Há um pequeno aglomerado, não mais de 50 pessoas, que está a captar a atenção de quem passa de carro ou autocarro pela principal avenida de Moscavide, precisamente com esse nome, ali na entrada – ou saída, consoante a direção em que se vai ou vem – do concelho de Loures. São de idades distintas e nem têm um estilo que os caracterize, talvez sejam apenas descontraídos no vestir e no estar, mas muitos seguram nas mãos bandeiras coloridas. E, pelo meio, há dois músicos que tocam instrumentos de percussão, quase parece que estamos num bloco de Carnaval, caso a época ainda estivesse para surgir no calendário, as pessoas vestissem menos roupa e tivessem mais brilhantes e mais meneio corporal.
Só quando a discreta Mariana Mortágua, 37 anos, líder do Bloco de Esquerda, o seu número dois Fabian Figueiredo, 35 anos, e Jorge Costa, 48 anos, em terceiro lugar nas listas, se aproximam deste grupo de cidadãos, é que ele se exalta um pouco, desatando aos gritos: “É bloco, é bloco, é Bloco de Esquerda!” Ela, com uma leve sombra rosa nos olhos, marcada por algum rímel discreto, veste um sobretudo azul escuro por cima da camisola de gola alta cor de salmão e das calças de ganga Levi’s. Nos pés, os seus já míticos ténis All Star, prontos para mais uns passos na caminhada até 10 de março. Na lapela do seu casaco, tal como Fabian, mostra um crachá com uma fatia de melancia, símbolo dos ativistas contra a guerra entre Israel e o Hamas (são as cores da bandeira da Palestina: casca verde e branca, polpa vermelha e sementes pretas). Os apoiantes preferem colar na roupa autocolantes vermelhos com a cara da líder e a inscrição “Não lhes dês descanso”.
Mariana vem cheia de recados para dar, no seguimento dos acontecimentos do dia. Em primeiro lugar, repudia veemente o tipo de ações que condicionam o livre decorrer da campanha eleitoral. Refere-se à tinta verde que fora atirada para o seu adversário político, Luís Montenegro, por um ativista climático, durante a manhã. “Em vez de ajudarem essas causas, fazem o contrário. É intolerável, nada justifica.” Logo a seguir a este acontecimento que marcou o dia – e que já se diz que pode ter catapultado Montenegro nas sondagens – a líder do Bloco fez questão de expressão opinião idêntica na rede social X.
Depois, lança o tema da interrupção voluntária da gravidez, que há de acompanhá-la pelo resto da jornada, a propósito das declarações do vice-presidente do CDS e candidato da Aliança Democrática, Paulo Núncio, que defendeu que “a única forma” de se reverter a despenalização do aborto seria pela via de um novo referendo. “Trata-se de um direito consagrado na Lei. Portugal não volta atrás. Nenhum partido com assento parlamentar se atreve a pôr em causa esta lei histórica”, assegura, denotando algum frenesim por ter de voltar a este assunto que já deveria estar arrumado.
“Somos lésbicas”
Quando as mensagens acabam de ser ditas e Mariana se mete a caminho da arruada, é logo impedida de avançar por um casal de mulheres, de autocolante ao peito, que fazem questão de posar com a líder para uma fotografia. São Maria Abreu, 26 anos, e Maria Zambujinho, 30, ambas vigilantes de profissão, a viver num T2 na Amadora, pelo qual pagam 700 euros mensais. Antes, votavam PS, mas há dois anos derivaram para o Bloco, pois sentem que é o partido que melhor apoia as suas causas. “Somos lésbicas”, avisa a mais velha, enquanto dá o braço à sua namorada. A habitação, outro assunto que estará latente neste final de tarde, também é outra das questões que preocupa o casal. O casal e não só.
À porta da pastelaria Rita, Mariana Mortágua é abordada por uma senhora que lhe mostra várias fotografias de sem-abrigo, na Gare do Oriente: “É uma vergonha. É só alojamento local por todo o lado e as pessoas têm de ficar numa estação de metro.” A líder bloquista vê as imagens com atenção e entra em franca solidariedade com a situação. No final da arruada há de voltar ao assunto, dizendo: “Há pessoas sem-abrigo que trabalham, ganham salário e não conseguem pagar uma renda em Lisboa. Essa é a maior indignidade deste país e é por ela que nos batemos.”
“Deixa passar, deixa, eu sou do Bloco e o mundo eu vou mudar.” É esta a nova rima gritada pelos apoiantes, quando Lucília Pedro, de 72 anos, reformada da Caixa Geral de Depósitos (CGD), larga o neto na cadeira da esplanada da pastelaria Rosa e aborda o par de bloquista que encabeça a arruada. Fabian só tem tempo de responder: “Nós nunca falhamos!” Esta antiga líder sindical e membro da comissão de trabalhadores do banco havia lembrado os políticos do seu partido de que no dia 1 de março vai haver greve na CGD e que ela, apesar de já não se encontrar no ativo, lá estará a acompanhar os colegas na concentração nacional. Será que o Bloco aparecerá, tal como prometido?
Do Chega, só “chega para lá”
A ação de rua prossegue com muitos beijinhos e abraços (quantos votos se ganharão nesta atividade?), numa rua longa, de passeios largos e muitas lojas tradicionais. Mariana também acena ao longe, e para os cabelos brancos que aparecem a espreitar às varandas dos prédios baixos desta avenida. Às vezes, os apoiantes batem palmas e fazem mais barulho. As bandeiras nem precisam de muito para abanarem, pois o dia está ventoso. Passa um autocarro. Lá dentro, há quem filme o que se passa no passeio, mas também se veem pessoas num total alheamento. “Força Mariana!”, gritam-lhe, de repente.
Mas não foi José Gomes, 69 anos, a viver em Moscavide desde os 10 anos. Este reformado está na esquina com a rua Artur Ferreira da Silva, e acaba de saudar a jovem líder. “Acho que é uma ótima política e penso como ela.” No entanto, Mariana não receberá o seu voto. “Sou socialista desde o 25 de Abril, mas gostava que se coligassem outra vez. Disse-lhe que desejava que tivesse uma boa votação para a esquerda poder seguir em frente.” Do Chega só quer um “chega para lá”, pois ainda se lembra bem dos tempos em que não havia liberdade e quem nos governava era um ditador.
Tem piada que este cidadão manifeste o seu repúdio pelo projeto político de André Ventura, uns minutos antes de o pequeno aglomerado dar por terminada a arruada. É que os apoiantes decidem parar no largo da igreja de Santo António, um edifício de 1955, junto a um poste em que está pendurado justamente um cartaz do Chega (“Vamos acabar com a corrupção e os tachos em Portugal”). De um lado, estão sob o olhar do Papa Francisco (“Moscavide acolhe”, são resquícios da visita papal do verão passado), do outro é a extrema-direita que os vigia, enquanto enrolam as bandeiras coloridas, que voltarão a ser desfraldadas no comício marcado para as nove da noite em Torres Novas. “Estamos na luta, pessoal!”, despede-se Mortágua.
“O que é isto?”, pergunta-nos uma senhora, com ar de beata, completamente alheada da realidade. “Ah…”, reage, sem reagir, antes de nos virar costas, e entrar na igreja modernista, onde decorre uma missa, indiferente ao pedigree dos azulejos da fachada de Manuel Cargaleiro ou da estátua de Santo António, da autoria de Lagoa Henriques.