(NOTA: Texto publicado na edição de 12 de Agosto de 2004 da VISÃO, a propósito dos 20 anos da primeira medalha de ouro para Portugal nos Jogos Olímpicos)
O Sol já tinha iniciado a curva descendente, mas o ar ainda continuava abafado. No ecrã electrónico, os números do termómetro davam a confirmação: 35 graus e 76% de humidade. Sentado na relva, esticando os músculos, Carlos Lopes parecia não se importar com o calor. Com o olhar tenso, mas sereno, mostrava estar só compenetrado na corrida que iria iniciar dentro de momentos. Nada lhe abalava a concentração: nem a presença dos adversários nem o nervosismo das grandes competições. “Acho que nunca me senti tão confiante como naquele dia”, recorda, agora, 20 anos depois.
Em Portugal, todos os que enganavam o sono, de olhos presos às televisões, tinham mais esperança do que confiança. Eram as primeiras horas de segunda–feira, 13, mas para a História ficou a data inscrita no fuso horário da costa Oeste dos Estados Unidos: 12 de Agosto de 1984, último dia dos Jogos Olímpicos de Los Angeles, e a derradeira oportunidade para Carlos Lopes, então com 37 anos, conquistar a medalha de ouro que lhe tinha fugido, em 1976, na volta . nal dos 10 000 metros dos Jogos de Montreal, quando foi ultrapassado pelo finlandês Lasse Viren. E podia ser também um fecho histórico para umas Olimpíadas já inesquecíveis, depois das medalhas de bronze de Rosa Mota (maratona) e de António Leitão (5 000 metros), mas também pela desilusão de Fernando Mamede, então recordista mundial dos 10 000 metros, mas que desistiu ao não suportar o nervosismo.
Confiante, motivado, Carlos Lopes colocou-se na linha de partida, com o número 723 colado à camisola branca, com duas riscas horizontais, verdes e vermelhas. Vinte anos depois, sorri quando se lembra desse momento: “Sentia-me muito, muito bem. Estava confiante, supermotivado e confesso que nem olhava para os adversários. Não convém fazer isso nesses momentos, pois o olhar, às vezes, pode dar a impressão de que estamos com medo. E a mim, naquele momento, ninguém me intimidava. O meu único e verdadeiro adversário eram os 42,125 km que estavam à minha frente, até à meta no Estádio Olímpico.”
Anos de preparação
Porquê tanta confiança? Lopes volta a sorrir (percebe-se que está outra vez mais solto, mais alegre, depois de alguns anos em que, com uns quilos a mais, parecia estar sempre zangado com o mundo): “Porque sabia exactamente o que precisava de fazer. Tinha-me preparado para aquele momento durante dois anos e meio. E desejava-o desde a final dos 10 000 metros dos Jogos de Montreal. Foi nesse dia que decidi que ainda iria ser campeão olímpico, que ainda iria ganhar a medalha de ouro que tinha perdido naquela última volta. Não pude ir aos Jogos de Moscovo, em 1980, porque estava lesionado e, então, rapidamente fiz contas e vi que, nas Olimpíadas seguintes, em 1984, já teria 37 anos, uma idade quase impossível para ganhar medalhas nos 10 000 metros. Tinha de ser, então, na maratona.”
Todos os dias, durante dois anos e meio, Carlos Lopes preparou-se para esse objectivo. Saía de casa de manhã e ia correr. Voltava e, à tarde, ia correr outra vez. Duas vezes por dia, todos os dias do ano. “Quando cheguei a Los Angeles levava 12 mil quilómetros nas pernas. Mas, mais importante, todos eles corridos em grande velocidade, como se estivesse a treinar para as provas de 5 000 ou de 10 000 metros.” Os cuidados foram de uma grande exigência também na alimentação. Lopes ficou mais leve, sem perder força e resistência muscular, mas tornando-se, dessa forma, muito mais fácil de “transportar” ao longo da prova. “Estava em tão boa forma que voltei a treinar apenas três dias depois de ter sido atropelado a meio de um treino, quase na véspera da partida para a Califórnia”, recorda.
Como uma máquina
Quando chegou aos EUA, dez dias antes da maratona, Carlos Lopes ficou alojado nos arredores de Los Angeles, num hotel cedido pela marca norte-americana que o patrocinava e que tentava, então, furar o domínio das firmas europeias de material desportivo: a hoje poderosa Nike.
“Foi o melhor que fiz. Estava afastado da pressão da Aldeia Olímpica, tinha um bosque onde podia correr protegendo-me do calor, e ainda a companhia da minha mulher”, enumera.
“A prova, depois, foi uma das mais fáceis da minha carreira”, diz, mostrando quase relutância em recordar pormenores da corrida de 12 de Agosto de 1984. Mas encolhe os ombros e tenta o flash-back possível: “A maratona não teve muita história. Pelo menos para mim, já que correu exactamente como tinha planeado. De início, a minha única preocupação era controlar, seguir no grupo da frente, mas sem nunca marcar o ritmo. Em relação aos adversários, não estava nada preocupado com o Salazar ou o Castela, que eram considerados favoritos. Eu sei que nas maratonas olímpicas os favoritos nunca ganham, por isso tinha, isso sim, atenção aos africa-nos e aos japoneses, de onde poderia surgir uma surpresa. Aos 33 km fui para a frente, mas rapidamente dei a dianteira a outro. Ainda não tinha chegado o momento planeado. Esse estava reservado para os cinco quilómetros finais.”
E não falhou: “Ao km 37, quando já só íamos três, acelerei o passo e os outros nem sequer reagiram. E eu fui sempre aumentando o ritmo. Aos 40 km pensei: ‘Pronto, já está, só com muito azar é que posso perder esta corrida.'” Os últimos cinco quilómetros foram corridos em incríveis 14 minutos e 33 segundos. A entrada no Estádio Olímpico foi “inesquecível”, com as bancadas lotadas, já que depois da maratona ia iniciar-se a cerimónia de encerramento dos Jogos. No ecrã electrónico ficou assinalado o tempo: 2 horas, 9 minutos e 21 segundos. Recorde olímpico que ainda se mantém.
“Quando cortei a meta a alegria foi indescritível. Tinha conseguido aquilo que mais queria. Sei que sou muito frio e que, portanto, não fui muito emotivo, limitei-me a levantar os braços e a sorrir. Não quis entrar em folclores, mas sentia-me extremamente realizado. Eu sabia que tinha condições para ser campeão olímpico, lutei por isso, trabalhei muito e, no fim, consegui.” Em Portugal, já passava das 3 horas da madrugada. Soltaram-se foguetes, abriram-se garrafas de champanhe, gritou-se nas ruas, acordaram-se os vizinhos. Milhões de portugueses lembram-se exactamente onde e com quem estavam nesse dia 12 de Agosto (que, afinal, para nós já era 13…), e do momento em que a bandeira nacional subiu ao mastro e, pela primeira vez na história olímpica, A Portuguesa ecoou no estádio. Curiosamente, Carlos Lopes diz lembrar-se, ainda hoje, mais vezes da corrida dos Jogos de Montreal, em 1976. Percebe-se porquê: foi ao perdê-la que começou a ganhar a medalha de ouro de Los Angeles.