Quando, no passado dia 24 de junho, o Supremo Tribunal dos EUA pôs um fim ao caso de Roe vs. Wade que garantia o direito constitucional das mulheres de acederem ao aborto, muito mais do que a escolha de o fazer foi posta em causa. Nos estados que, agora, optaram por proibir o aborto, toda a área da medicina reprodutiva tem sido afetada pela decisão, e tanto as mulheres como vários profissionais de saúde têm levantado uma série de preocupações sobre os cuidados oferecidos às grávidas.
As complicações que podem surgir durante a gravidez são várias e muitas podem colocar, inclusive, em risco de vida tanto o bebé como da própria mãe. A solução, nesses casos, implica muitas vezes recorrer ao aborto para preservar a vida da mãe, algo que agora pode não ser possível dada a nova lei.
Uma das condições que parece gerar mais polémica entre a comunidade médica é a da gravidez ectópica e o seu tratamento. A gravidez ectópica é uma gravidez deslocada, ou seja, ocorre quando o óvulo fertilizado não atinge o útero, onde poderia desenvolver-se normalmente e sobreviver, mas instala-se antes em outros locais como as trompas de Falópio, o ovário, o colo do útero e mesmo o abdómen. De acordo com a Faculdade Americana de Obstetras e Ginecologistas (ACOG, na sigla inglesa), citada pelo The New York Times, em 90% dos casos o óvulo instala-se nas trompas de Falópio que ligam os ovários ao útero e que se caracterizam pelas suas paredes finas e abundantes em vasos sanguíneos. Numa gravidez ectópica, e no caso de o óvulo fertilizado não ser removido, as trompas podem ceder e dar origem a uma grande hemorragia interna que resulta na morte da mãe.
O risco de uma gravidez ectópica é maior em mulheres cujas trompas de Falópio estão cicatrizadas ou foram danificadas por inflamação, o que pode acontecer se tiverem sido submetidas a uma cirurgia ou a tratamentos de fertilidade ou se tiverem contraído certas infeções sexualmente transmissíveis, como é o caso, por exemplo, de clamídia. Ainda assim, e de acordo com a ACOG, cerca de metade das mulheres que têm uma gravidez ectópica não apresentam qualquer fator de risco conhecido.
A condição não é comum e, de acordo com estimativas dos EUA, citadas pelo The New York Times e baseadas em registos hospitalares, apenas um a dois por cento das gravidezes no país são ectópicas. Ainda assim, e dado o elevado risco associado, muitos profissionais de saúde têm demonstrado a sua preocupação perante as recentes proibições de aborto e a forma como podem afetar o tratamento deste tipo de gravidezes, ao impedirem o acesso dos pacientes aos cuidados médicos adequados.
Na maioria dos casos, retirando as exceções em que o próprio corpo expele a gravidez ectópica, as únicas opções de tratamento envolvem remover a gravidez ou uma cirurgia, ambos possivelmente considerados formas de aborto. Se a condição for diagnosticada com antecedência, ou seja, apenas alguns dias ou semanas após a implantação, os médicos recorrem a um medicamento conhecido como metotrexato, que é administrado através de uma injeção de modo a impedir que as células cresçam – e terminando, com isso, a gravidez.
Na eventualidade de ser necessário recorrer a uma cirurgia, o médico faz uma pequena incisão no abdómen e utiliza um tubo fino equipado com uma lente de câmara e luz para que seja capaz de remover a gravidez.
A nova lei proíbe o tratamento da gravidez ectópica?
A resposta à questão pode ser mais complexa do que aquilo que se encontra definido pelas novas leis. As proibições de aborto nos EUA contemplam isenções para emergências médicas, no entanto, e de acordo com a ACOG, as novas leis podem criar confusão entre pacientes e profissionais de saúde, a ponto de se provar um impedimento mesmo em exclusões específicas que eventualmente possam permitir o recurso ao aborto. Isto porque, e de acordo com vários especialistas, a linguagem vaga utilizada na descrição da nova lei não deixa claro o que é ou não permitido.
De acordo com um relatório da NPR, no Estado do Texas continua a não ser claro se é possível utilizar metotrexato em gravidezes ectópicas, embora tecnicamente a lei abra exceções para as mesmas. Isto porque o Estado proíbe o seu uso em abortos, apesar de o tratamento deste tipo de gravidezes implicar que se recorra a essa prática. As contrariedades na lei podem ser a origem de atrasos no tratamento desta condição, algo que, dado o grande risco que lhe é associado, pode resultar na morte da mãe.
As preocupações podem até ser puramente especulativas, como explica, citada pelo The New York Times, Aileen Gariepy, diretora de planeamento familiar complexo da Weill Cornell Medicine, em Nova Iorque, mas não deixam de ser um obstáculo que paira sobre a consciência dos médicos. “Esta confusão é realmente assustadora para muitas pessoas que não sabem o que fazer, ou se podem ou não tratar gravidezes ectópicas”, declarou.
De acordo com Vineeta Gupta, médica de saúde materno-infantil e advogada internacional de direitos humanos, a origem do problema é, de facto, a linguagem vaga e pouco clara nas leis antiaborto, nomeadamente no tópico da gravidez ectópica, o que dá origem a medo, estigma, confusão e despesas adicionais e aumenta as barreiras ao atendimento, realça a Healthline. “O que eles estão a fazer com as leis de saúde reprodutiva e o aborto está a criar todas essas quatro barreiras no mais alto grau”, disse Gupta.
Além disso, novas propostas de lei podem vir a acentuar as complicações linguísticas já sentidas. No Estado de Lousiana, por exemplo, um projeto lei recentemente apresentado procura mudar a definição de “um óvulo fertilizado que foi implantado no útero” para “um óvulo fertilizado”. Tal dificultaria casos como os da gravidez ectópica nos quais o óvulo está fertilizado, embora não se encontre implantado no útero. Será, então, o aborto, nesses casos, também ilegal por se tratar, aos olhos da lei, da morte de uma pessoa? A resposta não é clara e, se o projeto lei for aprovado, poderá confundir ainda mais os profissionais de saúde e, potencialmente, atrasar o atendimento.
O tópico das gravidezes ectópicas tem sido controverso, com alguns legisladores a exigirem, inclusive, que não fosse permitido o aborto, mesmo nesses casos, e que os médicos transferissem o óvulo das trompas de Falópio para o útero, um procedimento que até agora se mantém medicamente impossível. Outro projeto de lei de aborto no Missouri, por exemplo, proibia originalmente abortos para tratar de gravidezes ectópicas, mas a reação pública levou a que tal fosse repensado.
“Realmente tudo se resume a pessoas mal informadas, e isso levou a uma legislação pobre”, explica Cindy Duke, virologista certificada e ginecologista. “Houve legisladores em diferentes estados dos Estados Unidos que, num momento ou outro, tentaram introduzir uma legislação que criminalizasse o tratamento da gravidez ectópica.”
A realidade desta condição é ainda mais problemática quando é tido em conta que nunca um bebé poderia resultar da mesma. “É uma verdadeira emergência cirúrgica. Não é um aborto. Tratar uma ectópica não é um aborto. Da mesma forma, não há como, não é possível, pegar numa ectópica e movê-la da sua localização para o útero”, esclareceu Duke à Healthline.
Gravidez ectópica e aborto
Existe uma diferença clara entre o tratamento das gravidezes ectópicas e um aborto em condições regulares que os médicos, especialmente dada a situação atual, consideram importante destacar. No caso das gravidezes ectópicas, o feto nunca irá desenvolver-se e dar origem a um bebé, pelo que manter uma gravidez nestas condições nunca é viável, como explica, ao The New York Times, Beverly Gray, professora associada do departamento de obstetrícia e ginecologia e fundadora da equipa Duke Reproductive Health Equity and Advocacy Mobilization. Um óvulo fertilizado não pode sobreviver fora do útero e, não existindo ainda forma de reimplantá-lo no local correto, “não há como a gravidez sobreviver.”
“Não é uma interrupção da gravidez. É literalmente uma situação em que a vida de alguém está em risco num contexto em que nunca haverá um bebé viável”, acrescenta ainda Duke.
A condição torna-se um risco apenas para a mulher, dado que o feto nunca será capaz de se desenvolver. “Eu penso nisto mais ou menos como uma bomba-relógio”, ilustrou Gray. “Esta é uma gravidez que, à medida que continua a crescer, fará com que a trompa se rompa e cause uma hemorragia basicamente descontrolada.” Assim, o aborto nestes casos é aquilo que a ACOG reconhece como sendo um “componente essencial” dos cuidados de saúde. Além disso, os próprios medicamentos tomados para terminar a gravidez são, nestes casos, diferentes daqueles ingeridos para provocar um aborto em condições normais.
De acordo com a ACOG, as grávidas devem ser sempre vigiadas para que condições como a gravidez ectópica possam ser identificadas logo no seu começo. “No início, uma gravidez ectópica pode parecer uma gravidez típica com alguns dos mesmos sinais, como falta de menstruação, seios sensíveis ou dor de estômago”, alerta o grupo. Outros sintomas incluem “hemorragia vaginal anormal, dor lombar, dor leve no abdómen ou pélvis, cólicas leves num dos lados da pélvis”. Parecendo ou não uma gravidez normal, a grávida deve reportar todo e qualquer sintoma ao seu obstetra.
“À medida que uma gravidez ectópica cresce, sintomas mais graves podem desenvolver-se, especialmente se uma trompa de Falópio se romper. Os sintomas podem incluir o seguinte: dor súbita e intensa no abdómen ou na pélvis, dor no ombro, fraqueza, tontura ou desmaio”, descreve a ACOG. Nestes casos, a grávida deve ser encaminhada imediatamente para as urgências.