“Nas outras funções, fala-se, fala-se e fala-se. No Executivo, ou se faz ou não se faz. Podem ficar nos palácios, ir aos jantares, fazer intrigas, mas deixem-nos trabalhar.” Ao contrário do que possa parecer, a frase que o leitor acabou de ler é uma colagem de duas afirmações, produzidas por duas personalidades diferentes, e com 30 anos de distância. Em 1993, o então primeiro-ministro, Cavaco Silva, num comício de campanha para as autárquicas desse ano, no Castelo de São Jorge, em Lisboa, dizia que podiam os outros intrigar nos palácios mas que, a ele, o deixassem trabalhar. Em março de 2023, António Costa produzia a sua versão do “deixem-nos trabalhar”, arengando que nas outras funções [as de Presidente da República] “fala-se, fala-se e fala-se” mas que no Governo, “se faz”.
Como se vê, as duas frases fundem-se na perfeição e parecem ter sido ditas pela mesma pessoa, no mesmo tempo histórico, numa única declaração. É certo que, quando Costa falou, ainda não tinha rebentado o conflito institucional a que assistimos, na semana passada, com o caso Galamba. Mas já todos tinham percebido que o confronto estaria por um fio. Em dezembro de 1993, porém, quando Cavaco pedia que o deixassem trabalhar, há muito tempo que o verniz tinha estalado entre ele e o Presidente Mário Soares. E se quisermos ter um vislumbre do que pode acontecer, daqui para a frente, entre Marcelo e Costa, teremos de revisitar o longo registo de guerrilha institucional desses anos. A Constituição era a mesma, as forças políticas (PS e PSD) onde militavam as figuras em causa também e as personalidades fortes, de políticos experimentados, podem, igualmente, equiparar-se. Só a relação de forças está invertida: nos anos 90, o PS era o partido do Presidente e o PSD o do primeiro-ministro. Em 2023, sem que a ordem dos fatores altere o produto, vivemos a situação inversa.