Estávamos a 5 de julho de 2017. Os incêndios tinham, há pouco mais de duas semanas, devastado Pedrógão Grande, Castanheira de Pera e Figueiró dos Vinhos. Nesse dia, o presidente do município mais fustigado pelos fogos que vitimaram 66 pessoas, Valdemar Alves, decidiu criar a entidade que ficou responsável pela reconstrução do concelho, o Gabinete Operacional de Recuperação e Reconstrução (GORR) que, segundo documentação obtida pela VISÃO, foi constituído de forma irregular. E isto ao ponto de o líder camarário assinar nessa mesma data, dois despachos sobre o mesmo assunto, até aqui religiosamente guardados, com versões contraditórias: num assume a criação do GORR sozinho; noutro é referida a existência de uma reunião, secreta, com mais três vereadores, para lançar a nova estrutura.
O GORR, pode ler-se num dos despachos aos quais a VISÃO teve acesso, serviria para “gerir e articular os diferentes meios e recursos de resposta às necessidades da comunidade pedroguense” e deveria ser extinto “logo que a missão de recuperação e restabelecimento da normal vida da comunidade” estivesse concretizada. No entanto, ainda antes de a VISÃO revelar, a 19 de julho deste ano, os esquemas para que os regulamentos aplicáveis à reconstrução fossem contornados, a revolta popular perante a ação deste gabinete já era indisfarçável: no terreno, eram diárias as conversas de café acerca da validação indevida de processos de recuperação e multiplicavam-se as denúncias de vizinhos que estariam a beneficiar dos donativos, sem preencherem os critérios definidos, com a conivência das autoridades locais.
Agora, mais de um ano após a tragédia, adensam-se as suspeitas. O pecado original terá ocorrido justamente a 5 de julho, quando Valdemar Alves constituiu o GORR, tendo elaborado os dois despachos com textos diferentes. Numa das versões – aquela que não chegou a dar entrada nos serviços –, o autarca (que ainda exercia funções com as cores do PSD, embora hoje seja apoiado pelo PS) deliberava sozinho a criação do organismo, alegando que, por se tratar de uma “circunstância excecional” e urgente, não fora “possível reunir extraordinariamente a câmara municipal”.
Num segundo documento, esse com assinatura da funcionária Jacinta Paes (que substituía o chefe de divisão, José Lopes, que se encontrava de férias), já é referida a tal reunião camarária, na qual só um dos vereadores não esteve presente: António da Silva Pena, candidato do PS à autarquia em 2013, que, de acordo com o despacho, teria invocado “motivo de doença” para a falta – versão que o próprio viria a desmentir na reunião de câmara seguinte, que teve lugar a 27 de julho.
Naquele encontro, de acordo com o documento, terão participado o próprio Valdemar Alves – a quem a VISÃO enviou um conjunto de perguntas sem que tivesse conseguido obter as respetivas respostas até ao fecho desta edição –, o então vice-presidente da autarquia, José Antunes Graça, o vereador Bruno Gomes e a atual vice-presidente, Margarida Guedes, que, apesar de formalmente pertencer à oposição (PS), estaria já sintonizada com o líder camarário.
A finta à Assembleia Municipal
Pequeno problema: o documento que Valdemar Alves acabou por tornar oficial, registando-o nos serviços camarários, não foi sequer à Assembleia Municipal para aprovação, como obriga o Regime Jurídico das Autarquias Locais. Já na versão que nunca deu entrada nos serviços, o presidente de câmara chegou a reconhecer que a criação do GORR estava enquadrada nas matérias que, segundo a lei, têm de ser sujeitas à apreciação da Assembleia Municipal.
Logo a 27 de julho, o vereador António da Silva Pena – depois de solicitar uma cópia da convocatória para a reunião secreta e ainda um suporte documental que comprovasse que, de facto, faltara “por motivo de doença” – questionou Valdemar Alves e o chefe de divisão, José Lopes, sobre se a instalação do GORR e o respetivo organograma não teriam de superar o crivo dos deputados municipais. Em vão. O presidente do município limitou-se a informar, como consta da respetiva ata, que aquela era uma “decisão sua” e que o chefe de divisão não estava autorizado a responder às perguntas do ex-vereador – que, também ele, contactado pela VISÃO, se escusou a fazer qualquer comentário.
Nem mesmo o facto de o deputado municipal social-democrata Rui Capitão ter alertado, na sessão de 25 de setembro de 2017, para essa violação das normas que regem o poder local foi suficiente para Valdemar Alves clarificar a situação do GORR (e a nomeação dos respetivos membros). O polémico presidente da autarquia, que tem negado as presumíveis fraudes nos processos de reconstrução de Pedrógão Grande, respondeu somente que, “por se tratar de um caso de estado de exceção”, a constituição do gabinete “não carecia de outras medidas”.
Contudo, também o argumento da urgência do cenário ou da excecionalidade das circunstâncias se afigura pouco plausível. O próprio Regime Jurídico das Autarquias Locais estabelece que, “tratando-se de sessão ordinária de órgão deliberativo, e no caso de urgência reconhecida por dois terços dos seus membros, pode o mesmo deliberar sobre assuntos não incluídos na ordem do dia”. Traduzindo a semântica jurídica, atendendo a que a formação e a composição do GORR apenas passou efetivamente pelo executivo camarário a 27 de julho, o assunto poderia ter sido depois incluído na ordem de trabalhos da Assembleia Municipal, que viria a realizar-se logo passados três dias. Bastaria que os deputados concordassem.
Um social-democrata conhecedor do modus operandi da autarquia não poupa os adversários: “Aquilo foi feito de maneira que eles pudessem fazer o que bem entendessem! Isto começou tudo mal.”
O “interesse eleitoral”
Por sua vez, Raul Garcia, que à data da alegada irregularidade ocupava o cargo de presidente da Assembleia Municipal, é mais contido. No entanto, não evita as leituras políticas sobre a metodologia adotada e o facto de não ter sido tido nem achado sobre a formação do GORR. “Verdadeiramente, na altura, não acompanhei – também não faz parte das funções do presidente da Assembleia Municipal acompanhar o dia a dia da câmara – e, de facto, toda a situação passou um bocadinho ao lado da Assembleia Municipal, até porque também estávamos em fim de mandato e, nessa altura, o senhor presidente tinha optado por estar no PS, não é?”, explica o agora vereador do PSD.
“Já não havia propriamente uma articulação entre os órgãos. Sinceramente, não lhe consigo enquadrar as coisas. Tenho ficado com a sensação, acerca de toda esta polémica que tem havido, de que, apesar da função que na altura exercia, tudo isto passou um bocadinho sem que a informação conveniente me chegasse. Há coisas de que no momento próprio não tive conhecimento, estou a ter agora… E de algumas coisas acho que teria sido de bom tom que tivesse tido conhecimento”, atira Raul Garcia, que nega conhecer o despacho de 5 de julho do ano passado.
Quanto à possibilidade de a reunião ter sido realizada discretamente para tudo ser feito a bel-prazer de Valdemar Alves, o vereador diz que “o presidente teve sobretudo a intenção de responder rapidamente àquilo que estava a ser a destruição significativa do concelho”. Ainda assim, salienta que “não se pode esquecer completamente de que haveria interesse eleitoral”, caso as intervenções nas casas fossem conseguidas em tempo recorde. Afinal, o poder local ia a votos três meses depois, a 1 de outubro.
A consanguinidade nas nomeações
A polémica não termina neste ponto. Além do despacho cunhado por Valdemar Alves, foi também aprovado o organograma do GORR.
Telmo Alves, filho do presidente da autarquia, foi designado coordenador daquela estrutura (função que atualmente acumula com a de adjunto de Valdemar Alves, no gabinete do líder do executivo camarário). Já Joana Guedes, assistente da associação privada sem fins lucrativos Pinhais do Zêzere e filha de Margarida Guedes (que é hoje vice-presidente do município), foi-lhe atribuído com o segundo lugar da hierarquia, a de assistente de coordenação.
“Aquilo ficou tudo em família”, desabafa um eleito local. Apesar disso, a mesma fonte considera que a dependência do GORR face ao executivo não foi inocente. O próprio despacho dá força à tese do “arranjinho”, ao referir que os membros do executivo local “entenderam de comum acordo e unanimidade” avançar com o novo organismo.
Igualmente controverso no GORR foi o papel do antigo vereador do Urbanismo, Bruno Gomes. No terreno, todos o identificam como o responsável do gabinete. A ele foram solicitados inúmeros pedidos de ajuda, e a sua assinatura aparece em dezenas de processos instruídos na Câmara Municipal de Pedrógão Grande (e validados pelo gabinete). Sucede, porém, que o braço-direito de Valdemar Alves que, numa reportagem da TVI, foi acusado por populares de os convidar a alterar as respetivas moradas fiscais para terem acesso aos apoios resultantes dos donativos, nem sequer chegou a integrar o GORR, como confirmou a VISÃO ao analisar o organograma que Valdemar Alves anexou ao despacho.
A VISÃO procurou obter um comentário de Bruno Gomes sobre este aspeto em concreto, mas o funcionário municipal não atendeu o telemóvel.
Já Victor Reis, ex-presidente do Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU), que se queixa de ter sido inopinadamente (ver entrevista nas páginas 52 e 53) retirado da fase de reconstrução, encontra uma ligação entre as irregularidades no GORR e o afastamento da entidade que liderou: “Aí está uma coisa que nunca me teria ocorrido. Esse é, se calhar, o primeiro sinal de que já estava decidido que o IHRU ia ser afastado, até porque o senhor presidente da câmara tinha plena consciência e conhecimento do trabalho e do levantamento que tínhamos feito [logo após os fogos].”
Olhando, aliás, para a terceira página do Relatório do Levantamento de Danos em Edifícios de Habitação relativo a Pedrógão Grande, Castanheira de Pera e Figueiró dos Vinhos, pode ler-se que, “devido à ausência de muitos proprietários aquando das visitas aos edifícios sinistrados pelos incêndios, alguns dados foram obtidos através de informações fornecidas por terceiros”, isto é, vizinhos ou pessoas conhecedoras da realidade local. No fundo, logo a 29 de junho do ano passado, o IHRU procurava demonstrar que, mesmo quando o chão ainda fumegava, teria sido possível obter dados bastante fiáveis.
Daí a estranheza de quem esteve a operar no terreno durante e após a catástrofe de que, conforme adiantou a TVI, tenha sido possível o município acrescentar 32 imóveis à lista apresentada pela autoridade nacional no que à habitação diz respeito.
Um cerco cada vez mais apertado
À medida que as notícias na comunicação social têm vindo a expor as incongruências no discurso e na prática de Valdemar Alves – que ora nega as fraudes ora assina uma petição contra elas –, a pressão e o clima de intimidação a que os trabalhadores do município têm estado sujeitos têm vindo a acentuar-se, segundo contaram à VISÃO fontes locais. E na sequência das buscas da Polícia Judiciária (que deverá voltar a recolher informação nos próximos dias) na autarquia e na Casa da Cultura, onde estariam os processos sob suspeita, a paciência do líder do executivo e do seu círculo mais restrito também parece estar a esgotar-se.
Mesmo antes disso, a tensão era tal em Pedrógão Grande que a Assembleia Municipal, convocada por António Tomás Correia para segunda-feira, 10, suscitou a preocupação dos eleitos do PS e do PSD. Entre a população, havia mesmo quem temesse a existência de confrontos, perante a vacuidade das explicações do presidente da autarquia. Esse terá, aliás, sido um dos pretextos para que o também presidente da Associação Mutualista Montepio tenha chamado representantes dos socialistas e dos sociais-democratas para, na véspera, consultarem os processos respeitantes a habitações que não seriam permanentes e que foram aceites como tal pelo GORR, pela câmara municipal e pela Comissão Técnica do Revita.
Ao ambiente insustentável em Pedrógão somam-se ainda os recados políticos e judiciais.
Marcelo Rebelo de Sousa apelou a que as alegadas fraudes em Pedrógão sejam esclarecidas até ao final do ano e a procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal, veio juntar a sua voz à do Chefe do Estado, ao notar que “a investigação desse processo reveste-se duma repercussão pública e de um interesse da comunidade perfeitamente justificável, e terá uma atenção especial”.
(Artigo publicado na VISÃO 1333, de 20 de setembro de 2018)
Quatro mil euros para gerir a crise
Valdemar Alves assume ter contratado a Bueno Press, Unipessoal, Lda. para assessorar a autarquia, embora a empresa esteja em processo de liquidação. O responsável pela agência, Rogério Bueno de Matos, diz que esta está “desativada” e que a entidade à qual foi adjudicado o serviço tem o nome de SBCS
É o próprio presidente da autarquia que o assume por escrito, em resposta à VISÃO: “A empresa Bueno Press, Unipessoal, Lda. foi contratada diretamente por mim (…) para assessorar a câmara municipal (…).” Valdemar Alves justifica a adjudicação (que não consta do portal da contratação pública, o Base) com a “experiência recente com a comunicação social”, em que alguns jornalistas terão ignorado “olimpicamente” os esclarecimentos do município acerca dos processos de reconstrução alegadamente irregulares. O contrato, indica o autarca, é válido por quatro meses, com início a 1 de setembro e termo a 31 de dezembro de 2018, e visa preparar um pré-plano de comunicação para promoção do concelho. O responsável pela entidade contratada, Rogério Bueno de Matos, confirma a versão, ainda que saliente que, até ao momento, “infelizmente”, se encontre mais ocupado com a polémica das reconstruções. O consultor de comunicação garante que receberá 1000 euros mensais pelo serviço. No entanto, existe um pormenor curioso: a Bueno Press, Unipessoal, Lda., que tinha como sócia-gerente a filha de Bueno de Matos, está em processo de liquidação – constava da lista de devedores ao Fisco, desde 2014, e à Segurança Social, desde o ano passado. Bueno de Matos reconhece que a agência está “desativada” e que transferiu “a designação comercial” para uma nova empresa, designada SBCS.