Manuel Sebastião, que se reuniu quatro vezes com Manuel Pinho antes de ser nomeado presidente da Autoridade da Concorrência, vai amanhã ser interrogado e constituído arguido no caso EDP. O interrogatório no Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) confirma o que a VISÃO já tinha adiantado no final do mês de junho: o ex-líder da Autoridade da Concorrência (AdC), hoje administrador da REN, é o novo alvo do processo que já tem como arguidos nomes como António Mexia, Ricardo Salgado e Manuel Pinho.
Doutorado em Economia pela universidade parisiense Panthéon-Sorbonne, com um PhD da Universidade Columbia, em Nova Iorque (onde Manuel Pinho viria a dar aulas), Manuel Sebastião foi professor de Economia e Finanças e economista do FMI, mas foi no Banco de Portugal que fez grande parte da carreira. Esteve à frente da Autoridade da Concorrência entre 2008 e 2013, e é hoje presidente do conselho fiscal do BPI (desde 2018) e membro do conselho de administração e presidente da comissão de auditoria da REN (desde 2015).
Os procuradores Carlos Casimiro Nunes e Hugo Neto, que lideram a investigação do caso EDP, desconfiam que Manuel Sebastião favoreceu a elétrica em decisões relacionadas com exploração de barragens e rendas excessivas na energia enquanto estava à frente da Autoridade da Concorrência. Olhando para a história como um todo e unindo as várias pontas, Manuel Sebastião está colado a este facto: quando era presidente da AdC, comprou um apartamento a Manuel Pinho, que é agora suspeito de ter tomado decisões para beneficiar a EDP, em troca de um patrocínio que lhe permitiu ser professor em Nova Iorque e de uma avença mensal do Grupo Espírito Santo (o BES era acionista da EDP).
Além disso, foi também Manuel Sebastião quem representou Manuel Pinho quando o ex-ministro comprou, em novembro de 2004, todo o prédio que tinha sido a morada do escritor Almeida Garrett, no número 68 da Rua Saraiva de Carvalho, em Campo de Ourique, por menos de 800 mil euros. O edifício em causa era propriedade do Grupo Espírito Santo, mais propriamente da Fungere-Fundo de Gestão de Património Imobiliário, por sua vez administrado pela Gesfimo-Espírito Santo Irmãos. À data da transação, Manuel Pinho era administrador do BES e da ESAF, a empresa do grupo Espírito Santo responsável pela gestão de fundos de investimento. E Manuel Sebastião, que representou Pinho por este se encontrar fora do País na altura, era administrador do Banco de Portugal, o que levantou dúvidas sobre um possível conflito de interesses, já que estava a comprar o edifício a uma entidade ligada ao Banco Espírito Santo.
Depois da compra, Pinho demoliu o prédio inteiro e transformou-o em quatro apartamentos luxuosos: dois T4, um T2 e um duplex. A 24 de junho de 2009, Manuel Sebastião foi o primeiro comprador: comprou um T2, no quarto andar, por meio milhão de euros. Umas semanas depois, e após se ter demitido do governo de José Sócrates, Pinho e a mulher venderam os apartamentos T4, no 2º e 3º andares do prédio. Como a VISÃO revelou em 2018, o comprador foi o Fundo de Gestão de Património Imobiliário do Banco Espírito Santo – o FUNGEPI/BESE –, que posteriormente revendeu os apartamentos com prejuízo, negócio que também está sob investigação.
Manuel Sebastião continua a viver no 4º andar daquele prédio, na Rua Saraiva de Carvalho, mas já não é vizinho de Manuel Pinho. O antigo ministro vendeu o seu duplex com cinco quartos, cinco lugares de estacionamento, pátio inglês, jardim e piscina, de forma relativamente discreta, em 2018, por quase três milhões de euros. Como adiantou a VISÃO naquela altura, Manuel Pinho começou a desfazer-se de património em Portugal depois de se tornar público que era um dos principais alvos do caso EDP.
A VISÃO questionou o ex-presidente da Autoridade da Concorrência sobre as circunstâncias da compra deste apartamento a Pinho, mas Manuel Sebastião não quis responder. Também fez perguntas sobre um ajuste direto à EDP pela exploração das centrais hidroelétricas do Alqueva; sobre se tomou alguma decisão que prejudicasse a elétrica; se teve encontros com algum arguido do processo ou se alguma vez foi pressionado por algum deles, mas o economista apenas endereçou os documentos que apresentou na Comissão Parlamentar de Inquérito ao pagamento de rendas excessivas aos produtores de eletricidade: “Tudo o que poderei dizer sobre o assunto disse-o nos documentos que preparei para a minha audição na Comissão Parlamentar de Inquérito sobre o assunto, em setembro de 2018 e fevereiro de 2019.”
“Não tinha poder”
Manuel Sebastião até teceu, perante os deputados, declarações pouco favoráveis à EDP: afirmou, entre outras coisas, que as rendas de que a elétrica beneficia na produção de energia (com a passagem dos contratos de aquisição de energia para os CMEC – Custos para a Manutenção do Equilíbrio Contratual, que viriam a entrar em vigor em 2007) foram “um passo em branco”, sem qualquer “decisão legislativa” de suporte. Porém, em sua defesa, também alegou que, enquanto esteve ao comando da Autoridade da Concorrência, só não fez mais para investigar o setor elétrico porque até 2012 a Lei da Concorrência não permitia que a autoridade avançasse por sua própria iniciativa: “Podíamos apenas responder a pedido de algum interessado.”
Já Abel Mateus, antigo presidente da AdC, disse no Parlamento que a validação do regime CMEC por parte de Bruxelas “foi uma das piores decisões que a Comissão Europeia tomou” e, na mesma ocasião, explicou as circunstâncias nebulosas em que foi afastado do cargo, em 2008, para dar lugar a Manuel Sebastião, de quem Pinho era amigo assumido: “O ministro chamou-me ao seu gabinete para me transmitir que o meu mandato não seria renovado. Ponto final.”
As agendas de Manuel Pinho, guardadas como prova no processo EDP, mostram que o então ministro teve quatro encontros com Manuel Sebastião, entre 2007 e 2008, antes de o nomear para a Autoridade da Concorrência.
A 18 de março de 2008, dois dias antes de o economista do Banco de Portugal ser empossado presidente da Autoridade da Concorrência, foi recebido pelo chefe de gabinete de Manuel Pinho. Duas horas antes, o então ministro da Economia tinha recebido António Mexia. A 30 de abril, foi a vez de Pinho promover um encontro com Manuel Sebastião, António Mexia e João Manso Neto, presidente da EDP Renováveis.
Confrontado, na altura, com a nomeação de um amigo para aquele cargo, o então ministro da Economia de Sócrates justificou a escolha com o mérito, “competência” e “idoneidade” do nomeado. “Não o propus por ele ser meu amigo ou por ter prometido comprar um apartamento à sociedade que detenho com a minha mulher. Muito menos por ter aceitado a maçada de assinar um contrato de compra quando eu estava temporariamente no estrangeiro, em 2004 (…). É uma amizade de 30 anos, que não qualifica ou desqualifica o seu nome para o cargo. E os negócios em causa são privados, lícitos e transparentes.”
Anos depois, também Manuel Sebastião veio defender perante os deputados que, apesar da amizade com Manuel Pinho, nunca tinha tomado uma decisão favorável a alguém para satisfazer o então ministro da Economia e que nunca sentira tentativas de condicionamento das suas ações.
Mas os procuradores do DCIAP duvidam da tese de que a AdC fez tudo o que estava ao seu alcance para proteger os interesses dos cidadãos. Tanto que, logo nos primeiros anos da investigação, juntaram ao processo um relatório apontando o dedo à inércia do regulador. “A AdC precisou de mais de dez anos após a publicação do regime dos CMEC para formular a recomendação que se impunha, na ótica da defesa do interesse público”, lê-se no documento.
Esta linha de investigação foi deixada num canto, à medida que foi chegando ao processo um arsenal de provas mais diretas, como emails e extratos bancários, que levaram Manuel Pinho, Ricardo Salgado ou António Mexia a serem constituídos arguidos. Mas, agora, os investigadores deverão aproveitar os oito meses ainda previstos na investigação para voltaram à base. Até porque nunca descolaram desta ideia: a de que o processo legislativo sobre os CMEC e a extensão do domínio hídrico – que supostamente terá permitido à EDP lucrar cerca de 1 200 milhões de euros – envolveu mãos menos limpas.
Durante o interrogatório, Manuel Sebastião deverá ser também confrontado com o parecer dado pela Autoridade da Concorrência a um ajuste direto de mais de 638 milhões de euros atribuído à EDP. Estávamos em junho de 2008 e Manuel Sebastião estava há apenas três meses a ocupar o discreto lugar de presidente da AdC. Estava em causa a exploração das duas principais centrais hidroelétricas do Alqueva, por um período de 35 anos. Tudo apontava para a necessidade de ser lançado um concurso público internacional ou de ser criada uma empresa pública, tendo em conta os elevados montantes envolvidos. Mas não foi isso que aconteceu: a decisão final do Estado recaiu sobre a adjudicação direta da exploração daquelas barragens à empresa de energia.
Anos depois, o Tribunal de Contas arrasou aquele contrato: disse que o interesse público não tinha sido “salvaguardado”, que o valor global de 638,45 milhões de euros deste ajuste não estava suportado em estudos e que a EDP só conseguira a concessão da exploração daquelas barragens porque o Estado usara a favor da elétrica legislação que, afinal, naquela data já não existia (tinha sido revogada).
No início de 2008, a AdC abriu um processo para avaliar se a concentração de ativos esbarrava na Lei da Concorrência. A 20 de março, Manuel Sebastião foi nomeado para liderar a entidade reguladora (substituindo Abel Mateus). E, a 27 de junho de 2008, a AdC comunicou ter decidido “não se opor à operação de concentração”.