Kim Phuc Phan Thi tinha apenas nove anos quando foi fotografada por Nick Ut a correr nua pela rua de corpo queimado enquanto fugia do ataque de napalm, um conjunto de líquidos inflamáveis à base de gasolina, lançado sobre a sua cidade. Nesse momento, no dia 8 de junho de 1972, há 50 anos, Ut eternizou a figura de Kim Phuc numa fotografia que não só seria primeira página de jornais em todo o mundo e ganharia um prémio Pulitzer, como faria dessa menina e da sua dor um símbolo da Guerra Vietnamita.
Kim Phuc não tem muitas memórias do momento, apenas “um avião a cair perto e um barulho ensurdecedor”, conta num artigo de opinião escrito para o The New York Times. Os momentos seguintes resumem-se a um turbilhão de sensações: “explosões e fumo e uma dor excruciante”, descreve.
Ainda assim, existe um momento que Kim não esquecerá nunca: a seguir a capturar a fotografia que definiria, em muitos aspetos, a vida da então menina de nove anos, Nick Ut largou a câmara, envolveu Kim num cobertor e apressou-se a levá-la para os cuidados médicos onde depois terá convencido os médicos que diziam não haver espaço no estabelecimento a receberem-na, como conta numa entrevista à Vanity Fair em 2015.
Por muitas razões, Nick Ut tornou-se uma figura muito importante na vida de Kim, que, ainda assim, lembra-se de, ao crescer, “odiá-lo ás vezes”. A única razão? A foto “A menina de Naplm”, a sua foto. “Pensei para comigo mesmo: “Sou uma menina. Estou nua. Porque terá ele tirado aquela foto? Porque é que os meus pais não me protegeram? Porque é que ele imprimiu aquela foto? Porque é que eu era a única criança nua enquanto os meus irmãos e primos na foto estavam vestidos?” Eu sentia-me feia e envergonhada”, admitiu.
Kim parecia carregar a guerra tanto física como psicologicamente. No seu corpo via as marcas da violência, marcas eternas que a desfiguravam e não só eram a razão de “dores crónicas intensas” como lhe provocavam uma “ansiedade e uma depressão horríveis”, um medo de que ninguém “jamais” a amasse. Essa dor, no entanto, ia ainda mais fundo. As cicatrizes e respetivas consequências iam para além do físico, para além do corpo, eram cicatrizes que traziam medo e afogavam o seu pensamento e que em grande se deviam à fotografia que tornou “difícil” para Kim navegar a sua “vida privada e emocional”.
No processo de se tornar o símbolo de uma guerra responsável pela morte de quase um milhão de civis, Kim não deixou de ser pessoa. “Fotografias, por definição, capturam um momento no tempo. Mas as pessoas sobreviventes nestas fotos, especialmente as crianças, devem de alguma forma continuar. Não somos símbolos. Nós somos humanos. Devemos encontrar trabalho, pessoas para amar, comunidades para abraçar, lugares para aprender e ser nutridos”, desabafou no seu artigo.
O peso do simbolismo, de ser a representação de tudo aquilo que a guerra é, toda a sua violência e brutalidade retirou a Kim algumas liberdades e deu-lhe outras tantas responsabilidades que se difundiam numa identidade que, apesar de moldada pela fotografia e pela sua experiência nesse dia, não se resumia unicamente a isso. Será esse impacto na vida dos fotografados um obstáculo ético à captação de certas imagens jornalísticas? Existe um limite que não se deve quebrar? Uma vida a respeitar?
A discussão não tem resposta certa nem consensual e a prova disso mesmo é a própria Kim que, se antes se deixava assombrar por um ódio que dirigia a Ut e á sua fotografia, agora via o sentimento ser substituído por agradecimento. Apesar das “dificuldades” que enfrentou em consequência dessa imagem, é importante que as pessoas encarem a realidade da guerra. “A ideia de compartilhar as imagens da carnificina, especialmente de crianças, pode parecer insuportável – mas devemos enfrentá-las. É mais fácil se esconder das realidades da guerra se não vemos as consequências”, escreveu Kim. “Devemos enfrentar essa violência de frente, e o primeiro passo é olhar para ela”, acrescenta.
Hoje Kim não se assume como um símbolo de guerra até porque, 50 anos depois, já não é a menina daquela foto. Hoje Kim é um “símbolo de paz”. “Carreguei os resultados da guerra no meu corpo. Não esqueces as cicatrizes, físicas ou mentais. Estou agora grata pelo poder dessa fotografia minha aos 9 anos de idade, assim como da jornada que fiz enquanto pessoa. O meu horror — do qual mal me lembro — tornou-se universal. Estou orgulhosa de, com o tempo, me ter tornado um símbolo de paz. Levei muito tempo a aceitar isso enquanto pessoa. Posso dizer, 50 anos depois, que estou feliz por Nick ter capturado aquele momento, mesmo com todas as dificuldades que aquela imagem criou para mim”.
Com o tempo, Kim deixou de sentir a fotografia pesar sobre a pessoa que é, passando a encará-la como uma lembrança de tudo aquilo que tem de mudar no mundo, tudo aquilo que ela própria pode, aos poucos, ajudar a mudar. “Percebi que aquela fotografia tinha sido, afinal, um presente poderoso para mim – posso (usá-la) para trabalhar pela paz, porque essa foto não me deixou partir”, disse em entrevista à CNN. “Agora posso olhar para trás e abraçá-lo… Sou muito grata por (Ut) ter registado aquele momento e o horror da guerra. Esse momento mudou a minha atitude e fez-me acreditar que também eu posso ajudar os outros.”
Atualmente Kim trabalha na Foundation Internacional, uma fundação que ela própria criou e através da qual vai viajando “para países devastados pela guerra para fornecer assistência médica e psicológica a crianças vítima da guerra”. Essa guerra que está em todo o lado e essas crianças que sofrem por todo o mundo, lembra. A própria Kim conhece de perto esse sofrimento que ainda hoje sente no corpo, mesmo depois de anos de terapia.
“Eu sei como é termos a nossa aldeia bombardeada, a nossa casa devastada, ver membros da família morrerem e corpos de civis inocentes deitados na rua. Estes são os horrores da guerra do Vietnam evocados em inúmeras fotografias e cinejornais. Infelizmente, são também as imagens de guerras em todos os lugares, de vidas humanas preciosas a serem danificadas e destruídas hoje na Ucrânia”, escreve Kim, relembrando outros acontecimentos atuais como o tiroteio de Uvalde que, embora diferente, não deixa de ser uma guerra e não deixa de pertencer à guerra maior que é a violência contra as crianças. “Podemos não ver os corpos, como fazemos com as guerras estrangeiras, mas esses ataques são o equivalente doméstico da guerra”.
A guerra 50 anos antes continua a ter como símbolo a menina que corre nua com o seu corpo queimado mas, e talvez por isso mesmo, não é esquecida e ajuda a relembrar a dor e a destruição que daí vieram e que ainda hoje os seus sobreviventes sentem.