Partimos para esta entrevista a António Bagão Félix com um exercício em mente para lhe propor, logo a abrir. Era este: se o próprio Bagão Félix, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, e o primeiro-ministro, António Costa, fossem plantas, quais seriam? Mesmo sabendo que lidávamos com um apaixonado por botânica, surpreenderam-nos a rapidez e a substância das respostas, como pode verificar a seguir. Pensámos que tamanho embalo ainda provinha da sua obra que chegou há umas semanas às livrarias, Raízes de Vida (Clube do Autor, 240 págs., €16,50), um ensaio em que, como escreve, escolheu a botânica para fazer “a ponte entre a cidade dos homens e a aldeia do campo, entre nós e a Natureza, entre as palavras e as plantas”. Mas o mistério depressa se deslindou – por um lado, Bagão Félix adora observar pessoas e apanhar-lhes os pormenores, e, por outro, conhece os nomes científicos de todas as espécies da flora planetária. Nesta entrevista à VISÃO, o economista com outra paixão, a matemática, verbera o “assalto fiscal” à poupança e avisa o PS de que “não vale a pena disfarçar que não se passa nada” na polémica do “familismo” no Executivo. E diz que, como ministro das Finanças, não permitiu a interferência de “certos poderes fátuos” dos “principais atores” da Banca à época (que não nomeia – nem é preciso…). Democrata-cristão convicto que, aos 31 anos, já era secretário de Estado da Segurança Social, no governo de Sá Carneiro, avança agora, aos 70, uma receita para o regresso ao poder do centro-direita, e mantém-se irredutível no facciosismo clubístico: nunca viu um penálti contra o Benfica ser bem assinalado.
Se fosse uma planta, qual seria?
Hesitaria entre a oliveira e a magnólia. Ou melhor, escolhia as duas, embora por razões bem diversas.
Comecemos pela primeira…
A oliveira representa muito do que é a minha personalidade, que oscila com frequência entre o otimismo e o pessimismo. Tenho um otimismo à distância perante a vida e um pessimismo no quotidiano. E consigo conjugar bem as duas perspetivas. Se olharmos para o tronco de uma oliveira, vemos isso. Caso seja das mais velhas, tem lá toda a nossa vida: a angústia, a resistência, a capacidade de sofrimento, a forma de encontrar novos caminhos, a expressão da sinceridade e da autenticidade.
Quanto à magnólia…
É esteticamente outro tipo de árvore. Tudo o que tem é expressivo. Uma flor bonita, branca, com uma grande fragrância, das mais primitivas atualmente no reino vegetal. Tem umas folhas muito curiosas, com um verde profundo no limbo superior e, no limbo inferior, parecem ter ferrugem, são acobreadas. E isso representa os dois lados da nossa vida, a lógica dos antagonismos: alegria/tristeza, saudade/presença, força/desânimo, esperança/desespero. Sou como qualquer pessoa comum – tenho essas coisas todas e, por isso, também me sinto bem representado pela magnólia.
E Marcelo Rebelo de Sousa?
Há uma árvore que acho que o representa bem. É a chamada bela sombra. Tem duas características essenciais: uma copa muito frondosa, donde a designação – abraça tudo no seu seio –, que remete para a lógica afetuosa e de uma panrelação a todos os níveis. Aí vemos Marcelo… Depois, o caule tem diferentes facetas. É retorcido e expressivo, por sinal a parte que considero mais interessante e intrigante na personalidade do Presidente da República. Observamos uma encruzilhada de perspetivas que aparentemente nem sempre são coincidentes, mas que nele convergem bem. Numa linguagem menos de terra e mais marítima, aquele caule é como um redemoinho no mar.
António Costa?…
Lembra-me a tipuana, uma árvore que se desenvolve depressa, com uma copa que cresce na horizontal, não na vertical, e que dá uma flor exuberante, de um amarelo intenso que cativa, a qual cai rapidamente. António Costa domina com grande habilidade todos os problemas – e não o digo no sentido negativo –, mas não aprofunda nenhum. Ou seja, não cresce na vertical. E aquela flor exuberante, afinal, cai com rapidez ao chão. É como vejo o primeiro-ministro: um homem sabedor, hábil, mas que depressa deixa cair as questões.
Como vê a estratégia orçamental seguida por António Costa e Mário Centeno?
O objetivo definido pelo Governo e pelo ministro das Finanças é defensável e adequado: procurar diminuir o défice, porque temos uma dívida ainda muito elevada. O caminho seguido, esse, é mais discutível. Tem sido feito muito à base do aumento de impostos sobre produto nacional, ainda que de uma forma mais anestesiada, porque é por via de impostos indiretos, que as pessoas sentem menos. Por outro lado, não se fez a reforma da despesa – mas fez-se a repressão da despesa. Quando falamos de cativações e de mal-estar no funcionamento dos serviços da Saúde, da Educação, da Justiça ou das forças de segurança, o que notamos é uma despesa reprimida. Não se diminuiu a despesa. Conteve-se, o que é um conceito diferente. E, como uma panela de pressão, mais tarde rebenta.
A direita tem alguma hipótese de voltar a ser poder nas legislativas? Não considera que, para isso, seria necessário um projeto alternativo claro, que hoje parece não existir?
Tendo em conta as múltiplas e diferentes sondagens que são feitas, parece indiscutível que, nas próximas legislativas, a direita não alcançará uma maioria no Parlamento para governar. Acho que, neste momento, a política em Portugal – à imagem do que se verifica na Europa – se centra muito no curto prazo. E os nossos principais problemas são geracionais, de médio e longo prazo, como também acontece no resto da Europa. É o problema demográfico, o do investimento, o da poupança, o do equilíbrio dos sistemas sociais, em particular da Segurança Social. Não sendo questões novas, precisam de tempo para respirar.
Que receita prescreve para o regresso ao poder do centro-direita, onde se situa?
Sou muito favorável a uma coligação de centro-direita. Não para terminar com a diferença legítima e desejável das forças políticas, mas para dar coesão a um projeto. O PSD e o CDS são diferentes, é bom que assim continuem, com a sua perspetiva própria. No entanto, tendo em conta os problemas geracionais e de longo prazo que referi, bom será que, em nome deles, haja um denominador comum para apresentar ao País. Não como uma coisa que hoje é assim e amanhã pode ser de outra maneira, mas com a estabilidade de quem vê a prazo. Um projeto que trate a sério as questões mais importantes para as gerações que vêm aí – e que não se centre nos epifenómenos, os casos e casinhos que acontecem todos os dias, que não têm interesse nenhum, e de que, passado pouco tempo, já toda a gente se esqueceu.
Parece-lhe que Rui Rio e Assunção Cristas podem protagonizar o projeto que defende?
Essa é uma questão mais partidária, acho que não devo pronunciar-me sobre isso. São dois líderes diferentes, com a sua própria personalidade. Mas, apesar de muito criticado, tenho de reconhecer que há em Rui Rio um ponto que acho de grande interesse. Às vezes, e bem, não dá atenção a minudências do quotidiano, e procura lançar questões para lá do dia seguinte.
Considera que atualmente a política e os políticos estão mais pobres na competência?
Hoje em dia é cada vez mais difícil recrutar para a política pessoas que na sua vida profissional, seja ela qual for, são competentes, tecnicamente habilitadas e com uma boa carreira. O que maioritariamente encontramos na política são pessoas que só fizeram política. Entraram nas juventudes partidárias, por lá andaram… Neste momento, vemos muitos políticos que são ministros e secretários de Estado que nunca tiveram vida além da política. Ora, para se fazer política, que é sobretudo a procura do bem comum, tem de se perceber a realidade cá fora. E isso não se consegue nos gabinetes, mas nos embates do mundo, das dificuldades, na correção dos erros que todos nós cometemos. Por tudo isto, a política está a ficar mais pobre. E a política precisa de talentos, no sentido profissional e ético da expressão. Não precisa só de jeito, de habilidade, de convicção, de gosto e de apetência.
Como vê a polémica do “familismo” no Governo?
Este “conglomerado familiar” em que se vem transformando o Governo e a sua entourage é, também, uma consequência da injustificada endogamia político-partidária, neste caso do PS. O afunilamento do recrutamento dos políticos leva a que as escolhas se limitem a famílias e pessoas que começam num partido e aí vivem, hibernam, acasalam, reproduzem e progridem. Não têm quase mundo fora da política, mas falam com uma pseudossuperioridade própria do carreirismo de grupo ou de outras afinidades nem sempre escrutináveis. Este Governo tem despudoradamente usado e abusado das escolhas em circuito fechado. Não é bom para o País, e não vale a pena disfarçar que não se passa nada.
Falou na política centrada no curto prazo…
Vou dar um exemplo caricatural daquilo que não desejo para o meu País, seja à direita ou à esquerda. No Parlamento, os partidos estiveram horas perdidas a debater o IVA sobre a tourada. Percebo que essa questão deva ser dialetizada entre as pessoas diretamente interessadas. Mas o assalto fiscal à poupança continua a passar incólume. O IRS que incide nas poupanças – que, hoje em dia, estão quase reduzidas a zero, infelizmente – era de 20% em 2005, sobre juros de depósitos a prazo ou de obrigações, por exemplo; e, agora, é de 28 por cento. Ou seja, esse aumento de oito pontos percentuais corresponde, percentualmente, a um acréscimo de 40% na tributação! Tirando vozes dispersas, alguém falou sobre isto nestes anos todos?
D. Serafim, bispo emérito de Leiria-Fátima, caracteriza-o como alguém que “tem a perspetiva da girafa, ou seja, vê mais longe do que a formiga”. Viu com antecipação as más práticas bancárias que levaram à crise?
Não na magnitude que depois viemos a perceber. Quanto à forma como o sistema bancário, ao nível dos seus principais atores, se relacionava com o poder político, sou testemunha de uma situação que não me agradou. Desde logo como ministro das Finanças. Recordo-me do modo, às vezes subliminar, como algumas personalidades do sistema bancário tentaram influenciar o Orçamento do Estado para 2005. Algumas das pessoas que hoje em dia estão sob escrutínio ou são objeto de investigação, de facto achavam que davam ordens ao poder político. E uma das razões por que, em meu entender, o governo Santana Lopes caiu foi essa. É a minha interpretação pessoal.
Ricardo Salgado era uma das pessoas que refere?
Não quero nomear as pessoas em causa, mas acho que fica claro para o público a que personalidades me estou a referir.
E como ficou a sua situação?
Saí do governo em 2005 e o sistema bancário que mencionei sinalizou-me como uma persona non grata. Mas fiquei bem assim. Há, no entanto, uma coisa que de algum modo me satisfaz intimamente: fui para a política e acabei a ser prejudicado por isso. E há pessoas que vão para daí tirar benefícios.
Prejudicado como?
O desafio a certos poderes fátuos estabelecidos naquela altura pagava-se caro. Ia-se para a “lista dos proscritos”. Por isso, foi muito bom que esses problemas tenham vindo à luz do dia, do ponto de vista nacional e de terminar ou diminuir alguns poderes não escrutinados na organização do nosso Estado.
Mantém que ainda não viu um penálti contra o Benfica bem assinalado?
[Risos.] Isso faz parte da minha legítima parcialidade. Mas é verdade: quando há um penálti contra o Benfica, hei de encontrar a razão para achar que foi mal assinalado. E quando é a favor, encontro o motivo para achar que foi bem visto pelo árbitro. É um facciosismo gostoso para mim, em conversas entre amigos, e que não prejudica ninguém.
Os desaires do Benfica mexem com o seu estado de espírito…
Fico irritado, doente, durmo mal nessa noite.
Tem superstições?
Sim. No momento em que começa qualquer jogo do Benfica, seja no futebol ou noutras modalidades, não posso estar de pernas cruzadas. Depois volto a cruzá-las. Nos penáltis também as descruzo. Faço isto até para me rir de mim próprio, para me divertir.