Eram 1:38 quando o gabinete do primeiro-ministro enviou uma nota à comunicação social a informar que aceitara o pedido de demissão da ministra da Saúde e que já o comunicara ao Presidente da República. Marta Temido – a governante pragmática que atravessou a crise da pandemia de Covid-19 com índices de popularidade surpreendentes – não sobreviveu às notícias diárias que pintam um cenário de caos no Serviço Nacional de Saúde (SNS), com urgências encerradas, tempos de espera para consultas e cirurgias elevados e mortes por falta de assistência. O pedido não terá caído em saco vazio para Costa, uma vez que Temido já tinha anteriormente posto o seu lugar à consideração do chefe do Governo, que quis sempre que a ministra terminasse a missão de reformar o SNS.
Horas depois de ter sido conhecida a morte de uma mulher grávida que, há uma semana, se dirigiu ao Hospital de Santa Maria, em Lisboa, com dificuldade respiratória e tensão alta, mas que foi transportada para o Francisco Xavier por falta de resposta, sofrendo uma paragem cardiorrespiratória durante a viagem, Marta Temido meteu um ponto final na(s) sua(s) vida(s) à frente de uma pasta a ferver. Resistiu 1 414 dias, apesar de ter tido dias muito tremidos. Recorde alguns dos casos que colocaram a governante em xeque.
Escalas improvisadas e a máscara de oxigénio atirada por Marcelo
A primeira semana de junho revelou-se uma tempestade perfeita devido à falta de recursos humanos disponíveis no SNS para preencher as escalas desses dias. Entre férias e feriados, a ministra foi acusada de não ter conseguido antecipar a crise dos serviços encerrados em catadupa e de ter reagido com passividade. Nas Caldas da Rainha morreu uma criança, no parto, por deficiências na assistência, determinou a Inspeção-Geral das Atividades em Saúde.
A intervenção de Marcelo Rebelo de Sousa, que saiu em seu socorro, foi decisiva para que a ministra tivesse tido uma nova oportunidade de recuperar algum do capital político que ganhou com a pandemia e que se materializou no verão passado, em pleno congresso de Portimão, quando apadrinhada por António Costa, preenchia a sua ficha de adesão ao PS e era dada, pelo líder, como putativa sucessora na liderança do partido. “O problema não é da pessoa A, da pessoa B ou da pessoa C, nem sequer de um governo, deste ou de outro. O problema de fundo é estrutural, não é de um governo”, defendeu Marcelo Rebelo de Sousa, apenas dois meses volvidos desde que o Executivo tinha tomado posse.
Era a segunda vez que Temido enfrentava uma trapalhada na elaboração de escalas. Em 2019, várias maternidades na Área Metropolitana de Lisboa passaram pela mesma situação. Agora, com a agravante de haver menos profissionais disponíveis nos quadros destas para fazer face ao problema. Apesar de Temido ter apresentado um plano, criado uma comissão para gerir os tumultos deste verão, as vozes criticas (até dentro do próprio PS) não se calaram e continuaram a apontar que a governante não teria o que seria preciso para reformar o SNS numa altura crucial. Maria de Belém, antiga titular da pasta no primeiro governo de António Guterres – que se viu desautorizada pela atual ministra, quando o seu projeto de lei de bases da Saúde foi atirado o para lixo –, disse mesmo, na CNN Portugal, que “esperava mais” das medidas anunciadas para fazer face a esta crise da obstetrícia
Declarações de antecessores socialistas deixam ministra em xeque (desde junho)
“É inadmissível que os cidadãos sejam penalizados por um SNS condicionado, pelo que é preciso fomentar a colaboração dos setores privado e social”
Adalberto Campos FernandesTSF
“Não podemos andar, quando surge uma dificuldade, de contingência em contingência”
Adalberto Campos FernandesTSF
“Fiquei muito surpreendida [com as medidas anunciadas, pelo ministério, para as urgências de obstetrícia]. Estava à espera de muito mais”
Maria de Belém CNN
“Esta morte de uma criança [nas Caldas da Rainha] foi um clique que desencadeou uma situação de grande visibilidade sobre o que estava a acontecer”
Maria de Belém CNN
O nome que não se pode dizer
No primeiro debate com o primeiro-ministro da sessão legislativa passada, no final de junho, Marta Temido já era uma mulher só. António Costa assumiu, perante a Assembleia da República, “a responsabilidade de tudo o que ocorre no Governo”, na sequência das criticas à falta de planeamento da sua ministra, sem nunca ter pronunciado o nome de Marta Temido.
Aborto corta bónus
Em maio de 2022, uma comissão técnica propõe que os médicos das USF de tipo B possam deixar de ter acesso ao bónus, nos casos de interrupção voluntária da gravidez (IVG) e de mulheres que sejam portadoras de doenças sexualmente transmissíveis. Contestada no Parlamento, a ministra falou de descontextualização de uma medida que nem sequer tinha tido, ainda, o seu aval.
A saída pouco clara de Jamila Madeira
Em outubro de 2020, em plena crise pandémica, a demissão da secretária de Estado Adjunta e da Saúde, Jamila Madeira, surpreende… até a própria. E até hoje desconhecem-se os verdadeiros contornos da substituição por António Lacerda Sales (então apenas secretário de Estado). Madeira deixou a sua indignação bem patente à saída, explicando que foi apanhada desprevenida.
Médicos pouco resilientes
Na Comissão Parlamentar de Saúde, em dezembro de 2020, Temido afirma, referindo-se aos médicos: “(…) Porventura, outros aspetos, como a resiliência, são tão importantes como a sua competência técnica.” A contestação foi imediata e veio de todos os lados. A Ordem dos Médicos emitiu um comunicado e o Presidente Marcelo também disse que os médicos eram resistentes. A ministra pediu desculpa e explicou melhor o que queria dizer…
Listas de espera manipuladas
Um relatório publicado em abril de 2019, encomendado à Ordem dos Médicos e assinado pelo bastonário Miguel Guimarães, revelou que a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) retirou doentes das listas de espera para consultas entre 2014 e 2016 (altura em que Temido foi presidente deste organismo) para que o desempenho fosse mais bem classificado. A ministra considerou as conclusões deste estudo “intoleráveis”, garantindo que “o objetivo foi sempre ter informação mais fiável a partir de instrumentos que não foram pensados na origem para dar informação do tipo que nós hoje queremos extrair deles”.
A crise dos enfermeiros
A suspeita de que a Ordem dos Enfermeiros teve uma participação ativa na organização das duas temporadas da chamada “greve cirúrgica” (uma greve às cirurgias programadas) de novembro e dezembro de 2018, bem como na que se iniciou a 31 de janeiro de 2019, levou o executivo a pedir uma investigação àquela ordem e a abrir uma guerra com a bastonária Ana Rita Cavaco, com que já não tinha relações fácies.
Em entrevista à TSF e ao DN, a 2 de novembro de 2018, a ministra tinha dito que não iria negociar com estes enfermeiros em greve, acrescentando que isto seria “privilegiar o criminoso, o infrator” – declarações que caíram como uma bomba na classe e que a obrigaram a fazer um pedido de desculpas aos profissionais de saúde.
A PPP de Braga
Foi a sua primeira batata quente. Em dezembro de 2018, a ministra revelou que a parceria público-privada (PPP) no Hospital de Braga iria terminar por “indisponibilidade definitiva do parceiro privado [Grupo Mello] para prosseguir a concessão”. A José de Mello Saúde desmentiu, garantindo ter estado, “desde o primeiro momento, disponível para o prolongamento do contrato (…), dentro do atual modelo contratual, desde que esclarecidas as condições de execução do contrato e da sustentabilidade financeira da parceria”. Mas a PPP não foi renovada.
O tema das PPP foi ainda pedra no sapato de Temido por altura da discussão da nova Lei de Bases da Saúde, que, numa versão do documento, admitia “exceções, como as PPP, acordos de cooperação ou outro tipo de contratos” se fosse “necessário”. Versão que mereceu a recusa da ala mais à esquerda do PS, dos bloquistas e dos comunistas; impedindo as negociações de seguirem e obrigando os socialistas a rescreverem o texto. Pelo meio, Temido protagonizou uma troca de galhardetes com a líder do BE, Catarina Martins, que acusou a ministra, em entrevista à Notícias Magazine, de nunca ter enviado a proposta ao partido. Temido desmente.