“É melhor calares-te ou vou buscar o teu filho e mostrar-lhe os miolos da mãe espalhados pela casa.” Natalya é um nome fictício, mas esta ucraniana, de 33 anos, garante que o pesadelo por que passou recentemente foi bem real.
A 9 de março, soube-se agora, estava ela em casa, nos arredores de Kiev, quando ouviu um tiro e o som de passos. Momentos depois, dois soldados russos irromperam pela sua sala de estar adentro.
“Gritei: ‘Onde está o meu marido?!’, depois olhei lá para fora e vi-o no chão, ao pé do portão. O mais mais novo apontou-me então uma arma à cabeça e disse: ‘Dei um tiro no teu marido porque ele é nazi’”, começou por contar Natalya ao The Times of London.
Nesse momento, Natalya gritou ao seu filho, de quatro anos, para ficar escondido na sala da caldeira onde a família costumava refugiar-se durante os bombardeamentos em Shevchenkove, uma pequena aldeia a cerca de 40 quilómetros da capital ucraniana. Foi então que o soldado mais novo lhe apontou a arma à cabeça e a ameaçou.
O que se seguiu arrepia só de ler.
“[Esse soldado mais novo] disse-me para me despir. Depois violaram-me ambos, um após o outro”, contou Natalya ao mesmo jornal. “Não se importaram que o meu filho estivesse na sala da caldeira a chorar. Disseram-me que o calasse e que voltasse. Sempre a apontarem uma arma à minha cabeça, gozaram: ‘Como é que achas que ela a chupa? Devemos matá-la ou mantê-la viva?’.”
Repetidamente
Os soldados violaram-na durante horas. Depois, foram-se embora, mas regressaram ao fim de vinte minutos e violaram-na novamente. Mais um intervalo e mais um terceiro round de violações, desta vez com os dois homens tão alcoolizados que não conseguiam andar sem tropeçar.
O pesadelo só terminou quando os agressores acabaram por adormecer. Natalya aproveitou, então, para fugir de casa com o filho que tinha passado todo aquele tempo escondido, sozinho e às escuras, na sala da caldeira. “Enquanto abria o portão, o meu filho ficou mesmo ao lado do corpo do pai, mas estava escuro e não se apercebeu de que era ele”, recordou Natalya. “Disse: ‘Será que vamos levar um tiro como este homem?’.”
O miúdo ainda hoje não saberá o que aconteceu ao pai. Em Ternopil, a cidade para onde a mãe o levou, continua a sugerir que se comprem donuts a contar com ele sempre que vão lanchar. Natalya não tem coragem de lhe contar que aquele homem caído ao pé do portão era Andrey, morto aos 35 anos.
Ao The Times, Natalya recordou como ela e o marido tinham pendurado um lençol branco no portão da casa no dia 8 de março, após as tropas russas terem entrado na aldeia. O lençol branco mostrava que quem ali morava era pela paz.
No dia seguinte, ao ouvirem tiros mesmo à porta de casa, os dois saíram com o filho, todos de braços no ar. Depararam-se, então, com um grupo de soldados russos, um deles ainda de espingarda apontada ao cão da família morto.
Nesse grupo estava um comandante que Natalya identificou mais tarde como Mikhail Romanov, através de publicações nas redes sociais. Ao ver um casaco camuflado no interior do carro da família, Romanov tornou-se agressivo, exigiu que lhe dessem as chaves e foi-se embora ao volante do carro.
Horas mais tarde, já de noite, ouviu-se um estrondo junto ao portão da casa e Andrey foi ver o que se passava. Natalya ouviu, então, um único tiro, o som do portão a abrir-se e passos dentro de casa. Romanov voltara, acompanhado de um soldado mais novo.
‘Task force’ jurídica
Tudo isto Natalya contaria numa esquadra, encorajada por uma cunhada. “Podia ter ficado em silêncio”, nota. “Compreendo que muitas pessoas fiquem em silêncio porque têm medo. E muita gente não acredita que coisas terríveis como esta aconteçam.”
O crime começou a ser falado no final da semana passada, quando a procuradora-geral da Ucrânia, Iryna Venediktova, escreveu no Facebook que um soldado russo tinha morto um civil desarmado e depois violado repetidamente a sua mulher. Não demorou muito até que o The Times of London publicasse o relato arrepiante de Natalya.
Iryna Venediktova não se limitou a denunciar o crime nas redes sociais. De imediato, deu luz verde à primeira investigação oficial sobre alegadas violações cometidas por soldados russos. À frente do Grupo Jurídico Internacional sobre Acusação de Crimes Cometidos pela Rússia na Ucrânia, criado para apoiar as vítimas, está Amal Clooney. Tanto ela como os restantes membros da task force vão realizar o trabalho numa base pro bono.
Quando questionado numa conferência de imprensa sobre esta investigação, o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, disse que o Governo russo não confia “de todo” nas informações sobre a violação de uma mulher. “Isto é uma mentira”, afirmou, segundo a agência noticiosa Interfax. “Não confiamos no gabinete da procuradora-geral ucraniana. As tropas russas não atacam nem atiram em civis. As tropas russas ajudam os civis.”
Certo é que um soldado russo é, neste momento, procurado “por suspeita de violação das leis e costumes da guerra”. E as autoridades ucranianas afirmam que ocorreram inúmeros casos de violência sexual no país desde que a invasão russa começou, em 24 de fevereiro. O caso de Natalya é só o mais recente de uma série de queixas.
‘Os relatos estão a crescer’
No início de março, o ministro dos Negócios Estrangeiros ucraniano, Dmytro Kuleba, já tinha afirmado que havia soldados russos a cometer violações em cidades ucranianas, criticando na ocasião o Tribunal Penal Internacional de Haia. “Quando as bombas caem nas vossas cidades, quando soldados violam mulheres nas cidades ocupadas – e temos numerosos casos, infelizmente – é difícil, claro, falar sobre a eficiência do direito internacional”, disse, através de videoconferência, durante um evento na Chatham House, um grupo de reflexão em Londres.
Os casos de violência sexual, aliás, vêm sendo documentados desde a anexação da Crimeia pela Rússia em 2014. “E estes relatos estão a crescer”, fez notar ao The New York Times, Kateryna Busol, membro da Chatham House que se encontra refugiada em Regensburg, na Alemanha. “O que estamos a ouvir de boca em boca, de conhecidos dos sobreviventes no país, é horrível. Já me descreveram casos de violação em grupo, violação em frente de crianças e violência sexual após o assassinato de membros da família.”
A deputada Maria Mezentseva também já veio dizer que há muito mais vítimas em circunstâncias semelhantes às de Natalya que ainda não foram tornadas públicas pela procuradora-geral. À Sky News, Mezentseva afirmou que espera ver todos esses crimes registados, uma vez que “a justiça tem de prevalecer”.
Uma arma antiga
A violação e outras formas de violência sexual, que têm surgido durante os conflitos armados ao longo da história, podem constituir crimes de guerra e crimes contra a humanidade. A violação é, muitas vezes, uma arma física e psicológica. E é uma arma que tem um impacto que perdura na sociedade, como lembra Kevin Gerard Neill, um antigo soldado norte-americano com larga experiência nas forças de manutenção da paz das Nações Unidas, num artigo publicado no Journal of International Women’s Studies.
“Não é suposto um soldado violar uma mulher, mas as violações ocorrem na guerra. Sempre o fizeram, e muitas vezes em cenários e a uma escala difícil de compreender”, escreve logo na introdução. “Consequentemente, a violação em tempos de guerra tem um efeito direto sobre a sociedade onde o conflito ocorre. Em locais onde a guerra tem sido ou está ainda a ser violenta, a violência sexual contra as mulheres é uma ferida individual e coletiva como nenhuma outra.”
Aconteceu durante a Segunda Guerra Mundial e mais recentemente em vários conflitos armados. Quase oitenta anos depois, desconhece-se o número exato de mulheres e raparigas violadas em França e na Alemanha; apenas se sabe que foram milhares, tanto por parte dos nazis como por parte dos aliados. E o crime continuaria no pós-guerra, com as tropas de ocupação soviéticas a cometer violação em massa na Alemanha.
Mais recentemente, a violação sistemática foi utilizada com frequência como arma em vários conflitos armados – do Vietname à Bósnia, passando pelo Camboja e o Uganda – como tática de guerra para humilhar, dominar, incutir medo ou deslocar à força uma comunidade ou grupo étnico. Nos conflitos modernos, a Amnistia Internacional defende que ela é utilizada deliberadamente como uma estratégia militar.