“Um marinheiro habitua-se a tudo. E eu estou tão ocupado que nem me lembro do confinamento!”.
A partir da marginal de Algés, com os olhos postos no Tejo, o “capitão de Abril” Martins Guerreiro vive em grande azáfama caseira os seus dias de reclusão forçada. Aos 79 anos, quase nem se lembra de ir à rua. Não o faz apenas por tranquilidade própria, respeito pelo estado de emergência, preservação do bem comum ou porque o filho, a viver ali o lado, trata das idas ao supermercado ou à farmácia. “Na verdade, tenho tantas solicitações e trabalho em mãos que praticamente não saio”, assegura o almirante, participante ativo do movimento político na Marinha e um dos militares envolvidos na preparação da Revolução dos Cravos condecorado com a Ordem da Liberdade.
Nas últimas semanas, labor é coisa que, de facto, não falta ao diretor da revista Referencial, editada pela Associação 25 de Abril.
O número relativo ao primeiro trimestre do ano ficou concluído há dias e tem como tema de capa a pandemia, com um título apelando à concórdia: “O mundo (se) unido jamais será vencido”. Além de artigos da autoria de outros camaradas sobre os efeitos da Covid-19 e às respostas à crise em Portugal e no mundo, Martins Guerreiro assina o editorial, em tom esperançoso, sem margem para egoísmos ou propósitos dominadores. “Nada de desalentos ou desânimos, não podemos dar espaço à desinformação, ao derrotismo ou a corporativismos serôdios”, escreve.
A juntar aos artigos para a publicação, o almirante elaborou, entretanto, várias reflexões sobre a batalha contra o novo coronavírus para partilha com alguns camaradas e amigos da política. Além disso, mergulhou na leitura de um conjunto de conferências e outros escritos do matemático e antifascista Bento de Jesus Caraça (A Cultura Integral do Indivíduo) e respondeu, com mais uma resma de textos interventivos, a solicitações relacionadas com eventos destinados a assinalar a passagem de mais um aniversário do 25 de Abril. Uma delas é proveniente de São Brás de Alportel, município algarvio onde nasceu. “Este ano será uma celebração diferente para todos os camaradas que fizeram a revolução, mas vamos estar na mesma em contacto”, desvenda.
Desafiados pelo jornalista da RTP, Jacinto Godinho, pelo menos 40 militares que lutaram pela democracia e pela liberdade vão “encontrar-se” na manhã de 25 de Abril na plataforma digital Zoom para assinalar a data em modo conferência online. “Não é para fazermos discursos uns aos outros, mas sim para partilharmos as nossas vivências, celebrar o dia e rever amigos”, explica.
Com uma frescura e um vigor na voz que disfarçam a idade, Martins Guerreiro garante estar também a mobilizar “tropas” para que uma das senhas musicais da revolução, Grândola, Vila Morena entoe, às 15 horas de sábado, 25, no maior número de varandas do País. “Desafio os jovens a refletir sobre a forma como devemos sair desta situação a partir da ideia de uma sociedade menos individualista e mais próxima dos valores do 25 de Abril”, defende o almirante e membro da Amnistia Internacional. “Não podemos ser de novo apanhados de calções na mão, apesar da gestão da crise não estar a correr mal. A generosidade, a solidariedade e a noção de liberdade coletiva têm de superar reações egoístas grupais”. Embora os extremismos possam beneficiar da falta de resposta coletiva a esta tragédia mundial, Martins Guerreiro confia na força de outros valores e na capacidade portuguesa do “desembaraço” para ultrapassar o atual momento. “Em situações difíceis, o povo português revela uma grande capacidade de sofrimento e supera-se. E ainda bem que, numa situação destas, temos o António Costa a governar, se fosse o Passos Coelho não sei como seria”, acentua o militar, sem baixar a guarda à vigilância democrática. “É preciso estar atento, pois todos os poderes querem conservar-se. E se tiverem mecanismos para se perpetuarem sem grandes chatices, aproveitam”.