Se o livro Guinness dos recordes registasse os chefes de estado e de governo mais dados a encontros pessoais, teria de declarar dois vencedores óbvios. Esta segunda-feira, em Moscovo, os presidentes da Federação Russa e da República Popular da China vão estar juntos pela 40ª vez, num frente a frente que deverá prolongar-se até dia 22. Vladimir Putin e Xi Jinping querem discutir o reforço da cooperação estratégica e da “parceria sem limites” entre os respetivos países, com uma “aprofundada troca de pontos de vista” sobre as “grandes questões regionais e internacionais de interesse comum”. Os dois líderes prometem ainda assinar uma dúzia de contratos e de documentos que incluem as trocas comerciais e económicas até 2030, bem como uma “declaração conjunta” em que pretendem anunciar uma “nova era” cujos contornos se desconhecem.
Duas semanas depois de ser entronizado para um terceiro mandato – sem qualquer voto contra dos 2952 delegados da Assembleia Nacional Popular – o dirigente chinês alega que a sua viagem a Moscovo é uma “deslocação em nome da amizade e da paz”, como a descreveu Wang Wenbin, o porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros. De acordo com o regime comunista, “estão a ocorrer mudanças inéditas e o mundo entrou num novo período de turbulências”, motivo para Xi Jinping se apresentar como um ator neutral e disponível para oferecer os seus bons ofícios em busca de uma saída para o conflito entre a Rússia e a Ucrânia. Uma excecional oportunidade para reforçar a influência e as ambições da China, à semelhança da mediática e histórica entente proclamada a 10 de março, em Pequim, entre dois arquirrivais do Médio-Oriente, o Irão e a Arábia Saudita. Aliás, na sequência da reconciliação entre Teerão e Riade, Xi Jinping asseverou que o seu país tem a obrigação de participar ativamente na “governança global” e de introduzir “mais energia positiva e estabilidade” nos cinco cantos do mundo.
Quanto a Vladimir Putin, enquanto anfitrião e alvo de uma inédita acusação de crimes de guerra pelo Tribunal Penal Internacional (por alegada deportação de crianças ucranianas), tentará demonstrar uma vez mais que a sua “operação militar especial” desencadeada a 24 de fevereiro não o privou de amigos, nem o isolou diplomaticamente. Yuri Ushakov, um dos principais conselheiros presidenciais, sublinha que o seu país agradece as iniciativas do antigo Império do Meio, para solucionar o diferendo com as autoridades de Kiev, porque Pequim “compreende as verdadeiras causas desta crise”. Isto é, a invasão da Ucrânia tem como únicos culpados o Ocidente – os EUA, a NATO e demais aliados.
Em Moscovo, Xi Jinping deverá repetir que as sanções do Ocidente contra a Rússia constituem um obstáculo à coexistência pacífica entre grandes potências e alertar para a necessidade de responder às “legítimas preocupações” do Kremlin, ao mesmo tempo que insistirá no respeito pela integridade territorial de todos os estados soberanos. Uma postura de ambiguidade que lhe permite defender um plano de paz para a Ucrânia, em 12 pontos, e ainda negociar diretamente com o seu homólogo ucraniano. Tal como noticiaram a Reuters e o Wall Street Journal, depois do encontro com Putin, Xi pode vir a falar diretamente com Volodymyr Zelensky, por videoconferência. Na última semana, as autoridades de Kiev fizeram saber que estão preparadas para essa eventualidade e que a conversa telefónica entre os ministros dos Negócios Estrangeiros da China e da Ucrânia também ajudou. Nada indicia que esteja para breve um encontro entre Zelensky e Putin, patrocinado pelo novo timoneiro de Pequim. Há uma década, quando assumiu a liderança da segunda maior economia do mundo, Xi Jinping escolheu Moscovo para a sua primeira deslocação ao estrangeiro, tendo então afirmado que as “relações sino-russas são as relações bilaterais mais importantes do mundo”. Não sabemos se ele, nessa altura, já estava a pensar no fim da pax americana (o mundo tutelado pelos EUA) e numa nova ordem internacional multipolar, com a República Popular da China a ditar regras (pax sínica). A única certeza é que Xi está determinado em ser um grande timoneiro global e em não permitir que ninguém “contenha” ou “asfixie” o seu país. Numa clara jogada de antecipação à segunda cimeira para a democracia – promovida pela Administração Biden e agendada para 29 e 30 de março, na Casa Branca – o Presidente chinês apresentou na passada semana uma “iniciativa para a civilização mundial” e um “diálogo de alto nível” sem “confrontos ideológicos”. Por coincidência, a Economist publicou um index com os amigalhaços de Putin e colocou a China em lugar de destaque, num restrito grupo a que chamou o “eixo dos oportunistas”. Se calhar, Alexander Gabuev, académico e investigador do Carnegie Endowment for International Peace, tem alguma razão quando afiança que a sobrevivência do regime russo depende da China e que Putin é já um vassalo de Xi Jinping.