Primeiro a crise financeira internacional, depois a crise das dívidas europeias e a pressão para diminuir rapidamente o défice, e a seguir a recuperação, com prioridade para a reversão dos cortes. Em mais de uma década, a descida de impostos não ocupou um lugar central nas promessas eleitorais dos partidos. Houve ajustes no IVA e mexidas nos escalões de IRS, mas a tendência foi de agravamento, simbolizada no “enorme aumento de impostos” anunciado por Vítor Gaspar, em 2013. Agora, na linha de partida para a campanha eleitoral, os partidos parecem assumir uma maior ambição. Contudo, há vários obstáculos no caminho de uma redução substancial da carga fiscal. A começar pelo interesse dos eleitores que parecem ter outras prioridades, como o reforço dos serviços públicos.
A melhoria da economia e o equilíbrio das contas que se observou ao longo desta legislatura foram acompanhados por um agravamento da carga fiscal, que atingiu no ano passado o valor mais elevado de sempre. Embora o indicador não seja o melhor para avaliar se os portugueses estão a pagar mais impostos, ilustra um peso acrescido na economia. Em teoria, significa que havia mais margem para o Governo diminuir a pressão fiscal.
Esses máximos, e a ideia de que a urgência orçamental desapareceu, parecem ter sido suficientes para levar os partidos a concluir que é um bom ângulo de ataque para as legislativas. Há descidas para todos os gostos: IVA, IRC, IMI e, claro, IRS. Entre as propostas eleitorais de todos os partidos, nenhuma pedra fiscal fica por levantar (ver caixas). Só no IRS, o PSD quer um desagravamento de 1,2 mil milhões de euros, através de redução das taxas dos escalões intermédios. O CDS é ainda mais ambicioso e pretende uma descida de 15% da taxa em todos os escalões de IRS o que custaria 3,2 mil milhões de euros. O PS não deu números, mas António Costa prometeu novos desdobramentos dos escalões, seguindo o modelo que já aplicou nesta legislatura. O PCP quer aumentar o mínimo de existência (abaixo do qual as famílias não pagam IRS) e reduzir as taxas mais baixas, ao mesmo tempo que as sobe para 65% e 75% para os rendimentos superiores a 152 mil e a 500 mil euros, respetivamente. Já o BE sugere que os rendimentos de capital sejam englobados no IRS e quer criar mais dois escalões de rendimento. Entre os partidos fora do Parlamento, a Iniciativa Liberal tem provavelmente a proposta mais radical: uma taxa única de IRS de 15% para todos os rendimentos.
O fiscalista João Espanha concorda que essa viragem do debate para os impostos “está a acontecer” e que se “deve à circunstância de o País estar a atravessar uma fase de alguma saúde”. “É um tema que é caro a uma grande franja da população que acha que está a pagar a festa desde o grande aumento de impostos de Vítor Gaspar”, acrescenta.
Manuel Faustino, fiscalista e ex-diretor do IRS, também acha que “há claramente maior presença dos impostos no debate”, mas nota que a discussão é normalmente pouco aprofundada. “É muito concentrada no agravamento ou desagravamento de taxas de imposto”, explica à VISÃO. “Antigamente, o debate era mais substantivo, porque os partidos apresentavam reformas fiscais. Agora, o IRS está esgotado. Para falar a sério, era preciso mudar todo o modelo de tributação.”
No entanto, nenhum deles acredita que a próxima legislatura possa trazer uma descida significativa dos impostos, seja por falta de vontade política ou por constrangimentos orçamentais. Embora tenha mais margem de manobra, Portugal continua obrigado a respeitar compromissos europeus e pressionado a reduzir a sua dívida pública, ainda uma das maiores do mundo. “Não acredito que os impostos desçam verdadeiramente. Haverá muita cosmética, mas poucos resultados”, sublinha João Espanha. “Há um problema de fundo: o sistema fiscal ou é mais simples ou é mais justo. Preferia que fosse mais simples.”
Por poucos resultados, o fiscalista quer dizer uma descida substancial de impostos que os faça regressar ao nível pré-crise. Recorde-se que, na apresentação do Orçamento do Estado para 2013, o então ministro das Finanças, Vítor Gaspar, anunciou um “enorme aumento de impostos” que permitiu, num só ano, aumentar a receita de IRS em 35%. “Nunca mais vai haver uma descida de IRS para o nível anterior ao enorme aumento de impostos”, frisa Manuel Faustino. “O Estado tem pouca flexibilidade de corte da despesa. Quando se habitua a determinado tipo de recursos, passa a assumir que eles continuarão lá. É o novo normal, não tenha dúvida.”
Portugueses preferem melhores serviços
A concentração de propostas fiscais está a gerar até algumas quezílias entre os partidos. Há alguns dias Rui Rio, tuitou que o PS tem “copiado” medidas fiscais apresentadas pelo PSD. De facto, os socialistas não parecem ter o trabalho de casa muito desenvolvido nesta área. Prometem uma descida de impostos, mas não dizem quanto nem exatamente como (o programa eleitoral do PS fala numa nova revisão de escalões que “acentue a progressividade”), levando mesmo o CDS a desafiá-lo a apresentar números.
Talvez o PS não dê assim tanta importância ao tema. Numa entrevista dada em junho à TSF, o primeiro-ministro assumiu que descer impostos não está no topo da lista das tarefas para a próxima legislatura. “A minha prioridade é prosseguir a trajetória de repor a qualidade dos serviços públicos, em particular do SNS, e continuar esta trajetória de redução sustentada do défice e da dívida”, afirmou.
Além da justificação ideológica, outro dos motivos para o PS hesitar em colocar o carvão todo na locomotiva dos impostos é que não existem indícios de que essa seja uma prioridade dos eleitores. Uma sondagem recente do ICS e do ISCTE para o Expresso concluía que a generalidade dos eleitores se inclina mais para ter “melhores serviços públicos, mesmo com impostos mais altos” do que para ter “impostos mais baixos, mesmo com piores serviços públicos”. Numa escala de 0 a 10, a média apontava para 5,6. Mais curioso: não existem diferenças ideológicas entre esquerda/direita neste tema e, apesar de haver alguma separação entre quem simpatiza com o PS ou com o PSD, ela é ligeira (5,8 vs. 5,3) e mostra uma preferência pelos gastos com serviços públicos em ambos os grupos.
“O que esta pergunta e outros estudos indicam é que temos muitas dificuldades em encontrar os atributos dos eleitores que expliquem a sua resposta. Existe uma relação com a inclinação partidária, mas é uma diferença pequena”, explica à VISÃO Pedro Magalhães, investigador do ICS e coordenador destes inquéritos, do trabalho de campo à interpretação dos dados.
O outro estudo a que se refere foi feito nas eleições legislativas de 2015. Foi perguntado aos eleitores se gostariam que o Estado gastasse mais (ou menos) em várias áreas, alertando-os de que isso poderia implicar um aumento de impostos (ou uma degradação dos serviços). As respostas foram claras acerca das prioridades dos portugueses: perto de 9 em cada 10 querem que o Estado gaste mais ou muito mais em Saúde. Esse foi o campo mais esmagador, mas nos restantes – Educação, apoios sociais, pensões e apoio aos desempregados – também se observa uma maioria clara pró-aumento da despesa.
Tal como na sondagem mais recente, o alinhamento político tem uma influência limitada. Os eleitores do PSD+CDS (a anterior coligação Portugal à Frente) também mostravam uma preferência clara pelo reforço dos gastos públicos. “Colocados perante ‘quer aumentar a despesa’ ou ‘quer reduzir os impostos’, os portugueses acham a primeira opção mais apelativa do que a segunda”, conclui Pedro Magalhães. “Antes de começar a cortar impostos, as pessoas querem que os serviços públicos melhorem. Não tenho nenhuma indicação de que os impostos sejam um tema fundamental.”
Estas conclusões constituem outro obstáculo a uma descida drástica dos impostos. Poderia argumentar-se que isto não significa que os portugueses desvalorizem um alívio fiscal, mas apenas que valorizam muito a qualidade dos serviços públicos. É uma possibilidade, mas a verdade é que, embora o tema receba ampla cobertura mediática, ele não parece estar na cabeça dos portugueses. Na mesma sondagem do ICS/ISCTE, publicada este mês, os impostos não apareciam nas principais categorias citadas como prioridades. Saúde era a clara nº 1, seguida por corrupção e por emprego/salário. Juntas, estas três representavam praticamente 2/3 das respostas. Um outro estudo da OCDE mostrava que Portugal estava entre os países onde mais gente aceitaria pagar mais impostos para ter melhor acesso à saúde.
Como conciliar estes resultados com a atenção que o tema recebe? O sociólogo Pedro Adão e Silva diz existir uma dissonância entre as preocupações de jornalistas e comentadores e as da generalidade da população, cujo salário bruto médio ronda os 1 100 euros. “Da mesma forma como os eleitores votam com as suas preocupações materiais, quem escreve nos média também o faz com as suas circunstâncias”, aponta.
Pouco mais de 2% dos contribuintes pagam quase 40% da receita de IRS, e basta ter um rendimento coletável superior a 20 mil euros/ano para estar entre os 16% de portugueses que mais ganham, mostram dados de 2014. Os 2/3 mais pobres são responsáveis por apenas 4% daquilo que o Fisco arrecada com o IRS. Claro que existem outros impostos que pagamos no dia a dia, como o IVA ou o ISP, mas, ao estarem integrados no preço, têm um efeito mais anestesiante.
Ainda assim, a ideia de que os mais ricos apoiam impostos mais baixos não parece ser verdadeira. Os inquéritos não trazem uma divisão por escalões de rendimento, mas fazem-no para as qualificações. E essa análise mostra-nos que quem estudou menos anos – teoricamente, com salário mais baixo – é quem tem mais reticências face a impostos. O apoio mais forte à ideia de “melhores serviços e impostos mais altos” chega de quem concluiu o Ensino Superior.
De qualquer forma, os números existentes levantam a questão: porque apostam os partidos, nomeadamente à direita, num tema que não parecer ser uma prioridade para a generalidade dos portugueses? Pedro Magalhães não exclui a possibilidade de o tema ganhar mais relevância se os partidos continuarem a insistir nele e nota que talvez a direita não tenha muitas alternativas, confrontada com uma economia a crescer e roubada da bandeira das “contas equilibradas”. “Os partidos de direita têm de encontrar alguma coisa para se distinguirem. Podem falar do ritmo de diminuição da dívida, mas não é um tema fácil para mobilizar os eleitores”, assinala o politólogo.
Pressão sobre o Estado
O debate fiscal chega a Portugal num momento de encruzilhada para os impostos em todo o mundo, com pressões crescentes a médio e longo prazo, no sentido da degradação das fontes de receita do Estado ou de um alargamento das necessidades orçamentais. O envelhecimento da população trará menos receita com impostos e contribuições sociais, e mais despesa com pensões e saúde, ao mesmo tempo que o crescimento dos serviços e o avanço da digitalização trazem obstáculos à tributação das empresas, nomeadamente dos grandes gigantes tecnológicos que faturam milhões praticamente sem pagarem impostos. Em paralelo, existem pressões para tornar as relações laborais mais informais (quem o levou a casa de Uber ou quem lhe entregou a comida pela Glovo) e para mais postos de trabalho serem automatizados. Ambas as tendências abalam os alicerces do Estado Social, que assenta no trabalho dependente a tempo inteiro. Por último, dois temas ganharam muito mais relevância: desigualdades e alterações climáticas. O seu combate também será um desafio para as contas públicas e para os impostos. Por exemplo, numa perspetiva puramente ecológica, faz sentido retirar pressão fiscal sobre o consumo de eletricidade?
“Não podemos ter clamor público para reforçar o SNS, clamor pelas progressões dos professores e depois medidas que reduzem a receita fiscal”, diz Adão e Silva. “Portugal não tem uma carga fiscal assim tão elevada.”
Os dados oficiais mostram que Portugal está a meio da tabela europeia no peso dos impostos na economia. Embora se tenha aproximado da média, o País tem estado na metade de baixo da tabela desde os anos 90, mas análises mais finas mostram que nalguns casos a pressão fiscal é mais elevada em Portugal (temos um dos IVA mais altos, por exemplo).
Este é também um período de transição. A OCDE deverá em breve anunciar uma reforma à escala global na forma como tributamos o rendimento das empresas, deixando de depender de uma presença física. Manuel Faustino acha que esse é o caminho. Em vez de insistir num cavalo cansado, como o IRS, urge encontrar outras fontes de receita. “Tentar uma abordagem mais criativa para diversificar as fontes de financiamento”, sugere, referindo-se às multinacionais e às empresas de atividade digital. “Não estar sempre a bater no ceguinho.”
As propostas fiscais dos partidos
Os partidos políticos apresentaram os seus programas eleitorais, com os impostos a merecerem um papel de destaque. Conheça algumas das principais ideias

Gonçalo Rosa da Silva
Mais progressividade
IRS
O PS não apresenta valores nem dá detalhes, mas compromete-se com mais desdobramento dos escalões de IRS que, nesta legislatura, já aumentaram de cinco para sete
Os socialistas prometem também aumentar as deduções fiscais do IRS em função do número de filhos
De uma forma geral, o programa do PS diz querer aliviar o trabalho e castigar mais as atividades poluidoras, propondo a eliminação de incentivos à utilização de combustíveis fósseis
IRC
O PS quer alargar o limite máximo de lucros que as empresas podem reinvestir com direito a dedução fiscal, de 10 para 12 milhões de euros

Marcos Borga (MB)
Menos IRS e IRC
IRS
Rui Rio propõe uma redução de taxas nos escalões intermédios, no valor de 1,2 mil milhões de euros
IRC
Baixar o IRC de 21% para 17%, com um custo estimado de 1,6 mil milhões de euros
IVA e IMI
O PSD pretende também voltar a colocar o IVA da eletricidade nos 6% e baixar a taxa mínima de IMI para 0,25%. As duas medidas custariam 500 e 100 milhões de euros, respetivamente

Marcos Borga (MB)
Ricos mais tributados
IRS
O PCP é o único a assumir que é preciso aumentar o IRS, pelo menos sobre os mais ricos. Propõe que rendimentos acima de 152 e 500 mil euros/ano sejam taxados a 65% e a 75% respetivamente. Ao mesmo tempo, quer aumentar o mínimo de existência e reduzir as taxas baixas e intermédias
IRC
Aumentar a taxa normal de IRC de 21% para 25%
Outros
Tal como o PSD, o PCP quer a eletricidade a pagar um IVA de 6% e sugere a redução da taxa normal para 21%. Pretende ainda baixar a taxa máxima de IMI para 0,4% e criar uma taxa de 0,5% sobre os depósitos bancários acima de 100 mil euros

Marcos Borga
Igualar a Irlanda
IRS
Dos partidos no Parlamento, é o mais agressivo nas propostas. No IRS pretende uma redução de 15% nas taxas efetivas de todos os escalões. A medida custaria 3,2 mil milhões de euros
IRC
O CDS quer as empresas portuguesas a pagarem o mesmo que as irlandesas, o que implica descer o IRC de 21% para 12,5%. As duas medidas seriam financiadas utilizando 60% do excedente orçamental que se prevê para a próxima legislatura

Luis Barra
Mais escalões
IRS
Assim como o PS, o BE também quer novos escalões de IRS, pretendendo criar dois
O BE insiste também no englobamento de rendimentos de capital no IRS
Outros
Um novo escalão sobre a derrama estadual para empresas com lucros superiores a 20 milhões de euros. Um imposto de 3% sobre os gigantes digitais e tributação de bens e serviços de luxo, assim como mais-valias imobiliárias de empresas e fundos. Contribuição de 0,75% sobre o valor acrescentado das grandes empresas para financiar a Segurança Social
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