O Executivo português foi acusado, esta quarta-feira, pela maioria das bancadas do Parlamento Europeu (PE) de falta de transparência no processo de indicação do magistrado José Guerra para a Procuradoria Europeia. Os representantes dos grupos parlamentares da direita, mas também os Verdes e os Liberais, apontaram ao Governo de António Costa, desde de ter tomado a sua decisão com base em “preferências políticas”, até ao facto de “estar a manchar a instituição que vai fiscalizar o uso dos fundos europeus”, passando pela acusação de “irresponsável” ao colocar em causa a credibilidade da instituição sedeada no Luxemburgo.
O momento mais tenso do debate foi quando, logo após o espanhol Esteban González Pons, vice da bancada do Partido Popular Europeu (PPE), ter apelado à Comissão Europeia (CE) que avance com uma investigação ao caso, a socialista Isabel Santos acusou os deputados da direita – entre os quais Paulo Rangel e Nuno Melo – de “urdirem” uma campanha contra Portugal.
Santos, que acabara de ouvir o espanhol a acusar os socialistas portugueses de darem um exemplo de “disparates de outras latitudes”, já nem conseguiu ler o discurso que tinha e disparou à primeira oportunidade, quase parafraseando o “Mostrengo”, de Fernando Pessoa: “Aqui sou mais do que eu, e ergo-me do alto de quase 900 anos de história para responder ao deputado Pons, atrás do qual se escondem os verdadeiros urdidores desta campanha de desinformação, cujo único objetivo é atingir a presidência portuguesa do Conselho [da UE]”.
A eurodeputada, que ainda conseguiu alegar que José Guerra foi a escolha do Conselho Superior do Ministério Público, “um órgão independente”, e que “não houve interferência política” na decisão, acabou por ser silenciada pelo presidente em exercício do PE, Rainer Wieland, do PPE, que lhe apontou “falta de profissionalismo” e “respeito” pelos restantes colegas parlamentares, ao ultrapassar o minuto que tinha para intervir.
Este debate foi realizado a pedido do PPE e ocorreu poucos dias após a Procuradoria-Geral da República ter anunciado um inquérito ao envio da carta a Bruxelas, por parte do Ministério da Justiça, que continha erros no currículo de Jose Guerra e que levou à demissão do diretor-geral da Política da Justiça.
Frente de ataque a indicação de “yes, man”
Antes, o deputado espanhol Pons começou por alegar que o “Governo português mentiu ao Conselho Europeu”. “Não sei o que é pior: se a desculpa por um erro administrativo com o currículo, ou a teoria de conspiração internacional anti-portuguesa, como aludiu o primeiro-ministro Costa. Este conjunto de disparates são próprios de outras latitudes e fazem um fraco favor à presidência portuguesa”, disse, pedindo que Costa “assuma as responsabilidades”.
“As mentiras devem ter consequência. Não nos faça passar por idiotas”, concluiu, adiantando que pediu um inquérito ao caso.
O rol de críticas que se seguiu depois foi extenso. Vejamos. A liberal Sophie in ‘t Veld afirmou-se “chocada” com o caso, que junta Portugal à Bulgária e à Bélgica como os países que rejeitaram as sugestões do comité europeu que analisou as candidaturas à procuradoria. Saskia Bricmont, dos Verdes, apelou a que o parecer do tal comité – e que Lisboa desvalorizou – se torne vinculativo. Jeroen Lenaers, do PPE como Pons, lembrou uma carta de professores de Direito europeu que criticaram este processo, porque em causa “está uma triste atuação do Governo, que põe uma nuvem sobre o cargo” e que “mandou o seu ‘yes, man’ para o Luxemburgo”.
A este conjunto, junte-se ainda Dragoș Tudorache, do grupo Renovar Europa – família política de Macron -, que argumentou que, se no caso de 19 países os procuradores foram indicados de acordo com as indicações do painel europeu independente, então “porquê um órgão político” indicou alguém como José Guerra, que não foi sugerido por esse painel. Daniel Freund, dos Verdes, acusou Portugal de não ter pudor em fazer parte do grupo de três países que escolheram magistrados internamente, onde se inclui a Bélgica – que indicou um magistrado que era assessor do ministro da Justiça. Monika Hohlmeier, igualmente do PPE, admitiu que, por se tratar um caso “inaceitável”, “a situação tem de ser corrigida”.
Zacarias espera não ter de voltar a dissipar dúvidas
Do lado de Portugal, estiveram além dos socialistas, a deputada comunista Sandra Pereira e o bloquista José Gusmão, ambos em nome da Esquerda Unitária.
“Uma coisa são dúvidas legítimas de boa fé. Outras são acusações totalmente falsas sobre a nomeação do procurador português. Não foi escolhido pelo Governo. E, sim, pelo Conselho Superior do Ministério Público”, defendeu Pedro Silva Pereira, do PS.
A comunista Sandra Pereira foi cautelosa: “Não nos opomos à seleção das autoridades portuguesas. Mas importar saber qual documentação em que se baseou a decisão do comité”.
Mais acutilante esteve Gusmão, que, apesar de reconhecer “a trapalhada grave” relativa ao envio da carta de recomendação do magistrado, lembrou que em causa está uma escolha do Conselho Superior do Ministério Público. “Confesso que é lamentável os partidos que suscitaram este debate se tenham escondido atrás de outros debates de outros deputados para o fazer e sugiro aos deputados do PPE que estão preocupado com o Estado de Direito que olhem para a sua própria bancada, para o partido Fiedz e para os deputados portugueses que fazem alianças com extrema-direita em Portugal”, acusou.
Acabou por ser a secretária de Estados dos Assuntos Europeus, Ana Paula Zacarias, a ter de assumir a defesa de Portugal, ainda que salvaguardando que não o estava a fazer enquanto representante do Governo mas da presidência portuguesa do Conselho da União Europeia.
Zacarias frisou que José Guerra foi indicado porque “teve a mais alta classificação” de acordo com os critérios do Conselho Superior do Ministério Público e que quer este magistrado, quer os preteridos – onde se inclui a preferida de Bruxelas, Ana Carla Almeida, – foram ouvidos pela Assembleia da República.
Sobre a carta enviada a Bruxelas, a 29 de novembro de 2019, contendo “infelizmente dois lapsos”, referiu que não estava incorreta quando se elencava as mais de três décadas de Ministério Público e quase 13 anos no Eurojust [agência europeia que trata da criminalidade organizada].