Numa praça do século XVI da cidade de Lviv, Liliya Onyschenko, ao frio, vai praguejando contra as notícias que lê no telemóvel. Uma igreja de madeira do século XIX no norte da Ucrânia. Um museu folk bombardeado. Uma biblioteca com livros raros destruída. Onyschenko faz a lista de lugares ucranianos arrasados pelos ataques russos. Além de todas as vidas perdidas no seu país, o rol de destruição da herança cultural deixa-a muito irritada. “Dediquei a minha vida a proteger esses monumentos”, diz ao NPR a chefe de preservação histórica em Lviv, a maior cidade do oeste da Ucrânia.
O bairro antigo de Lviv é Património Mundial da Unesco. Partes dele datam do século V. Há uma igreja em quase todas as ruas e arquitetura dos períodos medieval e renascentista.
No pátio de uma igreja arménia, a equipa de Liliya Onyschenko está a montar os andaimes em torno de um gigantesco retábulo barroco. “Jesus mudou-se. Jesus foi embora”, diz Alexander Ruchko, num raro momento de leveza. Ruchko costumava ser guia turístico em Lviv. Agora está a ajudar a desmontar e a esconder todos os artefactos que costumava apresentar aos turistas. Estátuas de Jesus Cristo foram retiradas das suas cruzes em toda a cidade. Pinturas foram removidas das paredes do museu. Tudo foi escondido por segurança em locais secretos no subsolo.
Vitaliy Kulyk costumava dirigir o posto de turismo de Lviv, agora transformado em centro de acolhimento para evacuados de guerra. Kulyk tem trabalhado 12 horas por dia, andando pelas ruas de Lviv e avaliando as estátuas de metal nas praças da cidade – Neptuno com o seu tridente, o poeta ucraniano Taras Shevchenko com o braço levantado – tentando descobrir o que as bombas russas lhe poderão fazer.
“Normalmente, as bombas estão a uma alta temperatura, e isso queima tudo em redor”, explica Kulyk, preocupado que as estátuas premiadas de Lviv possam derreter se forem bombardeadas pelos russos. Entretanto, ele e a sua equipa foram a um armazém de bricolage e compraram material à prova de fogo para embrulharem as estátuas, sem esquecer os seus pedestais.
Enquanto isso, na catedral católica romana de Lviv, um guindaste eleva os trabalhadores até aos altos vitrais, para cobri-los com contraplacado e alumínio.
Estas são zonas que sobreviveram à ocupação pelos nazistas e soviéticos. “O nosso exército está muito bem, acho que os russos não chegarão aqui. Espere o melhor, mas esteja preparado para o pior”, deseja.

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Fazer arte também é resistência
Esvaziar um museu é uma tarefa gigantesca, e toda a equipa do Museu Nacional Andrey Sheptytsky em Lviv anda nisso há vários dias antes que a peça final – um retrato centenário do homónimo que dá nome ao museu – fosse retirada, deixando a última das suas paredes despidas.
Ihor Kozhan, diretor da grande galeria em frente à ópera de Lviv, explicou a pressa ao jornal The Washington Post. “Há um egomaníaco em Moscovo que não se importa em matar crianças, muito menos destruir arte. Para que a nossa história e a nossa herança sobrevivam, toda arte deve ir para o subsolo”, explica.
Em Odessa, alguns voluntários demoraram vários dias para empilhar centenas de sacos de areia em torno do monumento ao duque Richelieu, francês e um dos fundadores da cosmopolita cidade portuária. Apenas a cabeça e o braço direito estendido permanecem descobertos.
As janelas do principal museu de arte de Kharkiv foram destruídas, sujeitando as 25 mil obras de arte a temperaturas negativas e a neve durante semanas. Os teatros de ópera e ballet da cidade foram também bombardeados.
Vinte e cinco obras de uma das pintoras mais célebres da Ucrânia, Maria Prymachenko, conhecida pela sua representação colorida do folclore ucraniano e da vida rural, foram queimadas quando o exército russo bombardeou o museu que as abriga numa cidade nos arredores de Kiev. Outros museus da capital ucraniana estão fechados com tábuas, mas as suas obras permanecem no interior, porque quem as poderia ter retirado, entretanto fugiu.
“Os centros das cidades estão seriamente destruídos, alguns dos quais têm lugares e monumentos que datam do século XI”, disse Lazare Eloundou Assomo, diretor do programa de património mundial das Nações Unidas. “É toda uma vida cultural que corre o risco de desaparecer.”
A destruição deliberada do património de um país ou cultura é considerada um crime de guerra, mas a Unesco ainda não cancelou a sua próxima cimeira, que está programada para se realizar na Rússia.
Enquanto as tropas russas tentam cercar Odessa, o Museu de Belas Artes foi cercado com arame farpado. Como nos museus de Lviv, as paredes interiores estão agora vazias, como explica Kirill Lipatov, diretor do museu, recusando revelar se as obras mais valiosas foram evacuadas para fora da cidade.
Algumas das peças foram pintadas dentro do museu – um palácio ornamentado datado da década de 1820 – e nunca de lá saíram, incluindo obras russas icónicas do século XIX de Ivan Aivazovsky e Ilya Repin. “O primeiro pensamento que me veio à cabeça é que um museu ucraniano está a proteger as obras-primas russas da agressão russa”, constatou Lipatov.
Esta não é a primeira vez que o espólio de arte ucraniana é devassado. Após a invasão e a anexação da Crimeia pela Rússia em 2014, dezenas de obras localizadas na península foram transferidas para museus russos. Durante a Segunda Guerra Mundial, milhares de obras foram levadas por soldados nazis para a Alemanha. Um retrato de Yakov Galkin, o diretor que evacuou o Museu de Belas Artes de Odessa durante a Segunda Guerra Mundial, está pendurado no escritório de Lipatov. Salvar arte era secundário.
“A cada invasão, alguma perda de cultura é inevitável”, disse Taras Voznyak, diretor da Galeria Nacional de Arte de Lviv. “Putin sabe que sem arte, sem a nossa história, a Ucrânia terá uma identidade mais fraca. Esse é o objetivo da sua guerra – apagar-nos e incluir-nos na sua população de zombies criptofascistas.”
Um dos esforços mais bem-sucedidos para proteger a arte contemporânea da Ucrânia está em andamento na cidade ocidental de Ivano-Frankivsk, onde um coletivo de artistas transformou um café subterrâneo num bunker. Trabalhando de dia e de noite com uma rede de motoristas de vans, as obras de mais de 30 artistas – de colagens delicadas a esculturas suspensas e pinturas gigantes – foram trazidas de toda a Ucrânia para ali. Onze artistas que fugiram das suas casas também receberam residências para continuar a produzir arte durante a guerra.
“Muitos dos nossos artistas questionam o seu papel, se não deveriam pegar numa arma? A arte como arma age muito devagar?” disse Anna Potyomkina, curadora que faz parte do coletivo. “Mas, criar arte quando a Rússia está a bombardear museus e estúdios é uma parte importante e necessária da resistência.”