Em época de férias, viajar rumo ao Sul pelo IC1, fugindo da autoestrada, permite poupar dinheiro em combustível, nas portagens e nos comes e bebes das estações de serviço. Em contrapartida, há paisagem bucólica que verdeja, fruta barata nas bancas ambulantes, restaurantes e gasolina a preços mais acessíveis. Sem pressas, etapa a etapa, partimos à descoberta do Itinerário Complementar.
Lisboa – Albergaria
Na soalheira primeira sexta-feira de julho, às nove horas da manhã, o trânsito está lento na A5, para sair de Lisboa e entrar na Ponte 25 de Abril. Demora-se uma hora a chegar ao quilómetro 54 da A2, saída com portagem. Pegões fica para a esquerda, Marateca para a direita, por onde seguimos o Itinerário Complementar 1 (IC1). O relógio marca dez e dez quando nos cruzamos com uma prostituta na berma da estrada. Por aqui, o gasóleo está a €1,364 e a gasolina 95 vende-se a €1,569. Uma inesperada nuvem de pó claro é provocada por um rebanho que pasta mesmo ali ao lado, indiferente aos carros que passam. As pequenas obras no alcatrão são uma constante, mas todas bem assinaladas. Eis o outdoor gigante a anunciar o Alentejo. Passado Alcácer do Sal, mas antes de Grândola, fazemos a primeira paragem em Castelo Ventoso, Albergaria. O exterior do Restaurante Km 10 não deixa adivinhar o forno a lenha e a ementa regional que nos abre o apetite, para uma cabidela ou um frango frito à passarinho.
Mãos no volante e alguns metros mais à frente, três bancas de venda de frutas e legumes surpreendem pelo aspeto cuidado. No Bairro da Paragem Nova, é debaixo de sobreiros que a estrutura metálica, com palhinha no telhado, protege Ana Paula Gil do sol – e do vento, que insiste em soprar. Patroa de si própria há mais de duas décadas, a vendedora, de 50 anos, não tem concorrência deste lado da estrada. “Antigamente, havia filas de trânsito, com tudo parado, mas ninguém queria sair do carro. Depois, melhorou. Agora, venho de fins de junho até setembro e de sexta a domingo…”, explica. A fruta mais cobiçada é a melancia, mas há um pouco de tudo: melão casca de carvalho de Figueira dos Cavaleiros (Ferreira do Alentejo), cerejas da Gardunha, molhos de orégãos de Grândola que mais parecem bouquets de flores, réstias de alhos e de cebolas, e vasos com piripíris. Mesmo com preços mais baixos que os das grandes superfícies, os portugueses gostam sempre de regatear.
Albergaria – Canal Caveira
Meio-dia é a hora ideal para estacionar em Canal Caveira, mítica localidade na romaria até ao Algarve, a “capital do cozido”. À sombra, na esquina da Rua Banda G2 do Bairro Novo, um grupo de velhotes põe a conversa em dia. António Serafim, antigo tratorista agrícola, de 74 anos, conta que, por vezes, já o aborrece comer o prato típico da terra.
Um cheiro inesperado e intenso interrompe a amena cavaqueira. Chegou o fiel vendedor de queijos. Todas as sextas-feiras, desde há 22 anos, Joaquim Pereira vem de Borba, onde produz mil unidades por dia, para vender o “almesse” (requeijão em muito soro), que Gertrudes Parreira, 70 anos, há de almoçar “com sopas de pão”. O queijeiro traz também requeijão tradicional e os queijos curados e secos de que as clientes mais idosas gostam “para acompanhar o cafezinho”. Antes, Joaquim já parou em Alcácer do Sal, Montemor-o-Novo e Vimieiro. À hora do lanche, chegará o padeiro do Lousal.
No Restaurante Canal Caveira, antes da uma da tarde, já a primeira sala está cheia. Sentamo-nos na segunda zona de refeições, num piso superior, e que rapidamente também fica composta. Os empregados não têm mãos a medir (a dose custa €9,80; a meia €7,80). “Na Páscoa, tive o dobro dos clientes, mas a receita não duplicou. As pessoas pedem duas meias doses para quatro”, exemplifica Alda Mestre, 55 anos, proprietária desde 2005 de uma das quatro casas que ali servem a especialidade de carnes, couves e enchidos. O acréscimo de movimento é confirmado pelos dados das Estradas de Portugal, indicando que, em abril, o número de carros que passou pelo posto da Marateca aumentou 75,3% em relação ao período homólogo de 2011.
Atrás de nós, o casal Dulcelina Melo e João Marques, 60 e 62 anos, respetivamente, conversam animadamente. Estão a regressar a casa, no Estoril, vindos de Albufeira: “Vamos buscar os nossos netos e voltamos para a semana.” Almoçam neste restaurante há mais de 30 anos, sempre circulando no IC1, pois, para João, “a A2 não existe”. A piada faz rir os familiares a seu lado: a irmã de Dulcelina, Donzília, 53 anos, e o marido, Orlando Marante, de 54. Moram em Montemor-o-Novo e costumavam ir de férias com os cunhados, mas este verão foram avós e… “não dá”. A crise, dizem, também se sente naquelas mesas. “Antigamente, havia fila de espera em qualquer dia, agora só aos sábados e domingos”, conclui o quarteto de comensais.
Noutro ponto da sala, Patrícia e André Pinto, ambos com 37 anos, levando pela mão as duas filhas de 8 e 5 anos, estão de saída. O almoço foi a terceira paragem desde que saíram de casa, às 8 e 30 da manhã, em Santa Maria da Feira. “Viemos pela autoestrada até Santarém e só depois passámos para o IC1”, conta o casal, que vai gozar dez dias de férias – primeiro em Portimão, depois em Albufeira. Gastaram vinte euros em pão, queijo, azeitonas, um cozido, duas sopas e bebidas.
No fim da artéria principal, a Rua A, no n.º 19, trabalha o mecânico mais antigo da terra. “De vez em quando, aparecem condutores para tratar fugas de escape, mudar o óleo ou trocar uma braçadeira. Coisas pequenas…”, esmiúça José Aleixo, 61 anos. De repente, aparece Nuno Jorge, 34 anos, jornalista desportivo a caminho de Portimão para cobrir a prova de automobilismo GT1. Ficou sem pedal da embraiagem. O mecânico terá com que se entreter nas próximas horas.
Apesar de os cafés e restaurantes se alinharem no sentido norte-sul, o parque de estacionamento fica no lado oposto. A ponte pedonal, com escadas íngremes, não é suficiente para evitar algumas mortes entre os que se arriscam a pular a cerca e a atravessar no intervalo de carros e camiões que, indiferentes aos sinais, circulam a mais que os 50 km/h permitidos por lei. População e viajantes suspiram por semáforos, passadeiras e rotundas.
Canal Caveira – Lousal
Os 35ºC das três da tarde obrigam a usar ar condicionado nos próximos 22 km, até ao desvio para o Lousal. Nesta zona, os combustíveis estão mais baratos: gasóleo a €1,354, gasolina 95 a €1,429. No caminho, veem-se trabalhadores retirando dos sobreiros as pranchas abauladas de cortiça. Este é o troço da estrada com mais solavancos mas vale a pena reduzir a velocidade para apreciar a paisagem mineira de uma aldeia eletrificada antes da Baixa lisboeta. As minas de pirite exploradas desde o final do século XIX até 1988 são a grande atração turística – fazendo com que os diversos pontos de interesse relembrem o que outrora ali se passou. O parque destinado às caravanas fica junto do mercado, vizinho da antiga casa do diretor das minas, agora transformada em Hotel Rural Santa Bárbara dos Mineiros. Uma dezena de quartos e uma suite, duas piscinas, bar, sala de estar com lareira e Internet wireless, fazem jus às quatro estrelas, onde uma noite, em julho, custa entre 70 e 110 euros.
Os 401 habitantes do Lousal beneficiaram com a inauguração, em 2010, do Centro Ciência Viva (CCV), no edifício em que funcionou, entre outros departamentos, a Casa do Ponto, “onde os mineiros tinham de deixar a chapa de identificação”, explica o monitor Miguel Ferreira, 30 anos. O passeio “Visita à Mina” é uma sugestão para descobrir o património. “Foi criado um passadiço de madeira que percorre a zona da corta mineira, da qual tiravam xistos para preencher os buracos deixados pela pirite e outros minérios”, acrescenta Miguel. As explicações de Jorge Relvas, 51 anos, presidente do CCV e professor de Geologia na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, são fundamentais para perceber como o museu mineiro traça a evolução tecnológica de compressores e geradores. O antigo eletricista da mina, Manuel João Vaz, faz visitas guiadas. Como nota o presidente do CCV, “são relatos na primeira pessoa que enriquecem o passeio”.
O almoço é no vizinho Restaurante Armazém Central, que, aos fins de semana e feriados, tem cantares alentejanos, ao vivo, como banda sonora. Debaixo das arcadas, uma galeria comercial. A cafetaria Lousal Gourmet, aberta por Paula Lança, 52 anos, teve tanto sucesso que obrigou a ceramista a mudar as suas peças, de argila vermelha e caulino, para uma segunda loja, uns metros acima.
Lousal – Tunes
De regresso à estrada principal, pelas 16 e 25, um comboio de mercadorias ruma a Sul. Nos postes de eletricidade, alinham-se ninhos de cegonhas. Faltam 16 km até o aviso de radares e semáforos amarelos intermitentes anteciparem a entrada na Mimosa. Instalados há cerca de cinco anos têm evitado muitos acidentes. Um exemplo a seguir pela autarquia de Grândola para Canal Caveira?
Ponto de paragem obrigatória para a maioria das viaturas da rede nacional de expressos, nem só de carroçaria se faz a paisagem – o vento serpenteia pelas verdes plantações de milho. No Restaurante São Sebastião, aberto em 1977, é hora do lanche para os 34 ocupantes da camioneta que chegará a Vila Real de Santo António, no Sotavento algarvio, às oito e meia da noite. Tal como acontece em Canal Caveira, também na Mimosa os automobilistas consomem menos, como atesta Manuel Ruas, 40 anos, gerente do restaurante. “Estamos a servir menos refeições por dia do que em 2011: à volta de 150 no self-service e 60 a 80 no restaurante.”
No quintal da sua vivenda, o senhor Rosinha, como é conhecido, observa o vaivém de carros, enquanto a esposa, Amarílis, brinca com a cadela Fofinha, sempre a ladrar. Septuagenários, moram há 47 anos rente à estrada, com o ensurdecedor barulho dos camiões a entrarem-lhes vida adentro. Rosinha enumera com orgulho as vezes que foi à televisão com o grupo de cantares Amantes do Alentejo, no qual é acordeonista. Antes de trabalhar 16 anos na bomba de gasolina, uns metros mais abaixo, passou por uma fábrica, em Alvalade. “Nessa época, a largura da estrada reduzia-se a metade e uma carreira de pinheiros dava sombra. Havia oito vivendas e muitas hortas”, relembra. A casa está à venda, há quase dois anos. “Queremos ir para junto dos nossos filhos, em Viana do Castelo.”
Perto de Ourique, o sol vai baixando sobre os campos de milho e os pastos dourados, onde vacas charolesas se confundem com a paisagem, lembrando-nos que está na hora de inverter a marcha em Tunes (Silves), e regressar à capital. No sentido contrário, a coluna de carros rumo a sul vai engrossando, à medida que a noite avança. Nos primeiros nove dias deste mês, contabilizaram-se, no posto da Marateca, mais de metade dos automóveis que ali passaram em todo o mês de julho do ano passado. Um prenúncio de que, este verão, o IC1 poderá passar de “itinerário complementar” a principal.