Há meses que Frederico Carvalhão Gil, o espião acusado de ser a toupeira dos russos nos serviços secretos portugueses, anda a lutar pela liberdade nos tribunais. No último verão, o Supremo Tribunal de Justiça já tinha criticado as “queixas” e “desabafos” que o agente do Serviço de Informações de Segurança (SIS) espelhara num recurso. O espião que está a ser julgado por corrupção, espionagem e violação do segredo de Estado – e que está em prisão domiciliária – voltou a recorrer, mas o tom não mudou. Nesse recurso, a que a VISÃO teve acesso, Carvalhão Gil dispara contra jornais, espiões, juízes, políticos, párocos, cardeais. E não se inibe de os chamar pelos nomes.
O difícil é perceber que argumentos são os seus, quando o seu advogado José Preto também discorre em nome próprio, chegando a remeter os juízes para a página no Facebook de “Joseph Praetorius”. Nada mais, nada menos, que o seu perfil naquela rede social.
Dizendo-se chocado por o tribunal não preservar a confidencialidade dos seus requerimentos, o advogado transcreve comentários de leitores a um artigo do Diário de Notícias sobre outro dos seus recursos. Um leitor escrevera ali que “na maior parte do mundo o crime de espionagem rendia-lhe um tiro na cabeça ou uma corda à volta do pescoço”; outro comentara que tão culpado era “esse traidor nojento como o sakana do advogado que o defende”. E de quem era a culpa desses comentários que eram “uma verdadeira exortação ao ódio”? Para a defesa de Carvalhão Gil era da imprensa, essas “organizações” que se assemelham “a placards de bordéis locais” e que já deveriam ter sido acusadas “por indiciado lenocínio”. O raciocínio não termina sem antes o advogado remeter para um post na sua página de Facebook sobre “a imprensa falida”.
O expectável era que a defesa tentasse provar a ilegalidade da detenção ou que já não havia motivos para manter o arguido preso em casa. Quase nunca o faz. Em vez disso, recorda que o ex-presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, Vaz das Neves, foi escutado no caso dos Vistos Gold”; e critica a juíza conselheira “grande oficial da Ordem do Mérito e organizadora de cursos na universidade confessional de Palma de Baixo” [Universidade Católica] por ter decidido que “os factos alegados” anteriormente pela defesa “não eram factos mas queixumes”.
Os comerciantes
Além da informação sigilosa que se encontrava em segredo de Estado e que Carvalhão Gil terá vendido a outro espião dos serviços secretos russos a troco de dinheiro, o Ministério Público descobriu que o agente do SIS também terá cedido informações manuscritas sobre outras figuras nacionais. Carvalhão Gil admite neste recurso a existência de “um papel manuscrito” com nomes de empresários. E descreve-os assim: “o licenciado Ginja, comerciante de cavalos” [Gil Vicente Ginja, diretor-adjunto do SIS], “Dias Loureiro, comerciante de coisas várias” [empresário e ex-ministro]. Além destes, um empresário de Seia (Duarte d’Orey Manoel) e Helena Rego, diretora da Academia Portuguesa de Inteligência que antes desempenhou vários cargos no SIS.
Sobre a antiga dirigente da secreta interna diz que o que escreveu “não poderia ser segredo”, “entre mil outros motivos porque” aquela “tem o currículo online”. E até lança uma acusação: nesse currículo online deve haver “um lapso em 1985, porque ninguém que se conheça foi contratado pela Faculdade de Direito de Lisboa no ano da licenciatura com a categoria de professor auxiliar (monitor e assistente, sim; professor auxiliar, não)”. Se o diz agora a um tribunal, argumenta, é “para proteger” Helena Rego. Antes “que alguém se ponha com ideias”.
Carvalhão Gil alega não ter cometido qualquer crime. Diz que apenas se encontrou com um amigo russo em Roma e em Liubliana para tomar uma cerveja e conversar sobre possíveis negócios. Até aqui nada de estranhar neste discurso. Só que logo a seguir remata com uma declaração improvável: como poderiam esses encontros ser espionagem, questiona, num país em que “a ministra das Finanças [ex-ministra Maria Luís Albuquerque] se transforma em empregada da Arrow mal cessa funções?”
Um advogado antimaçon
Nas entrelinhas do requerimento, Carvalhão Gil diz-se revoltado por terem surgido notícias sobre as suas ligações à maçonaria. O advogado não se contém: “O modesto defensor sublinha – em quanto lhe diz respeito – que tem alvará de antimaçon desde junho de 1995, por ter Nandim de Carvalho [autor do livro Teoria e Prática da Maçonaria] ali perdido uma ótima oportunidade para estar calado.” Tais delações, acrescenta, só “traduzem o ânimo de delator do português-mediano”, esse que tem “as suas ânsias de fazer o outro mais infeliz do que ele próprio”.
Num salto nada lógico, a defesa de Carvalhão Gil salta para críticas ao juiz Carlos Alexandre – que conduziu a instrução do processo e decidiu enviar o caso para julgamento. “Ora o senhor juiz dá entrevistas como juiz muito católico e não como um super-juiz-muito-católico-qualquer, mas um super-juiz-católico-com-ficheiro capaz de provocar a derrocada do regime”. Algo que, reforça José Preto em tom provocatório, “se lhe agradeceria” (embora seja possível o intuito da salvação das almas que daí se libertarão se o liquidar)”.
Da mesma forma pouco lógica, o documento enviado ao tribunal recorda como o estado é laico ou como tantos católicos “atacam a democracia”. Começa pelo pároco do Lumiar, que “anda nos cafés em apostolado contra o sufrágio universal, bramando que o voto dos filhos não pode valer o mesmo que o dos pais”; segue pelo cardeal de Lisboa, que exibe “a velha nobreza dos malteses pobres”; continua com o presidente da Real Associação de Lisboa por ter escrito em página aberta ao público “qual presunção de inocência, qual quê!” e termina com Teresa Leal Coelho, ex-candidata à Câmara Municipal de Lisboa, “figura de projeção óbvia no maior partido nacional-católico” por ter perguntado “a Neiva da Cruz [diretor do SIS] se era maçon, em absoluta violação das referências que exigem o estrito respeito pela liberdade de consciência”. E o que tem tudo isso a ver com o processo? A defesa alega que só queria mostrar que nos tribunais “as coisas não andam muito melhores”.
Talvez no meio de tantas críticas, o leitor já se tenha esquecido que o objetivo deste recurso era devolver a liberdade ao espião português acusado de vender informações aos serviços secretos do regime de Vladimir Putin. A 25 de outubro, três juízes do Supremo Tribunal de Justiça recusaram o pedido de habeas corpus por “manifesta falta de fundamento”. Não sem antes expressarem que Carvalhão Gil teceu “um conjunto de considerações processualmente inadequadas e irrelevantes”.