A conversa com João Cotrim de Figueiredo decorreu 12 horas antes de Ursula von der Leyen ser reeleita como presidente da Comissão Europeia, num dos átrios atarefados do novo Parlamento Europeu, em Estrasburgo, França. Depois de lançar dúvidas quanto ao apoio dos liberais à candidata, o eurodeputado português admitiu que o seu sentido de voto ficou apenas decidido apôs “uma conversa de três quartos de hora” com Von der Leyen. O vice-presidente do Renew (Renovar a Europa), agora a quinta maior bancada do hemiciclo, partilhou à VISÃO metas e sonhos para os próximos cincos.
A primeira sessão plenária do novo Parlamento Europeu arrancou com a eleição da presidente Roberta Metsola, com um resultado histórico [numa votação que contou com 699 eurodeputados, Metsola conseguiu 562 votos a favor (90,2% dos votos válidos], o que revela, pelo menos neste tema, que as forças políticas presentes no hemiciclo podem estar alinhadas. Perante o atual quadro parlamentar, com uma polarização crescente no hemiciclo, este foi um desfecho que o deixou surpreendido?
Não. É a prova de que na União Europeia (UE) pode haver consensos, como há sempre em democracia. Para mais, estamos a falar daquilo que foi a apreciação de uma mandato assumido em circunstâncias muito especiais e difíceis. Prova, de facto, que é possível criar consensos na UE. Mas nada mais do que isso, atenção… Não nos diz nada sobre o que serão os alinhamentos no futuro.
O primeiro “teste de fogo” da nova legislatura surgiu com a votação para a reeleição de Ursula von der Leyen como presidente da Comissão Europeia [Ursula von der Leyen, que precisava de 360 votos dos eurodeputados, foi reeleita com 401]. O que espera deste momento?
A aritmética é fácil de se fazer: são precisos 360 votos, há 401 eurodeputados dos grupos que apoiam claramente Ursula von der Leyen – o PPE [Partido Popular Europeu], os socialistas e os liberais –, sabemos que dentro desses grupos há alguns deputados rebeldes que, por motivos atendíveis de política interna ou discordância individual, não vão votar na candidata… Estamos, portanto, a falar de uma margem de 40. Se vai ser suficiente é incerto, mas também é de esperar que alguns membros dos grupos dos Verdes e até dos Reformistas e Conservadores Europeus (ECR) possam votar a favor da Von der Leyen. Não vou, no entanto, dizer que está garantido…
O próprio João Cotrim de Figueiredo chegou a verbalizar dúvidas quanto ao apoio a Ursula von der Leyen…
Eu questionei, sobretudo, a maneira como se estava a lidar com o Renew [Renovar a Europa, grupo dos liberais no Parlamento Europeu], que me pareceu pouco transparente e até muito pouco respeitosa. Tinha-se incumprido um conjunto de pré-acordos, que vinham ainda da última legislatura e, depois, também não se tinha mostrado suficiente vontade em salvaguardar os princípios que fizeram da UE um projeto político bem-sucedido. A saber: defesa dos valores democráticos, quando havia contactos públicos e frequentes com o ECR; a defesa das liberdades individuais, quando há demasiada facilidade em admitir o controlo de discursos; e, também, falhas na defesa do comércio livre, quando há demasiada facilidade em decidir sobre tarifas a aplicar a determinadas importações. Não estou a ser fundamentalista, mas acho que o princípio europeu que nos deveria estar a inspirar está insuficientemente enraizado, e isso é mau.
O Renew passou de terceira para quinta força política no Parlamento Europeu. Esta terá também sido uma oportunidade para que os liberais fizessem uma “prova de vida”? Não foi uma forma de mostrar ao PPE que ainda têm peso e que esta bancada precisa de contar com os liberais no hemiciclo?
No que me diz respeito, não foi nada disso. Mas apenas uma dúvida fundamentada sobre se as outras forças consideram que a influência política que os liberais têm tido na construção de todo o projeto europeu – e que transcende a aritmética do hemiciclo – pode ser atirada borda fora… Merecíamos maior respeito e era preciso ter em consideração o que já tinha sido acordado. E, devo dizer, essa posição surtiu efeito, porque Ursula von der Leyen fez questão de falar comigo pessoalmente ontem [na quarta-feira, dia 17], para perceber exatamente a natureza das nossas queixas… Foi uma boa conversa, que era para ser protocolar, mas acabou por durar praticamente três quartos de hora. Uma conversa densa, em que não deixei nada por dizer e em que também ela [Von der Leyem] também não deixou nada por responder. Fiquei convencido que, a própria Ursula von der Leyen, acha útil ter no Parlamento Europeu forças que conheçam o papel da Comissão Europeia e da sua presidente e reconhece, naturalmente, que há valores europeus que merecem ser salvaguardados, e que isso também é do interesse da Comissão.
Referiu que, muito provavelmente, houve votos de parlamentares do ECR em Ursula von der Leyen. Se juntarmos a isso a votação expressiva de Roberta Metsola, significa que o Parlamento Europeu poderá estar a alargar o “cordão sanitário” que historicamente é aplicado às forças de extrema-direita?
Isto pode ser um caso pontual. Ursula Von der Leyen deixou bem claro que não vai haver acordos estruturais com outras forças partidárias que não sejam as do PPE, socialistas e Renew, portanto, a partir deste momento, do ponto de vista político e estratégico, essa questão está resolvida. O que, na minha cabeça, não está resolvido é o facto de a estratégia de “cordão sanitário” não ter, até ao momento, resolvido o problema do crescimento da extrema-direita no Parlamento Europeu. Não está a resultar. Acho que seria muito mais inteligente fazer aquilo que a Iniciativa Liberal tem feito em Portugal, que é não fugir aos temas que são caros à extrema-direita, falar deles de forma diferente, com confiança e com soluções diferentes, não simplistas, mostrando às pessoas que elas não estão esquecidas pelo sistema e que não têm, necessariamente, de se refugiar em forças populistas para se sentirem representadas nos parlamentos nacionais ou no PE. Essa estratégia, aplicada à escala europeia, parece-me mais interessante e pode produzir mais e melhores resultados do que o “cordão sanitário” que tem sido aplicado até este momento.
João Cotrim de Figueiredo chegou a ponderar uma candidatura à liderança da bancada dos liberais, depois recuou. Depois desse episódio, como é que tem sido recebido pelos seus colegas de bancada?
Muito bem. A candidatura à liderança do Renew resultava da decisão do ALDE [Partido da Aliança dos Liberais e Democratas pela Europa] ter um candidato próprio à presidência da bancada. O ALDE representa dois terços dos lugares da bancada do Renew [que conta ainda com o Partido Democrata Europeu e o partido francês Renascimento de Emmanuel Macron], e não faria sentido que não tivesse um candidato próprio. Perante muitas hesitações, de quem poderia ter muito mais traquejo do que eu nestas matérias, achei que teria de ser feito um ponto político e acabei por dar a cara por esse projeto. Isso acabou por não ser formalizado, mas, imediatamente, no seguimento deste movimento, foi-me proposta a vice-presidência do Renew, com determinadas funções específicas de coordenação política, o que fez com que tenha sido uma das poucas do Renew a interpelar diretamente Ursula von der Leen [no debate que antecedeu à eleição desta como presidente da Comissão Europeia].
Podemos considerar esta nomeação como um sinal do crescimento da IL na família dos liberais europeus?
Claramente. Vários colegas têm, aliás, manifestado grande agrado pela forma como queremos abanar um bocadinho as águas e renovar o Renew. Este também é um dos meus objetivos para os próximos cinco anos.
Em que comissões ficou integrado?
Para já, foi-me atribuída a Comissão da Indústria, Pesquisa e Energia [ITRE], uma comissão importante, e serei ainda suplente na Comissão de Comércio Internacional [INTA]. São, portanto, duas comissões muito importantes para o crescimento económico, e essa é uma das nossas grandes prioridades.
Perguntava-lhe, exatamente, para terminar, quais as suas principais metas para o mandato 2024-2029?
Diria que tenho muita vontade de honrar o mandato que me foi conferido, defendendo três bandeiras essenciais: a do crescimento, da transparência e dos valores liberais. É algo que prometo defender até às últimas instâncias. Tenho, confesso, um sonho adicional: gostava de, ainda nesta legislatura, pudéssemos dar um primeiro passo para que fosse possível voltar a contar com o Reino Unido na UE. E, portanto, mesmo não fazendo parte da delegação que faz a ligação com o Reino Unido, trabalharei, em conjunto com esse grupo de trabalho, para tentar fazer com que isso aconteça.