Perfil publicado em maio do ano passado por alturas do seu 99º aniversário.
Em 1972, um “estudo” realizado junto das principais modelos da revista Playboy revelou quem era, naquela altura, o homem mais desejado do mundo e com o qual as chamadas “coelhinhas” gostariam de ter um encontro: Henry Alfred Kissinger. Aos 40 anos, o então conselheiro de Segurança Nacional do Presidente Richard Nixon era já uma celebridade planetária, um político cujo mediatismo era equiparável às vedetas de Hollywood e que recorria à autoironia para negar os seus dotes de sedução. “Essa reputação frívola é, em parte, exagerada, obviamente. (…) O que importa é até que ponto as mulheres fazem parte da minha vida ou são uma preocupação central. Bom, na verdade, não o são de modo algum. Para mim, as mulheres são apenas uma diversão, um hobby. Ninguém passa demasiado tempo com os seus hobbies”, explicou ele à jornalista Oriana Fallaci, numa conversa publicada em novembro desse ano. O entrevistado, que se divorciara da primeira mulher oito anos antes, é descrito pela italiana como uma “enguia mais gelada do que o gelo”, e na sua lista de “passatempos” constavam nomes como Angel Thomas, Liv Ullmann, Candice Bergen e Nancy Maginnes. Esta última, filha de um advogado ilustre e conselheira de Nelson Rockefeller, o milionário governador de Nova Iorque, acabaria por levar uma vez mais ao altar o homem que a Imprensa também apelidava de “Super K” e de “Gary Grant com sotaque alemão”.
O guru realista
Nesta sexta-feira, 27 de maio, Henry Alfred Kissinger celebra o seu 99º aniversário e continua a ser uma das vozes mais influentes dos EUA. No início da semana, foi o convidado especial do Fórum Económico Mundial (WEF, nas siglas em inglês) e, embora não se tenha deslocado a Davos, na Suíça, teve direito a um painel especial com o seu nome, uma distinção só concedida aos Chefes de Estado. Mas não é só. Na videoconferência que protagonizou com Klaus Schwab, o fundador e diretor-executivo do WEF, o antigo dirigente norte-americano lançou duas importantes mensagens a quem o ouvia. Primeira: a única forma de acabar com o conflito militar na Ucrânia implica que o regime de Kiev faça concessões territoriais aos russos. Segunda: as relações bilaterais entre os EUA e a República Popular da China não devem ficar reféns da questão de Taiwan.

Quase centenário, o polémico guru da doutrina “realista” da diplomacia, o indivíduo que um dia afirmou que “as emoções não servem para nada e ainda menos para se alcançar a paz”, continua em grande forma intelectual. A 7 de maio, durante a conferência anual do Financial Times, realizada em Washington D.C., esteve quase uma hora a falar com Edward Luce, diretor do diário britânico nos EUA, e admitiu que “estamos a entrar numa nova era”, em que não convém ao Ocidente assumir uma postura de “confrontação” e antagonizar-se simultaneamente com os regimes de Moscovo e de Pequim. Na sua opinião, essa é uma abordagem “pouco sensata”. E sublinhou que não temos de ser “amigos íntimos”, nem nada de parecido, porque o importante é evitar um “alinhamento de interesses” entre Rússia e China. Tratou-se da sua enésima lição de realpolitik, o conceito aparentemente maquiavélico que opõe realidade e moralidade e que, em rigor, tem menos de dois séculos e origem no país onde nasceu Heinz Alfred Kissinger, em 1923.
O craque de “Fürth”
Filho mais velho de um professor primário e de uma doméstica, ambos oriundos de famílias judias ortodoxas, nasceu e viveu na cidade bávara de Fürth. Ele e o irmão mais novo, Walter, adoravam jogar futebol e tinham o sonho de representar o clube local, o SpVgg Fürth, na altura um dos mais importantes da Alemanha, com dois títulos nacionais nos anos 20 do século passado. A versão oficial dos seus talentos para o desporto-rei aparece nas diferentes biografias que lhe dedicaram: “Durante um breve período, fui guarda-redes, até que parti a mão. Depois disso, fui ponta-de-lança e, posteriormente, médio-campista. Joguei até aos 15 anos. Na realidade, não era muito bom, apesar de levar o jogo muito a sério.” O antigo craque tem uma indisfarçável tendência para reescrever a História, e são várias as obras que o apontam como possível autor do catenaccio, a tática defensiva que os italianos depois popularizaram. É o que faz, por exemplo, Jérémie Gallon, jovem ensaísta e diplomata francês, no seu livro Henry Kissinger. O Europeu, que não esconde a admiração pela personagem que “soube fazer da sua vida um verdadeiro romance”. Do que não há dúvida é que o homem que montou escritório na cave da Ala Oeste da Casa Branca, entre 1969 e 1977, é um adepto incondicional do soccer. Enquanto permaneceu em funções oficiais, exigia receber, todas as segundas-feiras, os resultados do seu SpVgg, e foram incontáveis as vezes que alterou viagens para assistir a jogos importantes ou até negociar a ida de figuras como Pelé ou Beckenbauer para o New York Cosmos, com o intuito de promover a modalidade no país que o acolheu. Em 1978, sem quaisquer pruridos políticos ou morais, aceitou, sem hesitar, o convite que lhe endereçou Jorge Rafael Videla, líder da junta militar argentina, para passar uma temporada em Buenos Aires e assistir ao campeonato do mundo neste país, enquanto milhares de opositores eram torturados, executados e largados no estuário do rio da Prata.
O aluno pragmático
A subida ao poder de Adolfo Hitler e as perseguições dos nazis aos judeus obrigaram a família Kissinger a emigrar para os EUA, no verão de 1938. Os primeiros tempos não foram fáceis. Em vez do apartamento com cinco quartos, que possuíam em Fürth, tiveram de acomodar-se num T2 em Washington Heights, na parte norte de Manhattan, em Nova Iorque, num bairro de refugiados alemães e depreciativamente chamado “IV Reich”. O patriarca, Louis, não conseguiu logo emprego e, deprimido, fez com que a mulher e os filhos garantissem uns parcos dólares. Paula começou a vender comida para fora e montou uma pequena empresa de catering. Heinz, por seu turno, passa a chamar-se Henry e, das oito da manhã às cinco da tarde, começa a trabalhar numa fábrica de pincéis para a barba, de que era proprietário um primo afastado da mãe. O seu rendimento escolar não foi afetado. Tem aulas à noite e torna-se um aluno brilhante, apesar das dificuldades com o inglês.

A 7 de dezembro de 1941, Henry Kissinger assiste ao seu primeiro jogo de futebol americano e, no final, percebe que a sua vida pode mudar. Não se enganou. O jovem estudante de contabilidade é informado de que houve um ataque do Japão contra Pearl Harbor – que ele não fazia a mínima ideia onde ficava. Os EUA entram na II Guerra Mundial e, dois meses depois, Henry despede-se da família e da namorada, Annaliese Fleischer, para iniciar a recruta em Camp Croft, na Carolina do Sul. O alistamento militar permitiu que se naturalizasse americano. O mesmo sucede com Walter, a quem decide enviar uma carta com vários ensinamentos, enquanto irmão mais velho e experiente: “Tenta sempre passar despercebido porque, se não te conhecerem, não podem implicar contigo. Por favor, reprime as tuas tendências naturais. (…) Não te tornes amigo da escumalha que irás invariavelmente conhecer. Não jogues! (…) Não emprestes dinheiro! (…) Não vás a bordéis! (…) Por vezes, tu e eu não nos demos lá muito bem, mas suponho que saibas, tal como eu, que numa hora de aperto podemos contar um com o outro.” Um e outro acabariam por sobreviver ao conflito, em continentes diferentes. Henry é mobilizado para a Europa, e Walter para o Pacífico, mas ambos mantiveram uma relação especial até à morte do mais novo, em maio de 2021. Empresário e filantropo de sucesso, Walter costumava dizer que estava condenado a ser sempre o “irmão de Henry”. E quando lhe perguntavam como conseguia falar um inglês perfeito, dava uma resposta digna do génio atribuído ao irmão, conhecido pela voz cavernosa e pelo forte sotaque germânico: “Eu sou o Kissinger que ouve!”
O magala perspicaz
O soldado raso da 84ª divisão de Infantaria com o número 32816775, mais conhecido pela alcunha “Ja” – claro, pelo sotaque –, revelou uma enorme capacidade de adaptação ao teatro bélico. Após ter desembarcado na mítica Omaha Beach, na Normandia, em novembro de 1944, Henry escreveu aos pais para lhes relatar a barbárie do conflito e informá-los de que estava em solo germânico: “Sinto-me orgulhoso e feliz por poder entrar aqui como um soldado americano livre.” A falta de graduados que falassem alemão e o seu sangue-frio fazem com que o praça da companhia G seja recrutado para o quartel-general da divisão e se torne agente especial do Counter Intelligence Corps (CIC) – um género de FBI militar, incumbido de levar a cabo missões de contraespionagem e de desnazificação nas áreas ocupadas pelo Exército norte-americano. O jovem nascido em Fürth destaca-se e, com o apoio de Fritz Kraemer, um intelectual excêntrico que se alistou também nas fileiras, é logo promovido a sargento e agraciado com a estrela de bronze por ter desmantelado uma célula da Gestapo, a polícia secreta nazi. O que ganha no CIC permite-lhe tirar licenças em Paris e Salzburgo, mas nada disso apaga a experiência de ver de perto o Holocausto. A 10 de abril de 1945, é dos primeiros a entrar no campo de concentração de Ahlem, a menos de dez quilómetros de Hanôver. É também ele que tem de dizer a muitos dos sobreviventes moribundos – na sua maioria judeus, gravemente doentes e com menos de 35 quilos: “Está livre!”.

Impressionado, Henry Kissinger escreve uma crónica de duas páginas sobre esse dia, o Judeu Eterno, em homenagem a um jovem chamado Folek Sama: “Eu, com a minha farda devidamente engomada, nunca vivi na imundície nem na miséria. Não me espancaram nem me deram pontapés. Que tipo de liberdade posso oferecer? (…) O teu pé foi esmagado para te impedir de fugir, tens o rosto de um homem de 40 anos, um corpo de idade indeterminada e, no entanto, segundo a tua certidão de nascimento, tens 16 anos. E aqui estou eu, de pé, de roupa lavada, a fazer um discurso para ti e para os teus camaradas. Folek Sama, constituis uma acusação contra a Humanidade. A tua imagem deveria ser preservada em cimento aqui nesta encosta, para que as gerações futuras a vissem e meditassem. A dignidade humana, os valores objetivos deixaram de existir para lá deste arame farpado. (…) Porque permitimos que isto vos aconteça no século XX? (…) Enquanto a consciência existir como conceito neste mundo, personificá-la-ás. Nada que se faça por ti te pode restabelecer. Nesse sentido és eterno.” O texto acabaria por ser divulgado globalmente graças à monumental biografia que Niall Ferguson, historiador escocês, dedicou ao antigo chefe da diplomacia norte-americana, Kissinger, o Idealista, editado em Portugal pela Temas e Debates, em 2016.
O doutor de Harvard
“Não sei como me sentirei quando voltar”, anunciou Henry Kissinger aos pais, numa missiva com data de abril de 1947, em que os informa de que perdeu a fé: “As verdadeiras tragédias da vida não são as escolhas entre o que está certo e o que está errado. Só as pessoas mais insensíveis escolhem aquilo que sabem estar errado.” E sabia muito bem o que tinha a fazer: inscrever-se em Harvard, dar aulas, escrever. Conseguiu fazer tudo isso, e, durante quase duas décadas, a universidade foi a sua verdadeira casa. Após se licenciar com uma tese de 388 páginas sobre O Significado da História, doutorou-se depois com Paz, Legitimidade e o Equilíbrio (Um Estudo sobre a Arte de Governar de Castlereagh e Metternich). Em 1955, é já um académico respeitado e com contactos privilegiados. Em abril desse ano, assina um artigo na prestigiada revista Foreign Affairs, em que abandona as questões históricas para abordar um tema de atualidade, a capacidade nuclear dos EUA e o rumo que a política externa do país deveria tomar. Doze meses depois, repete a dose na mesma publicação e advoga que, apesar do risco de apocalipse atómico, a América não pode passar um “cheque em branco” aos russos e deixar-se cair na “inação”. Foi o início de uma longa carreira que obrigou o poder político a escutá-lo e que o tornará o mais prestigiado secretário de Estado dos EUA na era moderna. Em 2015, num estudo promovido por diversas universidades norte-americanas, perguntou-se a 1 615 professores de Relações Internacionais, História e Ciência Política quem tinha sido o melhor e mais eficaz chefe da diplomacia dos EUA, nos últimos 50 anos. Quase um terço dos inquiridos deu uma resposta óbvia, com o segundo classificado (James Baker) a receber apenas 17% das preferências e o terceiro (Madeleine Albright, a primeira mulher a ocupar o cargo) com apenas 8,7%, logo seguida de Hillary Clinton.
O oráculo criminoso
Quando lhe perguntavam como falava inglês sem sotaque alemão, o irmão de Henry, Walter, falecido em 2021, tinha sempre resposta pronta: “Eu sou o Kissinger que ouve!”
Há seis décadas que todos os Presidentes norte-americanos fazem questão de ouvir o polémico maestro da diplomacia. John Kennedy é o primeiro a consultar o académico que se tornara amigo de Nelson Rockefeller, o governador republicano de Nova Iorque. Lyndon Johnson pede-lhe para encetar negociações secretas com o regime norte-vietnamita e, em 1968, Richard Nixon nomeia-o conselheiro de segurança para que ele acabe com “honra” o conflito na antiga Indochina. Com “realismo” e muitas ações ilícitas, incluindo bombardeamentos em larga escala no Camboja e no Laos (mais de 150 mil mortos) o professor de Harvard tentou mudar o mundo para o moldar aos interesses de Washington. Os EUA acabam por retirar sem honra nem glória do Vietname, na sequência dos acordos de Paris, com Henry Kissinger a vencer o Nobel da Paz em 1973, ex-aequo com o norte-vietnamita Le Duc Tho, que recusa o galardão. Não surpreende. Dois anos antes, “Super K” começara a preparar aquela que seria a sua maior jogada estratégica: aproximar Washington de Pequim e afastar o regime comunista, liderado por Mao Tsé-Tung, da União Soviética. Para tal, apoiou sem reservas a ditadura paquistanesa de Yahya Khan, um déspota aliado da China. Promover golpes de Estado e fazer alianças com facínoras tornou-se uma das suas imagens de marca, em nome da realpolitik e da necessidade de garantir um equilíbrio das potências responsáveis pela ordem e pela legitimidade internacionais. É por esse motivo que a CIA multiplica operações clandestinas em Itália, para minar o Partido Comunista local (PCI), ou no Chile, para afastar Salvador Allende e colocar Augusto Pinochet no poder. Tudo para conter a ameaça soviética e defender o “mundo livre”. Um dos melhores exemplos teve Timor-Leste como palco trágico, após a apressada descolonização portuguesa. A 6 de dezembro de 1975, Henry Kissinger e Richard Nixon foram a Jacarta para se reunirem com Suharto, o Presidente da Indonésia, e lhe agradecerem o envolvimento na luta contra o comunismo no Sudeste asiático. Menos de 24 horas depois, as tropas indonésias entravam em Dili e iniciavam uma ocupação selvagem, que durou um quarto de século e fez perto de 200 mil mortos timorenses.
De Seymour Hersh a Christopher Hitchens, passando por Baltasar Garzón, são muitos os que tentaram levar Henry Kissinger ao banco dos réus, para que ele respondesse por crimes de guerra. O tempo demonstrou que isso não irá acontecer. O velho diplomata não tem problemas de consciência e pode continuar a citar o Papa Urbano VIII, invocando o próprio destino: “Se Deus existe, o Cardeal Richelieu tem muito para responder. Caso contrário, bom, ele teve uma bela vida.”