Júlia Nery, uma professora de português de 35 anos, sai de casa, em Cascais, com medo. Vai com o marido à manifestação do 1.° de Maio, em Lisboa, e, para se precaver, deixou as três filhas com familiares e enfiou um dicionário de latim dentro de um saco. Esse “calhamaço” grosso já lhe tinha protegido a cabeça em 1962, durante as revoltas estudantis, quando a força repressiva da polícia do regime carregou sobre os estudantes indefesos.
Agora sai do carro, estacionado nos arredores da Avenida de Roma, e ainda sente medo, ao recordar a guarda republicana a cavalo. Não sabe bem o que vai acontecer, mas espera encontrar pouca gente. “O 25 de Abril foi há cinco dias e não sei bem para onde é que isto vai”, afirma.
Chega à Avenida de Roma e vê um imenso mar de gente. Começa a chorar, tal é a comoção. “Afinal vem toda a gente”, diz ao marido. Júlia que não tem nenhuma ligação político/partidária nem passado de resistência, à excepção das revoltas de 62 onde ganhou consciência política é tomada por um sentimento de pertença. “Afinal, este e aquele e o outro pensam o mesmo do que eu e eu não sabia. Afinal, toda a gente deseja a mesma coisa! É que já não se aguenta a falta de liberdade!”, exclama com emoção.
Júlia irá ficar no meio da grandiosa manifestação até ao anoitecer. Vai ouvir os discursos políticos e não encontrará ponta de demagogia os leaders falarão verdades há muito entaladas nas gargantas. A professora irá encontrar amigos que não vê há anos, dará vivas entre abraços, cantará… enfim, exprimir-se-á em público de uma forma que nunca lhe passaria pela cabeça fazer. O dicionário de latim nunca saiu do saco.
De facto, o povo português mostrou como era enganoso o argumento, repetido largamente pelo anterior regime, de que Portugal não estava preparado para a democracia. Por todo o País, as manifestações do 1.° de Maio decorreram com o maior civismo. Em Lisboa, com muitos milhares de pessoas nas ruas, foi verdadeiramente espantoso que o Hospital de S. José tivesse um dos seus dias mais tranquilos, como revelou a nota de imprensa.
Ainda era manhã e já o povo se concentrava na Alameda D. Afonso Henriques, para onde os 23 sindicatos organizadores do 1.° de Maio haviam convocado a concentração.
Veio gente de longe. Estavam lá os rendeiros de Almeirim, os camponeses de Santarém, os meloeiros da lezíria de Alcamé, jornaleiros do Alentejo e muitos outros grupos.
Os edifícios mais altos da Praça do Areeiro foram ocupados por dezenas de equipas de cinema e televisão, com as suas máquinas.
As massas afluem de todas as ruas transversais. Das varandas e das janelas caem suspensas bandeiras nacionais, colchas e colgaduras (porventura as mesmas usadas ao passar das procissões), serpentinas. As pessoas levam cravos, mas também rosas vermelhas e papoilas, apanhadas nos campos dos bairros de lata do lado direito da Avenida Almirante Gago Coutinho. E por todo o lado se grita: “O povo unido jamais será vencido!” Vêem-se milhares de bandeiras nacionais, estandartes dos partidos (destacam-se as bandeiras vermelhas, com a foice e o martelo, do Partido Comunista) dísticos dos sindicatos e cartazes dos populares. Enumeremos alguns: “As nossas armas são as flores”; “A poesia está na rua”; “Direito de voto aos 18 anos”; “Álvaro Cunhal no governo provisório”, “Julgamento público dos criminosos fascistas “; “Direito à greve”; “Liberdade sindical também para funcionários públicos”; “Sindicatos saúdam filhos do povo armados”. Por vezes, um ou outro cartaz, mais ou menos tosco, arranca sorrisos aos passantes: “Demos à P.I.D.E./D.G.S. férias no Vietname”.
Outros “Diminuição das rendas de casa” ou “Não paguem o aumento dos telefones” exprimem as preocupações dos portugueses com a alta dos preços, que já atingiu um ritmo anual de 30% nos últimos tempos do regime extinto, ultrapassando a subida dos salários. O leite pasteurizado aumentou para 4$90 por litro (ou 5$20 no caso de ser entregue em casa). A carne de vaca encontra-se a: 4$00 o quilo para cozer; 6$00 o quilo de bife para fritar. Com o choque petrolífero, nem os combustíveis escaparam à alta do custo de vida. Só entre Outubro e Dezembro do ano passado, aumentaram quatro vezes. A gasolina super subiu de 7$50 para os 11$00 que pagamos actualmente nas bombas.
Mas neste 1.° de Maio não há lugar para as tristezas da vida. O ar que se respira está impregnado de indescritível alegria.
Desconhecidos abraçam-se e beijam-se, todos fazem o V da Vitória (usando até os triângulos dos carros) e toda a gente canta. As canções populares tiveram direito a novas letras: “Deixa passar esta linda brincadeira/o Tomás e o Marcelo estão na ilha da Madeira “; “Ó Rosa arredonda a saia/ó Rosa arredonda-a bem/o Marcelo mais a Pide/já não prendem mais ninguém”. E mais: “Zás, catrapás, já lixámos o Tomás” ou “É bom, é bom, é bom e continua/o povo português pôs o fascismo na rua”.
Os populares descobrem também que podem falar para a rádio e para a televisão, incluindo as estrangeiras. Como aquele idoso que vemos junto à estátua de António José de Almeida a falar para uma televisão espanhola.
“Mire usted”, diz, “passámos do pesadelo ao sonho, foi isso!” Quando o cortejo se pôs em marcha, por volta das 15h30, já a multidão se aproximava de um milhão de pessoas. À cabeça vão os sindicatos organizadores. Depois, protegidos por um cordão de marinheiros, seguem os representantes políticos, destacando-se Mário Soares, do PS, e Álvaro Cunhal, do PCP. Falamos com Manuel Maria Candeias, 30 anos, antigo técnico de manutenção da TAP, despedido por ter sido preso político, em Peniche, acusado de ser um elemento da Intersindical, organização dos trabalhadores que existe clandestinamente desde 1970.
No 1.° de Maio, Candeias ficou responsável pela segurança de Cunhal e de Soares, no sentido de prevenir eventuais provocações e está encarregado também de manter a ordem dos discursos na tribuna. Mas quais provocações? “Isto é só carinho, não há provocação nenhuma. Eles são os leaders no exílio e as pessoas conhecem-nos de nome, mas não fisicamente. Então chegam-se para os ver, querem-lhes tocar, dão-lhes as boas-vindas”, descreve.
Desde a Alameda, subindo à Praça do Areeiro, descendo a Avenida do Aeroporto, subindo a Avenida Estados Unidos da América para finalmente alcançar a Rio de Janeiro, onde se encontra o estádio da FNAT (Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho), entretanto baptizado Estádio 1.° de Maio, o cortejo demora duas horas. O recinto não chega para todos quantos quiseram ouvir os discursos deste grandioso dia.
Na tribuna, o ambiente é igualmente de festa. Os leaders políticos e sindicais confraternizam com alegria. Fala primeiro Manuel Lopes, do Sindicato dos Lanifícios, que apela à união dos trabalhadores e reivindica o direito à greve. Segue-se Jerónimo Franco, dos Metalúrgicos, que verbera o regime deposto, perguntando: “Que raio de Governo era aquele?” José Nunes Lourenço, do Sindicato da Marinha Mercante, lê a declaração da Intersindical sobre liberdade sindical.
Manuel Gomes Peres, da direcção do Sindicato dos Caixeiros, é o orador que se segue. Tem 29 anos e é caixeiro de balcão na retrosaria Arquichique, na Rua da Conceição.
Mora em Alhos Vedros, filho de pai ferroviário, e esteve dois anos na guerra em Moçambique. Em 1970 foi eleito delegado sindical da Baixa de Lisboa. Trabalha 48 horas por semana (incluindo o sábado) com um salário de 1500 escudos mensais.
Estava nervoso quando começou o seu discurso perante a multidão no Estádio 1.° de Maio. “Talvez não tão nervoso como outros porque já discursei várias vezes para uma Voz do Operário cheia”, confidencia-nos. Dir-nos-á, mais tarde, que enquanto falava e olhava aquelas gentes, “só via quanto o povo sentiu a falta da liberdade”. “Pensei também que o sonho de liberdade e do fim da guerra pois não quero que os meus filhos vão à guerra pode tornar-se realidade.
Estão aqui milhares de pessoas com as mesmas convicções do que eu.” No palanque, Gomes Peres reivindica a semana de 40 horas de trabalho, em cinco dias, exige o salário mínimo nacional, o direito a férias, a diminuição dos impostos e o fim da carestia de vida, dando voz às reivindicações dos trabalhadores. Um estudo recente do extinto Ministério das Corporações revelou que, em média, os portugueses trabalham 48 horas semanais. Na indústria metalúrgica, as semanas de trabalho chegam às 55 horas, se forem contabilizadas as horas extraordinárias.
Os discursos continuaram com os leaders políticos. Primeiro Francisco Pereira de Moura, do Movimento Democrático Português, depois Nuno Teotónio Pereira, pelos católicos progressistas. Segue-se Mário Soares.
“Camaradas, valeu a pena ter sofrido tantos anos para assistir a esta festa”, começa o dirigente do PS. Saudando as Forças Armadas, Álvaro Cunhal e a destruição do “fascismo”, Soares alerta: “O problema central da Nação é o colonial (…) É preciso negociar com os movimentos nacionalistas africanos; e, na base do reconhecimento, o direito à autodeterminação e à independência.” Álvaro Cunhal foi o último a falar no comício e, dele, retivemos esta frase: “As forças populares são uma força imensa, mas precisam, para isso, de estar organizadas.” Afinal, se alguém andasse num zepelim pelos céus de Lisboa, neste dia que gerações vindouras irão assinalar, poderia perguntar-se: “Que força é esta?” “Não foi a primeira vez que ouvi mensagens políticas (houve as campanhas da CDE), mas isto é completamente diferente.
É um falar em liberdade, sem alguém por detrás a dizer ‘Não pode falar disto; não pode falar daquilo’.” Quem nos fala assim é Daniel Cabrita, 35 anos, empregado bancário, dois anos preso em Caxias sob a acusação de pertencer ao Partido Comunista.
“O que é que vai resultar daqui, quais as consequências? Isto vai ou não vai?”, interroga-se, a olhar o povo da tribuna.
De fora das celebrações no estádio ficou o grupo político MRPP, que se manifestaria mais tarde, no Rossio. Foi para lá que se deslocaram muitas das pessoas presentes no estádio da FNAT. Na Baixa de Lisboa, a festa durou até de madrugada. Marinheiros e soldados, abraçados aos populares, beberam e cantaram até altas horas. Ou não tivesse sido este o dia para deitar cá para fora tudo o que já não podia mais ser contido.
Cinco dias intensos
Como se preparou o 1.° de Maio e se decidiu sobre quem iria usar da palavra.
A Intersindical já existe desde 1970 como organização clandestina, que se vem reunindo em segredo na sede de vários sindicatos. Logo no dia 25, alguns dos seus dirigentes juntaram-se no Sindicato dos Lanifícios, na Rua de Santa Marta, para analisar a situação e começar a preparar o 1.° de Maio. No dia seguinte, em nova reunião, no Sindicato dos Administrativos da Marinha Mercante, houve abraços de alegria e cânticos revolucionários. Saiu dali o primeiro comunicado com reivindicações como: 1.° de Maio como feriado; liberdade sindical; fim à carestia de vida; instituição do salário mínimo nacional; redução do horário de trabalho para 40 horas semanais em cinco dias; imprensa livre; direito à greve; extinção da PIDE e libertação dos presos políticos. No dia 27, apesar de alguma resistência do general Spínola, a Junta de Salvação Nacional (J.S.N.) decreta o 1.° de Maio como feriado. Desde esse dia que têm sido frequentes as ocupações de sindicatos e as expulsões das velhas direcções, afectas do regime deposto. No dia 30, os sindicatos recebem uma convocatória da J.S.N. para uma reunião. O auditório enche-se de sindicalistas, perante a presença dos generais Diogo Neto, Bettencourt Rodrigues e Galvão de Melo e o almirante Rosa Coutinho, sentados em silêncio numa mesa no palco. Entra o general Spínola e faz um apelo à ordem no 1.° de Maio, apelando para que tudo corra com disciplina. “Falou como se estivesse à frente de uma formatura militar”, conta-nos um dos presentes.
Os sindicalistas respondem que a democracia implica liberdade sindical, de reunião e de manifestação. Nesse mesmo dia, os activistas ocupam o Ministério das Corporações, na Praça de Londres, e acordam com a J.S.N. que este passará a chamar-se Ministério do Trabalho. À noite, uma delegação da Intersindical e os representantes das forças políticas reúnem-se na sede da Comissão Democrática Eleitoral para decidir quem iria usar da palavra na tribuna do 1.° de Maio: seriam quatro sindicalistas e quatro leaders políticos.
Porto
O povo saiu à rua
No Porto, uma multidão saiu à rua e cantou em coro a Grândola, Vila Morena e O povo unido jamais será vencido. No comício da Praça do Município, Ângelo Correia, membro do comité central do PCP libertado pelo MFA, foi dos primeiros a usar da palavra para gritar, num tom emocionado: “Só uma coisa destas pode compensar um pouco do sofrimento de que milhares de portugueses, como eu, foram vítimas do regime fascista, mas que eu sabia que um dia seria derrubado.” Enquanto os oradores discursavam, no palco improvisado sobre uma camioneta parada à frente da Câmara, um mar de gente que não se conhecia cumprimentava-se, trocando abraços e beijos, vivendo naquele 1.° de Maio o “dia maior” das suas vidas. Mas a festa do Trabalhador não se fez só na capital do Norte. Milhares vieram para a rua em Coimbra, Bragança, Almada, Évora, Guarda, Beja, Portalegre, Braga, Estremoz, Nazaré, Setúbal, Miranda do Douro, Aveiro, Guimarães, Tomar, Leiria, Figueira da Foz, Pombal, Marinha Grande, Barreiro, Tavira, Santarém, Viana do Castelo, Covilhã e outros locais. Na Madeira, 25 mil pessoas manifestaram-se exigindo a partida dos antigos membros do Governo que se refugiaram na ilha.