O caso começou a tomar dimensão pública algum tempo antes de a primeira vacina contra a Covid-19 fazer a sua estreia nos EUA. Foi quando uma agência de viagens indiana, chamada Gem Tours & Travel, anunciou que estava a registar clientes para um novo e estimulante pacote: uma viagem de quatro dias a Nova Iorque, a partir de Mumbai, na Índia, com uma inoculação incluída, por cerca de 1600 euros.
“Turismo da vacina”, chamou-lhe Nimesh Sha, o especialista em desenvolvimento de negócios da dita empresa, citado pela NBC News, já depois de a mensagem que a empresa fizera circular por WhatsApp se tornar viral – aliciando indianos VIP para uma viagem aos EUA, a partir do momento em que a vacinada da Pfizer/BioNTec, a primeira a ser aprovada, já estivesse disponível. “Seja dos primeiros a ser vacinado contra o coronavírus. Assim que for aprovada, estamos prontos para a comprar para clientes muito especiais”, dizia a mensagem, segundo a Business Today.
Já ao The Print, um jornal online da Índia, Nimesh Sha, o tal responsável da agência de viagens indiana, garantia que “estavam apenas a aceitar registo de pessoas com um visto americano válido para 10 anos”. Mas o certo é que, mais ou menos ao mesmo tempo, também alguma da sua concorrência – como a Zenith Holidays, na cidade de Calcutá, do outro lado do país – andava a registar clientes para pacotes de vacinação. Bem que Proanab Sarkar, o presidente da Associação Indiana de Operadores Turísticos, tornou pública a sua indignação por as empresas estarem a vender aquele tipo de pacotes. Mas a verdade é que aquela agência ainda tem, no seu site, um separador chamado “vaccine tourism”, no qual os clientes podem preencher um formulário de registo, clicar em enviar e, em poucos minutos, receber um mail na sua caixa de correio, a prometer mais informações em breve. “Obrigado por mostrar interesse nas nossas férias”, lê-se, no e-mail.

O bem mais desejado do momento
Não há dados certos de quantos poderão ter-se registado nesse formulário, mas fica claro que alguém com dinheiro que não tenha acesso imediato à vacina da Covid-19 – o bem mais desejado do momento – pode simplesmente voar para outro país. No caso, para os EUA, sobretudo na Flórida, onde se avolumam os relatos de canadianos e brasileiros ricos a aterrar no estado para se inocularem sem filas de espera.
Mas não só. Segundo a Forbes, também o Knightsbridge Circle, um dos mais exclusivos clubes britânicos, foi dos primeiros a oferecer um pacote de viagens para o Dubai e para a India em troca de cerca de 50 mil euros. E o fundador do clube nem sequer escondia a satisfação por ser “o primeiro serviço no mundo a oferecer a vacina de forma privada”. O único requisito é ter mais de 65 anos. De resto, a viagem inclui estada de um mês no emirado, tempo suficiente para a toma das duas doses da vacina da Pfizer. E o custo da vacina está já incluído nos cerca de 28 mil euros que os sócios do clube pagam anualmente.
Agora, se a Oriente não há reações de indignação pública conhecidas, já na Florida, e perante a inesperada dimensão da situação, o responsável médico do local acabou por lançar um aviso a exigir que quem recebesse a vacina vivesse naquele estado americano. Embora não tenha impedido que, até agora, um bem tão escasso fosse entregue a quem conseguiu pagar mais por ele.
“Se tivesse oportunidade de o fazer no meu país…”
Que o diga a conhecida advogada argentina Ana Rosenfeld, que foi oficialmente visitar a família a Miami no mês passado – mas acabou depois por fazer mais de 400 quilómetros até à cidade vizinha de Tampa para aproveitar aquilo que se lhe afigurou como a sua primeira oportunidade. “Sempre quis tomar a vacina”; assumiu a própria à publicação argentina Teleshow. “Se tivesse tido oportunidade de o fazer no meu país, tê-lo-ia feito. Assim…”.
Tornou-se também claro, entretanto, que muitos americanos ricos que não vivem na Flórida conseguiram ser vacinados naquele estado. Richard Parsons, antigo presidente e CEO da Time Warner descreveu mesmo, em direto na televisão, como voou de Nova Iorque para a Flórida para receber uma vacina. “Não sei como conseguem, mas sei que fui à internet, fiz uma marcação e fui vacinado”, disse Parsons, de 72 anos, na CNBC.
Se nem Rosenfeld nem Parsons tiveram de pedir quaisquer favores, agora a vida pode ter-se complicado um pouco, depois de Jared Moskowits, o diretor de gestão de emergências da Flórida, ter vincado publicamente que “o turismo de vacinas não é permitido”, depois de saber que se multiplicavam os voos do Canadá para a região para furarem as filas. “É abominável”, considerou. Mas entretanto, já quase 40 mil pessoas, cuja morada estava listada como “fora do Estado”, tinham sido vacinadas no estado – isto segundo dados oficiais.
Vacinados escolhidos a dedo
Só que nem as condenações públicas do caso sossegaram os mais ansiosos pela vacina, e avolumam-se agora suspeitas de que o MorseLife Health System, um dispendioso centro para reformados, em West Palm Beach, deu vacinas que estavam destinadas aos idosos residentes e pessoal médico a membros do Palm Beach Country Club – clube local frequentado por multimilionários, cuja quota de adesão custa perto de 85 mil euros – muitos por sugestão dos promotores imobiliários nova-iorquinos Bill e David Mack.
Aliás, no primeiro fim de semana de janeiro, gerou-se mesmo algum trânsito de pequenos jatos no aeroporto internacional de Miami, de toda aquela gente a chegar à cidade a convite dos irmãos Mack. Ao que conta ainda a BBC, os dois compraram um lote de vacinas para oferecer aos seus melhores amigos e clientes mais chegados – escolhidos a dedo pela dupla, claro.
A grande dificuldade, assumem as autoridades da Florida, é que muitos dos que têm casa na região acabam por não viver lá grande parte do ano – como já reconheceu Marissa Levine, professora de saúde pública na universidade local, que já exerceu cargos públicos, a defender as recentes restrições. “Neste momento, é um recurso escasso e a procura está a ultrapassar a oferta”, disse, defendendo a necessidade de se impor um quadro ético e só vacinar os residentes no estado. “Sem esse tipo de enquadramento, as pessoas com poder e dinheiro farão tudo para furar a fila”.
Mas a professora reformada Therese Gagnon, residente no Quebeque, Canadá, e proprietária de uma casa de férias na Florida, garante que ninguém lhe perguntou se era residente a tempo inteiro, quando apareceu num centro de vacinação drive-thru, na cidade vizinha de Fort Lauderdale. “Só me perguntaram a idade…”