Em 44 edições da Festa do Avante!, Manuel Silva só perdeu uma. A primeira. “Estava no estrangeiro e não consegui vir”, conta o octogenário à VISÃO, poucos minutos depois da abertura de portas da mais atípica festa comunista das últimas quatro décadas.
Manuel chegou cedo. Veio com a mulher, Margarida Silva, e o neto, Manuel Tiago – uma homenagem ao histórico secretário-geral do PCP, Álvaro Cunhal, que assinou várias das suas obras com esse pseudónimo. A pandemia não os afastou pela segunda vez do encontro do partido. “Começámos a pensar assim: então, se andamos na rua, se nos cruzamos com pessoas que muitas vezes nem usam máscara, por que diabo a Festa do Avante! há de ser um problema?! Nós olhamos para a Feira do Livro, para as peregrinações a Fátima, olhamos para isso tudo e sabemos que as regras não foram mais exigentes que aqui. Só o Avante! é que faz mal às pessoas? Só aqui é que há pandemia?!”
Manuel, o avô, Margarida e Manuel, o neto, continuam à sombra das primeiras árvores da entrada norte da festa, por onde vêm chegar os primeiros visitantes do evento, a meio da tarde desta sexta-feira, 4. A maioria vem de máscara. E essa imagem marcaria o primeiro dia de festa. A maioria dos visitantes não a tira, mesmo quando circula pelas largas avenidas do recinto e mesmo que o número de pessoas não esteja nem perto de ameaçar alguma enchente.
Se houve medo? Houve medo. “Dada a nossa idade, as nossas filhas, os netos, todos estavam com medo da pandemia, tinham receio”, assume Margarida Silva. “Eu sou de alto de risco, pela idade, porque sou asmática, sou hipertensa. Mas fui acompanhamento a evolução da situação, fui vendo as mensagens que nos chegavam [do partido], como isto ia correr, e criámos confiança.”
Estar ali, num ano de pandemia, acabou por assumir contornos de missão. “Eu estive preso [durante o Estado Novo], fizeram-me tortura do sono e estive incontactável durante 93 dias. Estes jovens não sabem o que foi a vida, o que a gente sofreu”, atira Manuel.
Nas últimas semanas, o PCP esteve sob intensa pressão. A decisão de manter a festa, com uma crise de saúde pública nas ruas, valeram críticas dos setores políticos mais conservadores e de várias organizações da sociedade civil. Uma das mais recentes veio do próprio Presidente da República. Já os portões da Quinta da Atalaia tinham sido abertos e já o secretário-geral comunista, Jerónimo de Sousa, tinha discursado quando Marcelo Rebelo de Sousa deixou mais uma nota crítica à posição do PCP. “A minha perceção [sobre a segurança do evento] não é tão otimista como a Direção-Geral da Saúde e como a do partido”, atirou o Chefe de Estado, em declarações à SIC Notícias. A decisão de manter a festa era, sobretudo, para Marcelo, uma questão de “avaliação política”. E, aos olhos de Belém, a opção devia ter sido outra.
Praças vazias, a festa possível
A imagem do palco principal da Festa do Avante! parece retirada de um filme distópico. No enorme relvado, onde habitualmente milhares de pessoas se aglomeram para ouvir um concerto de orquestra na noite de sexta-feira, estão geometricamente instaladas duas mil cadeiras. Os espaços de distância foram escrupulosamente cumpridos, há corredores desenhados no chão a tinta branca, fitas a delimitar as zonas de circulação.
Não há como enganar – se as regras forem cumpridas, não há o mínimo risco de os visitantes da festa se cruzarem, não é possível que dali saia qualquer surto de novos casos de Covid-19. Poucos minutos depois das 19 horas, Jerónimo de Sousa termina a habitual (e curta) intervenção que marca o arranque do evento, que este ano não contou com a presença física do secretário-geral do PCP e que foi transmitida pelo sistema de som da festa. Naquele espaço, àquela hora, seria de esperar largas centenas – possivelmente, milhares – de pessoas. Nesta sexta-feira, não estariam mais de cinquenta.
Jerónimo discursa e contra-ataca. “Querem-nos quietos, confinados, calados, e com temor, porque sabem o que aí vem. Querem que abdiquemos do que a vida tem de mais belo e realizador, libertos dos nossos medos, de reencontrar o convívio e as amizades, a cultura, os concertos de diversos estilos de música”, argumenta o líder comunista. No final, passa no mesmo sistema de som a Internacional Comunista. Tudo normal. Depois, ouve-se o hino nacional. É sempre assim. Mas o som interrompe-se a meio. E, depois, nada. Nem o hino volta a soar nem a habitual Carvalhesa (o hino da festa, que leva a maioria dos visitantes a ensaiar uma dança conjunta no palco 25 de Abril) se escutam. Há alguns aplausos. Algumas dezenas de pessoas ficam sentadas nas cadeiras brancas e pretas ali colocadas. Outras, já dispersam.
As regras da DGS impunham um limite de cerca de 16 563 pessoas no recinto da festa. O PCP não revela quantos visitantes estão, a cada momento, no espaço. E também não respondeu às questões da VISÃO, que pretendia saber de que forma seria possível assegurar o número total de visitantes em circulação pelos 300 mil metros quadrados da festa. Mas, do alto da roda gigante que de há anos a esta parte se encontra num dos pontos mais elevados da Quinta da Atalaia, o cenário não deixa margem para equívocos: um vazio generalizado. “Isto está a 25% do que costuma ser”, desabafa um comerciante à VISÃO.
O partido cumpriu à risca as orientações das autoridades de saúde. Por todo o lado há gel desinfetante, as zonas estão delimitadas, há equipas de desinfeção a percorrer os espaços de maior contacto físico, as sinaléticas da DGS multiplicam-se em cada poste ou parede do recinto. Dificil, mesmo, é encontrar uma fila para comprar a senha do jantar em qualquer dos espaços de restauração.
Mafalda, 15 anos, nunca esteve preocupada com eventuais riscos. “Sinto que há total segurança. O público foi reduzido e faz todo o sentido isto existir”, defende. “Primeiro, porque não é um festival, é um evento político que existe há imensos anos e não faz sentido parar um ano se é possível fazer a festa respeitando as medidas de segurança; e sinto que, já que este verão parou tudo e a cultura parou, se existe possibilidade de fazer uma festa, acho que é de aproveitar”, conclui.
Há festa, é certo. Mas “nunca vai ser a mesma coisa”, acredita a jovem, presença habitual no evento. “Tudo nos festivais passa por sentir a união entre as pessoas e, não sendo possível sentir essa união, não vai ser a mesma coisa. Mas as pessoas estão nas cadeiras [a assistir aos concertos] e podem cantar. Não há tanta confraternização mas pode-se viver a festa. É melhor vir nestas condições que não vir de todo.”