenha-se em terminar o curso de gestão e produção de cozinha. Não vão desistir, garantem. Vão recomeçar a poupar para, um dia, conseguirem voltar a tentar. Não se cansam de dizer: já são uma família e serão, um dia, uma família com filhos.