Mais sete dias. Foi o prazo pedido por Ferro Rodrigues na primeira conferência de líderes da Assembleia da República (AR), ontem, quando a Iniciativa Liberal (IL) fez ouvir o seu desconforto quanto à possibilidade se manter sentada à extrema-direita do hemiciclo, perto do Chega – lugar que lhe foi atribuído após as legislativas de outubro de 2019.
Na ata da reunião, a que a VISÃO acedeu, o presidente da AR revelou que, já na terça-feira, o líder do partido, João Cotrim de Figueiredo, acompanhado por Rodrigo Saraiva (até agora chefe de gabinete da IL e futuro responsável pela bancada parlamentar), tinha “defendido que a distribuição de lugares no hemiciclo deveria ser objeto de uma decisão política, e não meramente administrativa”.
Ou seja, há dois anos, a distribuição dos lugares pertenceu a Ferro; tendo até motivado uma grande discussão, já que André Ventura foi encostado à coxia, obrigando a que os deputados do CDS tivessem de se levantar para o presidente do Chega conseguir passar (refira-se que chegou inclusivamente a ser equacionada criar-se uma porta naquele lugar, por sugestão do então líder parlamentar do PEV, José Luís Ferreira).
Tal como assumira publicamente horas antes, Cotrim disse aos outros líderes parlamentares que “não se tinha sentido confortável com o lugar que lhe calhou ocupar na presente legislatura, defendendo que esta é uma decisão que não deve ser tomada antes do início da nova legislatura”.
Ferro explicou, então, que “a discussão em torno dos lugares” vai ser feita “na reunião seguinte” da conferência de líderes, “acrescentando que a decisão definitiva podia ser tomada logo que estabilizada a nova composição dos grupos parlamentares e na nova Mesa”. Mas que se a IL não concordar pode apresentar “sempre recurso para o Plenário”.
A Iniciativa Liberal passou de um deputado apenas para oito parlamentares na últimas legislativas, tornando-se a quarta força política na AR.
A disputa pela virtude que está ao centro
Ora, o que está em causa não é novo. Com uma agenda liberal – quanto aos costumes, papel do Estado e economia -, a IL mostrou vontade de ficar, após as eleições de 2019 e antes de o Parlamento reunir pela primeira vez, entre o PS e o PSD. Motivo? “Vontade de estar o mais distante dos extremos”, disse então Cotrim, num comunicado, com base no que defendera na campanha eleitoral: que o partido não se revia nos blocos esquerda e direita, estabelecidos pela Revolução Francesa.
Ferro Rodrigues decidiu então, além de colocar Joacine Katar Moreira entre o PCP e o PS, sentar Cotrim ao lado do CDS; e depois, ainda mais à direita dos centristas, Ventura. Já o PAN, em 2015, com André Silva, tinha levado a melhor, ao conseguir sentar-se, como pretendia, entre o PS e o PSD – razão pela qual, quando o partido agora liderado por Inês Sousa Real aumentou a sua bancada para quatro eleitos, se manteve no mesmo lugar até à legislatura que termina.
“As conclusões da conferência de líderes demonstram uma vez mais o sentimento de propriedade que alguns têm da democracia”, acusou, ainda, o líder da IL, após ter sido confrontado com a deliberação, em outubro de 2019.
Refira-se que, na discussão de ontem, André Ventura acusou o toque da IL se querer mudar para outra paragem. De acordo com referida ata, o presidente do Chega “referiu que não queria entrar na questão dos lugares no hemiciclo, até porque tinha ficado confortável com o seu”.
Rio indisponível para “brincadeira de mau gosto“
Quem não facilitará a decisão a Ferro Rodrigues será o PSD, que, se em 2019 já fez valer o seu protesto à porta fechada, veio esta quinta-feira afastar liminarmente a possibilidade de ficar encostado ao Chega, com Cotrim a aceder ao hemiciclo pela porta central – que por acaso dá acesso aos gabinetes dos sociais-democratas.
“Não aceitaremos isso de forma alguma e julgamos que isto anda próximo de ser uma brincadeira de mau gosto“, disse Rio, numa declaração nos Passos Perdidos, que não tinha sido sequer agendada e à margem da reunião da Comissão Permanente – que substitui há cerca de três meses o plenário da AR.
Para o líder do PSD, “a IL é um partido que defende a privatização forte da economia – defende a privatização da caixa geral de depósitos, defende a privatização da RTP, defende a privatização do SNS, defende a privatização da Segurança Social”. “Com isto, não estou a dizer nem bem nem mal, não estou a criticar nem a aplaudir. Estou a constatar que defende o contrário do que defende o PCP – que defende a nacionalização disso tudo”, explicou, perante o facto de Cotrim ter estado até agora sentado em linha reta com os comunistas.
“Do ponto de vista ideológico, é completamente indiscutível que a Iniciativa Liberal se situa à direita do PSD, que é um partido social-democrata. [O PSD] Nem sequer é um partido democrata-cristão, como acontece nalguns pontos da Europa e onde se pode discutir com alguns partidos democratas-cristãos quem está à sua direita ou à esquerda, relativamente aos liberais”, salientou, repetindo taxativamente que, “relativamente ao PSD, não podemos isso aceitar de forma alguma“.
Dança das cadeiras no Bundestag
Rio aludiu ao exemplo alemão, quando falou nos democratas-cristãos, porque, nas últimas eleições legislativas, o FDP (Partido Democrático Liberal) pediu para sair de ao pé da AfD [Alternativa para a Alemanha], a extrema-direita.
No Bundestag, parlamento alemão, os liberais sempre estiveram na extrema direita do hemiciclo, e ali permaneceram mesmo quando, em 2017, a AfD ganhou dimensão e aumentou a bancada.
Porém, com as eleições de setembro de 2021, que levaram à constituição de um Governo de coligação do SPD [Partido Social-Democrata da Alemanha] com a Aliança 90/Os Verdes e o FDP, os liberais pediram para mudar de lugar.
O facto de pertencerem ao Governo de Olaf Scholz ajudou à pretensão, passando desde então a estarem sentados ao centro, encostando a CDU [União Democrata Cristã] à extrema-direita. Um retrato que Rio não quer ver replicado em Portugal.
Já no Parlamento Europeu, as forças liberais sentam-se entre a esquerda e a direita. O grupo dos Verdes/ Aliança Livre Europeia e o Renovar a Europa separam as águas entre o Partido Popular Europeu e a Aliança Progressista dos Socialistas e Democratas.
“O Iniciativa Liberal não é a ASDI”
Apesar de a IL assegurar que não se revê na dicotomia esquerda/direita, a exemplo do que o PAN também está sempre a sinalizar, José Palmeira, do Centro de Investigação em Ciência Política da Universidade do Minho, aponta que “olhando os dois programas, o da IL e o do PSD, o programa dos Liberais é muito mais à direita”. Mais: o politólogo defende que a IL foi formada por “uma militância que saiu do PSD para a direita e não para a esquerda”, ao contrário do que aconteceu com a ASDI [Acção Social Democrata Independente], formada em 1979 por sociais-democratas e que defendiam uma aproximação à esquerda.
“A IL não é só liberal nos costumes – algo muito próprio da esquerda e até de algum PSD, como Rio, que defendeu a eutanásia e aborto -, é também mais do que liberal na economia, e nesta segunda vertente que não se encontram argumentos para estarem ao centro”, disse à VISÃO, recusando uma comparação entre os liberais da IL e os da FDP.
“Na Alemanha, os liberais ora estão ligados ao SPD, ora à CDU. Por norma, coligam-se com que tiver mais votos. São uma espécie de pendulo. Cá, a IL já disse que é contra o PS e até acusou Rio de cavalgar a tese de o PSD ser um partido de centro-esquerda e de querer formar um Bloco Central”, acrescentou.
De acordo com Palmeira, “a IL não tem essa tradição alemã, e até por uma razão: o partido identifica-se muito mais com um PSD de Passos Coelho, do tempo da troika, do ‘menos Estado, melhor'”.
“Entendo o objetivo da Inciativa, que ao colocar-se no centro, mostra ter aspirações de captar um eleitorado menos ideológico e jovem. É uma estratégia de marketing político. Só que o problema é que a fórmula de uma estratégia pode não ter grandes bases, e é o caso: muitos dos fundadores da IL e do Chega saíram do PSD pela porta da direita. Não é nada parecido com a ASDI, em que um Guilherme de Oliveira Martins e outros saíram pela porta esquerda e até foram acabar no PS”, argumenta este cientista político.
Conclui Palmeira que “os Liberais, depois de acusarem o PSD de estarem ao centro-esquerda e tendo saído pela direita, ao quererem saltar por cima do PSD mostram alguma incoerência”.