Comentador e professor de geopolítica e geoestratégia, o Major-General Filipe Arnaut Moreira comenta o atual conflito entre Israel e o Hamas, o grupo palestiniano que controla a Faixa de Gaza. No mesmo mês em que publica o seu livro “Domínio do Poder”, no qual apresenta a sua visão das questões internacionais do nosso tempo, dá uma entrevista à VISÃO para revelar a sua opinião sobre pontos-chave do atual conflito do Médio Oriente e nas repercussões que está a ter.
Que condições se verificaram no início de outubro para o estalar do conflito entre Israel e o Hamas que não existiam antes?
Uma operação militar como aquela que o Hamas levou a cabo no dia 7 de outubro demora muitos meses a preparar. Necessitou de uma estratégia genética de produção e transformação de equipamento, de uma estratégia estrutural para organizar forças e de uma estratégia operacional para a condução da ação militar. Não se trata portanto de aproveitar uma oportunidade conjunturalmente surgida. Foi preparada metodicamente uma operação militar em grande escala que envolveu ações terrestres, incursões na terceira dimensão e operações anfíbias. Foi uma operação complexa, devidamente coordenada, numa escala operacional a que não estávamos habituados e que apanhou de surpresa as forças de defesa de Israel e o Ocidente. A brutalidade com que matou civis, procurando-os casa a casa para os executar, foi propositada. Nada que humanamente consigamos justificar.
Quem financia o exército de Israel e o armamento do Hamas?
Como em todas as democracias do Ocidente Alargado, o orçamento para a Defesa das Forças de Defesa de Israel (IDF) sai transparentemente do Orçamento Geral do Estado. Em 2021 Israel gastava 5,2% do seu PIB em Defesa. Os 24 mil milhões de dólares que gastava colocavam-no na 15ª posição mundial. Também recebe uma substancial ajuda norte-americana mas a indústria de defesa israelita é tecnologicamente muito avançada e produz parte significativa dos equipamentos militares. O sistema Iron Dome, por exemplo, desenvolvido pela indústria israelita entre 2007 e 2011, é um sistema antiaéreo de elevada precisão preparado para proteger áreas em Israel dos foguetes e drones lançados pelo Hamas e pelo Hezbollah. Uma bateria com Sistema de Comando, Radar associado e três ou quatro lançadores do míssil TAMIR pode custar 100 milhões de dólares e protege uma área de 150 quilómetros quadrados. Cada míssil interceptor TAMIR custa quase 100 mil dólares. Veja-se a despesa associada quando o Hamas lança dezenas ou centenas de foguetes sobre Israel. Para poupar mísseis de intercepção o sistema Iron Dome apenas destrói os foguetes do adversário cuja trajectória é perigosa para as áreas urbanizadas.
O Hamas obtém o seu armamento ligeiro de combate através do Irão e de milícias xiitas no Líbano e na Síria. Do Irão e da Síria recebe os foguetes Fajr-3, Fajr-5, e M-302. Frequentemente recebe apenas os componentes críticos através da rede de túneis com o Egipto e de desembarques nocturnos pela costa do Mediterrâneo. O Hamas tem capacidade de fabricar as partes que faltam. Este grupo também produz foguetes a partir dos tubos de canalização de água doados ao abrigo da ajuda humanitária.
Os Acordos de Oslo ainda fazem sentido?
A História não voltará para trás. Os atores de 1993 mostraram-se responsáveis e à altura das circunstâncias. Isaac Rabin e Yasser Arafat, que ganharam o Prémio Nobel da Paz, tinham confiança entre si e isso foi fundamental para articular cedências e compromissos. Hoje isso não é possível. Não apenas essa confiança entre as partes se desfez como a Autoridade Palestiniana e Netanyahu atravessam um problema de representatividade. E o Hamas também não é um ator que a comunidade internacional aceite como parte da solução. O Hamas pretende a destruição de Israel e não parece disponível para uma solução consensual. Nem o Irão irá permitir soluções consensuais.
Quem controla Gaza?
O Hamas administra Gaza e serve-se da radicalização da sua população para garantir a sua perpetuação no poder. Depois da operação militar israelita vai colocar-se de novo a questão da administração deste território. Entretanto decorrem certamente negociações lideradas pelos EUA para ser encontrada uma solução política para a administração futura de Gaza que possa ser aceite pelos países árabes da região. Israel não deve ficar a administrar essa Faixa.
A possibilidade de uma aliança entre Hamas e o Hezbollah é real?
Do ponto de vista dos princípios o seu alinhamento é total. Esse alinhamento também existe do ponto de vista dos discursos. É impossível de prever se estes consensos orientados pelo Irão se podem materializar numa invasão de Israel a partir do Líbano. Pode correr mal ao Hezbollah. O insucesso de uma eventual invasão ao território de Israel traria consequências para o prestígio deste grupo xiita e poderia diminuir a sua grande influência no Líbano. O Hezbollah está disposto a avançar e a arriscar uma possível derrota? Ou prefere ir fazendo apenas bombardeamentos de solidariedade? Temos dificuldade em fazer análises racionais sobre actores jihadistas.
Estamos a assistir a alguma estratégia política inesperada neste conflito? A posição internacional a este conflito era a esperada? Quem poderá ter interesses neste conflito?
Todos têm interesses a defender neste conflito, mas é impossível não ver a mão pirómana do Irão. O interesse do Irão é o de semear o caos na região para testar a capacidade militar de Israel e degradar a vontade do Ocidente.
A primeira das surpresas estratégicas foi a dimensão e a brutalidade da ação conduzida pelo Hamas sobre as populações civis israelitas vivendo nas proximidades da Faixa de Gaza. Os seus métodos não surpreenderam. O que surpreendeu, e essa é a segunda surpresa estratégica, foi a incapacidade de a intelligence de Israel ter antecipado este ataque. De resto todos os alinhamentos foram expectáveis: EUA reagiram prontamente fazendo avançar um impressionante dispositivo aeronaval para a protecção de Israel contra actores externos e a Federação Rússia alinhou-se estrategicamente com o Irão, o seu parceiro de confiança na Região. A China manteve o seu distanciamento estratégico e a Europa alinhou-se nos primeiros dias com Israel e depois desalinhou-se completamente pela pressão das ruas. Mas todos estão de acordo que continua a ser premente encontrar uma fórmula para garantir uma ajuda humanitária continuada.
De que forma a ONU pode atuar no conflito atual entre Israel e Hamas?
A UNTSO está ali presente desde Maio de 1948, mas a ONU sempre teve dificuldade em evitar conflitos e guerras nesta região. O grande mediador e promotor de acordos têm sido os EUA e provavelmente assim continuará a ser. As Nações Unidas manterão uma presença importante na organização e distribuição da ajuda humanitária.
O que está por trás desta polémica com António Guterres? De que forma é que estas declarações enfraquecem uma instituição de referência que sempre encarámos como extremamente importante?
Na base da polémica está uma frase mal construída, parecendo sugerir uma desculpabilização das atrocidades de 7 de outubro cometidas pelo Hamas. Entretanto o Secretário-Geral veio clarificar a sua intenção, mas os ânimos continuam extremamente exaltados. As Nações Unidas não têm grande margem de manobra para mediar este conflito. O papel principal na mediação caberá, provavelmente, aos EUA que mantêm um diálogo continuado com Israel, o Egito, a Jordânia, a Arábia Saudita e o Qatar. O Qatar tem vindo a ganhar protagonismo nestas negociações por desempenhar a função de ponte com o Hamas.
Quais as possibilidades de solução para este conflito?
Como digo no meu livro “O Domínio do Poder” a propósito do Médio Oriente “por aquelas montanhas andaram Abraão e Moisés, mas também Jesus e Maomé”, isto é, tudo por ali é sagrado e qualquer solução de natureza territorial chocará de frente com uma realidade que não admite compromissos. A Esplanada das Mesquitas foi construída no local do Templo de Salomão e aproveitando o Muro das Lamentações do Templo de Herodes. Tudo ali é sagrado, sensível e inflamável política e religiosamente. Podemos procurar resolver a guerra mas, provavelmente, não conseguiremos resolver o conflito.
O Domínio do Poder (Planeta), de Filipe Arnaut Moreira, já está disponível.