Recorde o perfil de Salgueiro Maia, Herói a contra gosto
Foi “a necessidade urgente de intervenção” no castelo do município de Castelo de Vide que determinou a alteração de planos. Pensada inicialmente para um edifício setecentista no centro histórico, a Casa da Cidadania Salgueiro Maia deverá ser, agora, instalada no interior da fortaleza medieval da terra alentejana onde nasceu o mais simbólico dos capitães de Abril. “Foi uma decisão tomada nos últimos tempos”, explica o autarca social-democrata António Pita. “O Estado entendeu, e bem, que urgia recuperar este monumento nacional e tudo aponta para que o equipamento pelo qual vimos lutando desde 2003 possa ser integrado no projeto de requalificação do castelo”, explicou o presidente da Câmara de Castelo de Vide à VISÃO. “O investimento estimado ronda os 700 mil euros, com apoio comunitário e os restantes 15 por cento suportados pela autarquia. Esperamos que a Direção-Geral de Cultura dê, em breve, o seu aval e, se tudo correr como planeado, em finais de 2017 teremos a primeira fase pronta e aberta ao público”, garante.
A Casa da Cidadania Salgueiro Maia cumpre um desejo, expresso em testamento, do antigo do tenente-coronel falecido a 3 de abril de 1992: deixar o seu espólio ao município onde nasceu tendo por objetivo a musealização do mesmo. “Mas isto não é apenas um museu nem tem como objetivo o culto à pessoa. Nem o próprio gostaria que assim fosse. O objetivo é promover e divulgar os valores da fraternidade, liberdade e democracia às novas gerações”, adverte o autarca. O estudo que serve de base ao novo projeto tem duas fases: uma, museológica, com conteúdos e objetos relacionados com o percurso de Salgueiro Maia, entre os quais se incluem o célebre megafone com que o então capitão incitou Marcelo Caetano a render-se, no Largo do Carmo, além do uniforme e “quico” que o militar envergava no dia da revolução. A “narrativa” que constará do espaço está a cargo de Fernando Baptista Pereira, professor da Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa. A segunda fase da Casa da Cidadania inclui a construção de um espaço complementar e de apoio ao núcleo principal, onde haverá uma cafetaria e o setor de atendimento. “Salgueiro Maia não pode ficar reduzido a herói regional”, reconhece António Pita. “Vamos sempre a tempo de corrigir o que lhe foi feito em vida, uma vez que foi muito maltratado e quase desterrado pelo facto de sempre se recusar que se servissem do seu nome por razões ideológicas”. Para o autarca, “as atitudes do poder político, ao longo do tempo, não foram consentâneas com aquilo que Salgueiro Maia deu ao País. Sei que ele faleceu desiludido, mas é dever dos poderes públicos difundir os seus valores e o que ele representa. Nisso, nunca é tarde”, concluiu.
Descubra as diferenças
Já o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, precisou apenas de 49 dias desde a data da sua posse para homenagear e anunciar a condecoração, a título póstumo, de Salgueiro Maia. A 1 de julho, dia em que o militar de Abril faria 72 anos, Belém agraciará o militar com a Ordem do Infante D. Henrique. Como se já não bastasse o cravo na mão nas cerimónias da Assembleia da República, o contraste com o seu antecessor é, a este respeito, flagrante. Na verdade, Cavaco Silva precisou de 20 anos para emendar, ainda que ligeiramente, a mão.
Corria 1989 quando o antecessor de Marcelo em Belém recusou ao capitão do 25 de Abril, na altura tenente-coronel, a pensão por “serviços excecionais ou relevantes” prestados ao País. A recusa só seria conhecida em 1992, quando também foi divulgado que o antigo Primeiro-Ministro concedera a dois ex-elementos da PIDE uma pensão idêntica à que recusara aquele militar da revolução. “Conversei com o Salgueiro Maia sobre isso, na altura, e ele disse-me que, ao meter o requerimento, tinha a certeza que ia ser recusado, mas fê-lo precisamente para denunciar essa situação hipócrita”, recorda Vasco Lourenço, presidente da Associação 25 de Abril, à VISÃO.
Em entrevista a João Paulo Guerra, publicada no diário Público em 1992, poucos meses antes da sua morte, Salgueiro Maia dera conta do sentimento coletivo de quem participara no derrube da ditadura: “Estamos a ser tratados como marginais”, acusara, apontando o dedo ao poder político, de maioria PSD. Só em 2009, Cavaco Silva corrigiu simbolicamente o erro, tendo aproveitado as cerimónias do 10 de junho desse ano, em Santarém, para homenagear Salgueiro Maia e depositar uma coroa de flores junto à sua estátua naquela cidade.
Num dia de agenda apertada que incluiu as cerimónias oficiais do 25 de Abril no Parlamento, a condecoração do advogado António Arnaut e do cirurgião João Lobo Antunes, além da entrega do prémio Vida Literária a Manuel Alegre, o atual Presidente da República teve ainda tempo para passar por Santarém. Saudado por largas centenas de pessoas no Jardim dos Cravos, onde se encontra a estátua do militar de Abril, Marcelo quis “agradecer a Salgueiro Maia o ter encabeçado o começo da alvorada democrática e o ter permanecido igual a si próprio até ao fim da vida”. Anunciou ainda a referida condecoração para 1 de julho. A Ordem do Infante D. Henrique visa distinguir quem prestou serviços relevantes a Portugal, no País e no estrangeiro, assim como contributos para a expansão da cultura portuguesa e o conhecimento do País, da sua História e valores. Daniela Maia, neta do tenente-coronel falecido a 3 de abril de 1992, agradeceu a Marcelo ter estado presente na homenagem em Santarém, cidade de onde partiu a coluna militar liderada por Salgueiro Maia, decisiva para a queda da ditadura. Tal como naquela madrugada, nunca é tarde.