Ao longo de 366 páginas, Ricardo Salgado acusa o Banco de Portugal de fazer “prova à la carte” e “cherry picking” (fazer uma escolha seletiva; escolher só as passas). Diz que há uma falta de imparcialidade “ilegal e intolerável” na escolha da prova documental usada nas acusações contra os ex-administradores do Banco Espírito Santo (BES). Compara o governador Carlos Costa ao rei Luís XIV a propósito do pensamento “L’État c’est moi” (o Estado sou Eu), por o Banco de Portugal ter todos os poderes para um três-em-um: supervisionar, acusar e condenar. Fala de uma “saga persecutória”, “quadros totalitários” e “decisões em causa própria” e afirma que tudo o que disser em sua defesa será em vão, “uma mera formalidade aparente”, porque o seu julgamento já foi feito pelo governador do Banco de Portugal antes da conclusão de qualquer processo, numa “conferência de imprensa convocada num serão de agosto”. Tudo o resto, acrescenta Salgado, não passa da “burocratização” dessa decisão.
“Na verdade, o que se pensaria se os processos de contraordenação do caso BES não terminassem com a aplicação de coimas milionárias, após o senhor governador do Banco de Portugal ter feito pré-juízos de fraude, na conferência de imprensa em que anunciou as medidas de resolução, a 3 de agosto de 2014?”, questiona Ricardo Salgado no documento de defesa enviado ao Banco de Portugal, e a que a VISÃO teve acesso.
Ao ataque. É assim que o ex-presidente do BES se defende da acusação do Banco de Portugal sobre os factos respeitantes às irregularidades praticadas no BES Angola (BESA). Esse documento de defesa foi dirigido ao banco central antes de Ricardo Salgado ser condenado ao pagamento de uma coima de 4 milhões de euros e à inibição de funções no setor financeiro durante dez anos noutro processo conduzido pelo Banco de Portugal – o primeiro a ser concluído –, e relacionado com a manipulação das contas da Espírito Santo International (ESI), a holding com sede no Luxemburgo que acumulou uma dívida oculta de 1 300 milhões de euros.
A próxima sentença a ser proferida pelo Banco de Portugal será a do processo que incide precisamente na concessão de créditos sem garantia pelo BESA e à ausência de sistemas de controlo que permitissem controlar a exposição do BES ao banco angolano quando aquele era liderado por Álvaro Sobrinho. As testemunhas começam a ser ouvidas em setembro.
Há outros três processos contraordenacionais relacionados com a queda do BES que ainda estão em investigação, além dos processos-crime que estão a ser conduzidos pelo Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), o departamento do Ministério Público responsável pela investigação da criminalidade mais complexa.
Poder “absoluto e intocável”
No processo relacionado com o BESA, o Banco de Portugal acusou Ricardo Salgado e outros 15 ex-gestores do BES por, entre outros fatores, a comissão executiva do banco ter aprovado financiamentos ao banco angolano sem que alegadamente o risco desses financiamentos fosse controlado. Salgado reage questionando como pode o supervisor bancário vir acusá-lo de não controlar os créditos do BESA, banco que tinha outros acionistas além do BES, quando publicamente o próprio Banco de Portugal disse sofrer “limitações inultrapassáveis na obtenção de informação de Angola” e quando nas informações prestadas pelo Banco Nacional de Angola (BNA) e pela KMPG Angola, empresa que auditava as contas, nunca foi feita qualquer referência à existência de problemas nas contas do BESA.
“Imbuído da veste sancionatória, utilizando o seu poder quase absoluto e intocável, o Banco de Portugal entendeu que, nessas mesmas circunstâncias, a anterior administração do BES deveria ter detetado tais problemas na carteira de crédito do BESA, em Angola. O BES é culpado, mas ao Banco de Portugal nada era exigível conhecer, saber ou fazer”, diz Salgado, acrescentando que o supervisor não pode querer “convencer alguém de que estava no escuro” quando tinha “tanta ou mais informação do que o BES ou os seus administradores”.
Indo mais longe nas críticas, o ex-presidente do BES acusa o Banco de Portugal de ter mentido quando disse ter tido conhecimento da situação do BESA apenas a 18 de julho de 2014, já depois de ter sido divulgado que a administração do banco angolano, então nas mãos de Rui Guerra, não sabia a quem tinham sido emprestados 5,7 mil milhões de dólares. É que, segundo Salgado, as polémicas atas divulgadas pelo Expresso que retratam a reunião em que Álvaro Sobrinho terá sido confrontado pelos outros acionistas, em outubro de 2013, com os alegados créditos dados sem garantias, terão sido discutidas com o Banco de Portugal durante a preparação do aumento de capital do BES, concluído em junho de 2014.
Nunca foram revelados publicamente os beneficiários finais destes créditos concedidos pelo BESA. Em Angola, chegou a circular uma alegada lista que apontava para nomes de ministros angolanos, figuras do MPLA e empresários portugueses. Como a VISÃO revelou na edição online, o construtor civil José Guilherme e o próprio Álvaro Sobrinho, presidente do BESA até 2012, também seriam visados nessa lista como tendo sido beneficiários dos empréstimos de difícil cumprimento cedidos pelo banco angolano.
Quem também não escapa às críticas de Ricardo Salgado é o governo social- -democrata. “A resolução” que dividiu o BES num banco bom e num banco mau, em agosto de 2014, acusa Salgado, terá sido decidida pelo Banco de Portugal “com o alto patrocínio do governo liderado por Passos Coelho”. Porquê? Devido à “pressão mediática” e aos “interesses políticos” em vender o caso BES “como um exemplo em véspera de eleições”.
Salgado aponta ainda o dedo ao Banco de Portugal por ter recusado ouvir testemunhas estrangeiras através de cartas rogatórias dando como desculpa que “os processos de contraordenação em causa são simples e têm trâmites célebres”. O ex-presidente do BES ironiza, confrontando esta posição com declarações de Carlos Costa na comissão de inquérito à queda do BES e do GES. Nessa altura, o governador terá dito aos deputados exatamente o contrário: que “nem sequer se poderia especular sobre a complexidade” desses processos. “O que será isto, senão arbitrariedade?”, pergunta Salgado. E o que são os sucessivos processos sancionatórios? Salgado também tem uma explicação: chama-lhe “atirar areia para os olhos” da opinião pública.
As acusações do BdP
Foi a segunda acusação concluída pelo Banco de Portugal nos processos dirigidos ao universo Espírito Santo. Ricardo Salgado, José Maria Ricciardi, José Manuel Espírito Santo, Amílcar Morais Pires e outros 12 administradores do BES e da Espírito Santo Financial Group (ESFG) foram acusados pelo Banco de Portugal no processo relacionado com o BES Angola (BESA). O supervisor alega que todos “sabiam e permitiram” irregularidades na gestão do BESA
A 3 de agosto de 2014, data em que foi anunciada a resolução do BES, o banco liderado por Ricardo Salgado tinha uma exposição ao BESA superior a três mil milhões de euros, valor esse que viria a ser perdido, quase na totalidade
O inquérito nasceu de uma auditoria forense da Deloitte, feita a pedido do Banco de Portugal. Foram então identificadas deficiências no sistema de controlo interno do BES; ausência de medidas preventivas do branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo no BESA; incumprimento do dever de comunicação ao Banco de Portugal, pelo órgão de administração do BES e pelos seus membros, das situações relativas ao BESA com possível impacto no equilíbrio financeiro do BES
Salgado e Amílcar Morais Pires, ex-número dois do ex-presidente do BES, são acusados de quatro contraordenações. O primo José Maria Ricciardi, à semelhança dos outros ex-gestores, é acusado de três infrações
O Banco de Portugal identificou falhas em matéria de ‘compliance’, auditoria interna, gestão de riscos, informação de gestão e reporte de controlo interno
No outro processo, relacionado com a manipulação das contas da ESI, Salgado foi condenado ao pagamento de uma coima de 4 milhões de euros, o montante máximo à data aplicável. Para o supervisor bancário Salgado é o principal responsável pela adulteração das contas, conseguindo assim esconder um ‘buraco’ de 1,3 mil milhões de euros. Está ainda proibido de exercer funções no setor financeiro nos próximos dez anos. A decisão é recorrível para o Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão
(Artigo publicado na VISÃO 1217, de 30 de junho de 2016)