Imagine o seguinte cenário: está de férias no Algarve com um amigo espanhol, francês ou alemão e decidem ir à pesca juntos. O plano parece normal e, em tese, fácil de realizar. Obter a licença, no seu caso, seria um mero pró-forma. Bastaria deslocar-se ao Multibanco mais próximo, indicar o número do Cartão de Cidadão e o seu Número de Identificação Fiscal (NIF), pagar a respetiva taxa e estava pronto. No entanto, enfrentaria um pequeno problema: o seu amigo teria, forçosamente, de passar por um balcão do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) ou esperar pela luz verde do site daquele organismo (nem sempre disponível) para o poder acompanhar.
O empecilho foi notado numa das cinco sessões do Simplex Jam, um modelo de trabalho inspirado nas sessões de improviso características dos clubes de jazz, que envolveu 150 trabalhadores de vários organismos da Administração Pública na preparação das medidas que iriam constar no Simplex + deste ano. Depois das jornadas no Porto, em Coimbra, Évora e Faro, a 23 de março reuniram-se 26 funcionários públicos numa sala do R/C da Presidência do Conselho de Ministros, em Lisboa, para alinhavarem as propostas que tinham submetido pela Internet.
Às 10h25, quando a jam teve início, Pedro Janeiro, especialista em design thinking, sócio-gerente da Design Thinkers Group e líder da Trusted Thinker, a empresa que o Governo contratou por 72 mil euros para ajudar na elaboração da nova fase do Simplex +, estabeleceu a regra de que pessoas das mesmas entidades públicas não poderiam ficar nos mesmos grupos de trabalho.
E havia de tudo: funcionários do Instituto dos Registos e Notoriado (IRN), da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), da Direção-Geral das Artes, do Instituto do Emprego e Formação Profissional, da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, do Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT), da Direção-Geral do Património ou da Direção Regional de Agricultura e Pescas de Lisboa e Vale do Tejo.
Após breves exercícios que serviram para deixar os participantes à vontade – como obrigá-los a mudarem alguns aspetos da sua aparência ou pedir-lhes que revelassem um presente que tivessem oferecido recentemente -, bastaram algumas voltas pelas mesas para perceber que a máquina começava a funcionar, como Pedro Janeiro pretendia.
E as ideias fluíram com maior facilidade – desde a criação de uma ferramenta online que dispensasse os desempregados do chamado “controlo postal” à criação de um sistema de devolução de chamadas nos organismos públicos, designado “Ligo Já”, através de um call center para esse efeito.
Nessa sessão, foi também afinada a proposta “Stop Final”, que visa a simplificação, graças a uma aplicação informática, do cancelamento da matrícula de veículos em fim de vida, uma vez que os centros de desmantelamento inseririam diretamente a informação relativa às viaturas, sendo esta depois descarregada na base de dados do IMT, com a sequente transmissão à AT e ao IRN. E mais: como incentivo ao investimento, apareceria o “Balcão Verde Jovem Agricultor”, que disponibilizaria toda a informação, hoje dispersa, relativa aos apoios destinados a jovens empreendedores e garantiria a atribuição de um gestor/mentor público a esses projetos agropecuários.
500 propostas para analisar
Após as cinco cinco sessões do Simplex Jam, a secretária de Estado Adjunta e da Modernização Administrativa contou à VISÃO que o Governo recebeu, “em bruto”, 500 propostas, que serão avaliadas e remetidas aos diversos ministérios para serem analisadas e/ou aperfeiçoadas. A inclusão dos funcionários públicos no processo, sustenta Graça Fonseca, tem uma justificação simples: “Era importante encontrar uma forma de eles próprios se sentirem quase co-autores de medidas que depois constem no Simplex. (…) Se sentirem que isto não é algo imposto lá de cima (do Governo, entenda-se) sem que as pessoas que prestam esse serviço tenham sido ouvidas, as resistências de adaptação serão menores.”
Por isso, ilustrou: “Quando vamos a uma repartição de Finanças, com quem é que reclamamos? Não é com o ministro das Finanças, é com o senhor que está lá a atender. E começámos a perceber que quem trabalha na frente de atendimento e também em backoffice tem um conhecimento muito interessante, e que precisamos de aproveitar, sobre quais são os bloqueios que os cidadãos colocam.”
O desenho da nova vaga de medidas de simplificação administrativa, diz a governante, visa “cumprir o princípio only once [apenas uma vez]” , ou seja, garantir que os serviços do Estado tenham infraestruturas que garantam “a interoperabilidade” e “comuniquem uns com os outros sem andarem a perder tempo” e a incomodar os cidadãos com burocracia em dose dupla ou tripla.
Pedro Janeiro reforça essa perspetiva. “Como estão quatro, cinco ou seis organismos na mesma mesa, quando eles começam a partilhar as dores que sentem na ligação ao cidadão ou mesmo as internas do próprio funcionamento do organismo, descobrem que alguns deles já resolveram e outros sofrem dos mesmos problemas e às vezes estão a trabalhar em conceitos diferentes para resolver essas dores. Há muito poucos mecanismos comuns para fazê-los funcionar entre eles. Os ministérios são muito grandes, têm milhares e milhares de pessoas, já é difícil fazê-los funcionar. Se ainda tentamos sincronizar isso com outro ministério com mais 100 mil pessoas sofremos de elefantíase”, aponta.
O futuro, considera o especialista português em design thinking, passa pela aproximação das pessoas às estruturas do Estado através da tecnologia, mas sem as deixar “a nu” com acesso a dados desnecessários. “As soluções têm de ser mobile! O próprio contacto do Estado com o cidadão tem de ser cada vez mais de conta corrente, em que o Estado comunica, até para informações mais simples, pelos canais que o cidadão mais usa, ou seja, ferramentas como o WhatsApp, o e-mail, SMS…”, enfatiza. “Se juntarmos centenas destes pequenos pormenores, poupamos muitíssimo tempo e dinheiro ao Estado e às pessoas”, assegura Pedro Janeiro.
Milhares de horas ganhas e muitos milhões poupados
Mesmo tendo como suporte um estudo feito pelo Instituto Superior de Estatística e Gestão de Informação da Universidade Nova de Lisboa, que analisou o impacto de 13 medidas do Simplex 2016 e estimou que estas permitiram uma poupança de 624 milhões de euros/ano para as empresas, um crescimento de mil milhões de euros de ganho para a economia nacional e a redução de 490 mil horas de trabalho na Administração Pública, Graça Fonseca mostra-se mais cautelosa em relação à migração para o digital e confessa que os serviços físicos vão ter de coabitar com a evolução tecnológica.
“O país não é Lisboa e é preciso perceber que o resto do país é muito diferente de Lisboa”, frisa a secretária de Estado, que puxa do “exemplo clássico”: “As pessoas podem pagar impostos através do Multibanco. [Mas] há milhares de pessoas, mas milhares de pessoas, aos balcões das repartições de Finanças para pagar impostos porque querem ter a certeza, cara a cara, e saber que, se tiverem algum problema, podem culpar alguém. É uma questão de relação de confiança.”
Para esta nova versão do Simplex, Graça Fonseca adianta que vai ser feito um levantamento similar e que a Comissão Europeia está “neste momento” a selecionar a entidade, “uma consultora de âmbito internacional”, que vai conduzir o estudo de impacto económico. O novo programa arrancará “em junho”, segundo a secretária de Estado, e algumas medidas poderão estender-se para lá desta legislatura por serem plurianuais. A intenção é assegurar a sustentabilidade do programa, sem que este fique “dependente de conjunturas políticas ou administrativas”. “Para esta ideia da desburocratização a boa imagem é a roda quadrada: se pararmos de a empurrar, ela vai parar porque haverá sempre resistências”, conclui.