Há separações e separações, com mais ou menos ruído e um horizonte incógnito de uma possível reconciliação, mas nada como o dia em que se assinam os papéis de um divórcio. A votação da proposta de Orçamento do Estado para 2023, esta quinta-feira, foi a formalização litigiosa de que o PS, BE e PCP já não querem nada uns com os outros.
As 10 horas de discussão, que antecederam a aprovação do documento, serviram do embate onde se esgrimiram os argumentos: para os socialistas, foi a esquerda quem traiu; para os comunistas e bloquistas, o PS comporta-se pior do que o Governo de Passos Coelho. Já a direita, quando chamada ao barulho, mostrou que os tempos da austeridade, entre 2011 e 2014, não a deixam ser feliz.
O contraste entre a maioria absoluta do PS e os seis anos anteriores é evidente
Jerónimo de sousa, líder do pcp
Depois de, há um ano, o País ter sido atirado para uma crise política com o chumbo de uma proposta de orçamento do ex-ministro João Leão, desta vez o primeiro-ministro já tinha ensaiado na quarta-feira, quando abriu as primeiras cinco horas de debate, aquilo que viria a ser estratégia, esta quinta-feira, da bancada socialista e dos ministros que intervieram: a esquerda, mais concretamente o Bloco, recorreu à “traição” para destruir seis anos de gerigonça.
Antes da votação, esta quinta-feira, coube ao líder parlamentar do PS, Brilhante Dias dar uma última estocada na relação com o BE, acusando a bancada de Catarina Martins de fazer cair o Governo em 2021. Mas que, esse cenário, permitiu aos portugueses imaginarem o que “seria um orçamento de direita”, e que, foi “por isso que deram uma maioria absoluta ao PS” – “o único partido em quem podem confiar”.
A afirmação de Brilhante Dias veio na sequência da intervenção da bloquista Mariana Mortágua, que apontou ao PS a “imponência do poder absoluto”, sendo o orçamento um sinal disso. “Este orçamento dá a maior borla fiscal da última década aos bancos”, disse, acusando o Governo PS de “pensar como a Direita e governar como a Direita”. “Percebemos o sufoco da direita por falta de espaço político, a concorrência do PS é feroz”, salientou.
Também o líder do PCP, Jerónimo de Sousa, não teve pejo em apontar o dedo ao Executivo socialista: “O contraste entre a maioria absoluta do PS e os seis anos anteriores é evidente. Entre 2017 e 2021 foi-se além da lei e decidiram-se aumentos extraordinários para que os reformados e pensionistas pudessem ter aumentos do seu poder de compra. A partir de 2022, com a maioria absoluta do PS, decidem-se cortes nos aumentos que a lei prevê, em prejuízo dos reformados e pensionistas que voltam a perder o seu poder de compra”.
À direita, quer PSD, quer até o Chega – especificamente André Ventura, antigo militante laranja -, não digeriram bem as acusações de terem sido os autores da maior austeridade que o País passou nos últimos 30 anos. Foi, aliás, nessa outra mensagem em que os socialistas também apostaram logo no arranque do debate e durante esta quinta-feira. A ministra da Segurança Social, Ana Mendes Godinho, a quem coube encerrar a discussão de dois dias, resumiu que para o País, perante os efeitos da pandemia e agora da guerra, contar com uma resposta do Estado à altura “teria sido impossível se a direita estivesse no Governo”. “Virámos a página da austeridade, mas não virámos a página da memória”, disse.
“Temos falado de um orçamento de maquilhagens”, apontou Carla Castro, candidata à sucessão de Cotrim à frente da IL
À direita optou-se por não se falar desse passado. O líder parlamentar do PSD, Joaquim Miranda Sarmento, preferiu perspectivar o que vem aí com a entrada em vigor deste documento: “É um Orçamento sem estratégia nem visão, de tapa buracos, de empobrecimento. Portugal é hoje um país mais pobre e desigual e o Governo acentua esse empobrecimento generalizado – um corte de 3,5% para todas as pensões, um truque que leva os pensionistas a perder quase uma pensão”.
Do lado do Chega, por exemplo, a opção passou por atacar Fernando Medina, que tem neste documento o seu primeiro orçamento feito de raiz. Para André Ventura, o ministro das Finanças “é um cativador geral”, que tem uma proposta orçamental com “contas certas”, para depois aplicar “milhares de cativações”. “Fernando Medina é o verdadeiro ‘cativador-geral’ do reino, por ordem de António Costa”, atirou o líder do Chega.
À falta do tom de Cotrim Figueiredo, o líder demissionário da Iniciativa Liberal, coube a Carla Castro, que entrou na corrida à sucessão do presidente do partido, alinhar pelas mesmas críticas do PSD e do Chega: “O Governo diz que é um Orçamento de Estabilidade, confiança e compromisso. Na verdade significa estabilidade na estagnação, confiança que não nos contam a história toda e compromisso com a sobrecarga fiscal. Temos falado de um orçamento de maquilhagens”. Contudo, a IL foi a única que levou para este debate propostas concretas que quer ver incluídas no orçamento, entre as quais a redução do IVA nos produtos alimentares.

À saída do hemiciclo, acompanhado pela Secretária de Estado da Promoção da Saúde, Margarida Tavares – que ali esteve em substituição do ministro Manuel Pizarro -, António Costa evitou fazer comentários, à exceção de uma declaração taxativa: “Só tenho uma coisa a dizer; é muito simples. Faz hoje precisamente um ano, desta votação na generalidade, resultou uma crise. Felizmente, um ano depois, desta votação resulta um bom instrumento para enfrentarmos a crise que estamos a viver“.
Com as abstenções do PAN e do Livre – que esperam ter algum sucesso junto do PS, nas discussões na especialidade que se seguem, como consequência da sua posição – o Orçamento do Estado passou, com os votos contra de PSD, Chega, IL, PCP e BE. A 21 de novembro, inicia-se uma nova ronda de discussões, seguidas da votação final do documento.