Especialista em crime organizado e tráfico de droga, Sylvie Figueiredo admite que a alegada tentativa do Primeiro Comando da Capital (PCC) – a maior e mais perigosa organização criminosa da América Latina – em se implatar em Portugal pode “fazer aumentar a violência” e “colocar em causa a paz social” no país.
“Se o PCC conseguir estabelecer-se em Portugal, a ameaça que pende sobre o território português torna-se muito mais significativa. Não me parece que seja fácil que isso aconteça (…), mas [a acontecer] poderia colocar em causa a paz social em Portugal”, afirmou a investigadora, formadora e escritora, em conversa no Irrevogável, o programa de entrevista da VISÃO.
Após vários anos de suspeitas e especulações, as autoridades brasileiras confirmaram, no final do ano passado, a presença em Portugal do PCC.Como a VISÃO adiantou, na sua edição de 6 de outubro, uma investigação do Ministério Público (MP) de São Paulo, liderada pelo procurador Lincoln Gakiya, concluiu que, pelo menos, 42 membros desta organização criminosa tinham residência fixa no país no final de 2021 – o que seria a primeira confirmação formal da presença deste grupo em Portugal.
Mais recentemente, em dezembro do ano passado, a Polícia Federal brasileira alertou formalmente a PJ e o MP português para a presença do PCC em Portugal, num encontro, realizado à distância – por via telemática –, que reuniu numa sala da sede da PJ, em Lisboa, os principais nomes ligados ao combate a este tipo de criminalidade em Portugal.
Já esta sexta-feira, a VISÃO divulgou, em exclusivo, que a PJ já admite internamente a presença do PCC em Portugal, depois de ter confirmado a ligação a este grupo de quatro indivíduos, com residência fixa no país.
Europa invadida por “onda branca”
A presença de Portugal na rota europeia do tráfico de cocaína não é uma novidade. Porém, Sylvie Figueiredo admite que o continente está, neste momento, a ser “invadido por uma onda” deste estupefaciente, oriundo da Colômbia, Bolívia e Perú, os maiores produtores de cocaína a nível mundial. “Desde 2014, há um aumento muito significativo da produção de cocaína no mundo, devido às melhorias técnicas [para a extração de cocaína da folha de coca, nos terrenos de cultivo]”, o que, segundo esta especialista, explica “o aumento de droga que está a ser escoada [em grandes quantidades] em direção aos mercados consumidores”.
“De acordo com os últimos dados das Nações Unidas, referentes a 2020, verificou-se uma duplicação dos níveis de produção, a partir de 2014. [Atualmente], são produzidas, anualmente, 2 mil toneladas de cocaína no mundo”, que são exportadas para “as sociedades mais ricas do planeta”, para territórios como os Estados Unidos da América, Europa e Austrália.
“As autoridades europeias conseguem, em média, apreender 200 tonelas de cocaína por ano. Se existem 20 mil toneladas, e se a Europa receber 40% dessa quantidade, isso significa que a estatística de várias organizações não-governamentais [como a Insight Crime, que aponta que apenas entre 10% a 20% da cocaína que chega à Europa é apreendida] estão certas”. A confirmá-lo, o facto de “continuar a não faltar cocaína na Europa; e o próprio preço desta droga ter vindo a baixar, nos últimos tempos, permitindo concluir que não há escassez e existe concorrência entre grupos”, diz.
Prioridade a combater o tráfico de droga
Em Portugal, o número de apreensões de cocaína já atingiram as 16 toneladas em 2022, segundo números da Polícia Judiciária (PJ). Um aumento em relação aos números do ano anterior, quando ainda faltam apurar os dados da PSP e GNR – que apenas serão divulgados após publicação do Relatório Anual de Segurança Interna (RASI), referente ao ano passado.
Segundo Sylvie Figueiredo, o papel das autoridades portuguesas no combate a este tipo de criminalidade tem sido “muito positivo”, mas acompanha a opinião do diretor nacional da PJ, Luís Neves, que, em entrevista recente na RTP, anunciou que propôs que o tráfico de droga passasse a ter o estatuto de “crime de investigação prioritária” na revisão da Lei de Política Criminal que está em curso. “Além da questão policial, importa existirem políticas de combate à criminalidade organizada e, em particular, ao tráfico de droga. É algo fundamental”, refere.
Autora do romance Narcotuga, inspirado no universo do narcotráfico em Portugal, Sylvie Figueiredo alerta que, “tendo em conta as características do território português, o tráfico de droga nunca deveria perder esse estatuto” no país. “Portugal é, há três décadas, uma ‘porta de entrada’ de cocaína na Europa, somos vizinhos do maior produtor de haxixe do mundo [Marrocos] e, portanto, tendo em conta a nossa localização geográfica, vamos estar sempre sujeitos a este tipo de criminalidade”.
Porquê a escolha por Portugal?
Para Sylvie Figueiredo, a presença do PCC em Portugal surge com naturalidade. “A ligação geográfica ao Brasil – ambos os países com frentes Atlânticas –, mas também cultural, histórica e linguística pode permitir aos membros do PCC tornarem-se menos notados em Portugal”, explica, acrescentando que o facto de “a comunidade brasileira estar muito bem instalada em Portugal pode facilitar a fixação e adaptação de membros deste grupo”.
Além das características do território português, é também preciso ter em conta o “apoio logístico” grantido pelos países lusófonos, localizados na costa ocidental africana, como Cabo Verde, Angola ou Guiné-Bissau, ou mesmo as ilhas portuguesas Atlânticas, como a Madeira e os Açores, “que sempre foram utilizadas por estas organizações criminosas”, alerta a especialista.
Apesar destes fatores, Sylvie Figueiredo confia que é possível combater organizações desta dimensão. A especialista destaca que “estes grupos estão profundamente bem estruturados, muitas vezes não dependendo de nomes”. “As detenções são simbólicas para a polícia, têm, de facto, efeitos operacionais, mas (…) estamos a falar de uma atividade que mexe com muito dinheiro e quando um líder ‘cai’, muito rapidamente se encontra alguém disponível para assumir esse lugar”, afirma.
Ainda assim, a investigadora aponta como solução “seguir o rasto do dinheiro”. “O objetivo destes grupos é o lucro, por isso, aquilo que os consegue deter não é prender pessoas, mas apreender os meios financeiros, que conseguem obter com a prática dos seus crimes, e os meios operacionais, de que precisam para concretizá-los. Aquilo que temos verificado é que esta é a melhor forma de combater estas organizações criminosas”, sublinha.